Isadora
A Pipa Azul abriga uma sombra que compreende as pessoas. Naquele corredor, entre a mureta baixa e a lâmpada trêmula, o ar é mais discreto que na laje. Caio embala a música no grave, n**o Célio observa o movimento com o queixo, e Tainá me serve de lanterna pessoal — um passo à frente, três atrás. É o suficiente para que o mundo saiba que não estou só, mas que, ao mesmo tempo, sou dona do meu próprio espaço.
Ele está lá, onde marcamos. Não desceu para o tumulto, não quebrou o momento, à espera na fronteira que não vira manchete. Meu coração salta uma batida no instante em que nossos olhares se encontram. Sem chamar a atenção. Sem drama. Prioridade é a água.
— Boa noite. — A palavra nasce do canto da boca, com a força de um segredo que não precisa ser sussurrado para existir.
— Boa noite.
Um copinho aparece, recado do bar. Bebo um gole e percebo que a sede é antiga, anterior a ele, anterior ao baile: vem do tempo em que a casa me ensinou a respirar por intervalo.
— Como está a tua… costela? — pergunto, escolhendo uma parte do corpo para não perguntar a ele tudo que a esquina o obrigou a aprender.
— Em conversas com a cadeira — ele sorri curto. — Dói, mas ensina. — Passa a mão no corrimão, não em mim. — Entendi a regra da calçada. Sem atalho.
O grave troca de pele, a voz antiga entra por cima, Caio fala “respira” como quem devolve o alfabeto para os pulmões. Tainá mira a ponta da viela e recua meio passo; a lâmpada pisca, mas não cai. O cheiro de óleo e limão espremido faz a cena lembrar que o mundo segue, com ou sem beijo.
— Fui ao posto hoje — digo, e minha voz encontra um lugar calmo em mim. — Meia manhã, como combinado. Dora assina os papéis, mas eu é quem limpa curativo, conta gota, segura criança que tem medo de agulha. Eu quero isso. — Sinto a palavra “quero” esquentar as mãos.
— O mar tem uma maldade parecida — ele responde, atento. — Quando a onda passa, todo mundo acha que acabou. Não acabou. Fica sal na pele, força no ombro, respiro mais largo. O trabalho começa quando a foto termina.
— Meu pai não foi feito para foto também — digo, sem veneno. — Ele tenta. Às vezes com muro, às vezes com mão. Eu não quero fazer dele uma desculpa para tudo que eu sinto falta. Falta também é minha.
Ele assente como quem entendeu que não se trata de absolvição; trata-se de trilha.
— E a tua mãe? — ele pergunta devagar, sem enfiar a mão no meu fundo falso.
— Ausente como chuva adiada — respondo. — Dói menos quando a música está alta. Dói certo quando a música está baixa, como agora. — Dou de ombros. — Às vezes acho que escolho o posto para consertar nos outros o que eu não conserto em mim.
— Ninguém conserta mar — ele diz. — Navega. Aprende corrente, vento, hora de voltar. E, quando o mar te dá uma janela, você entra. Respeitando.
O silêncio que vem é do tipo bom. O corredor aceita a pausa, a laje abraça sem esmagar. Tainá ajeita a alça da bolsa — senha para a vida continuar — e me lança um olhar de cronômetro: duas músicas.
Nossos dedos se procuram, não por coragem, por aritmética: a distância pede meio centímetro a menos. Roçam. Pulso no pulso. O coração falha um compasso, e eu entendo com o corpo inteiro o que Nilda escreveu no bilhete: coragem não é barulho.
— Dora — ele se arrisca, como quem oferece nome falso para que eu guarde só o pulso real.
— Não hoje — corto, doce e firme. — Nada de nome. — E para não ficar pedra: — Eu volto.
Ele ri com os olhos, não com a boca.
— Eu espero. — A resposta tem a forma de compasso e linha do meio.
— Tenho medo do que essa cidade faz com quem espera — confesso, dando a palavra que a esquina costuma roubar. — A Rocinha marca quem corre e quem foge. Esperar aqui sempre parece entre-ato, e eu não quero ser intervalo na minha própria vida.
— Intervalo é onde a gente respira — ele devolve. — Não tem música sem vazio no meio. A gente se encontra nos vazios certos.
A lâmpada treme mais forte, moto estala na rua como relógio nervoso. n**o Célio surge, discreto, uma mão no rádio, outra no ar:
— Lateral aberta. Sem aglomero. — O tom organiza sem espantar. Duas meninas recuam, um vendedor reencaixa a caixa de isopor, a esquina volta ao modo sussurro.
— Minha amiga me salvou de virar manchete — digo, olhando de soslaio para Tainá. — Quando a maré virou, ela puxou. Eu quase falei meu nome. E seria um crime — contra mim.
— Nome é atalho quando a cabeça coça — ele concorda. — Hoje, a gente anda a rua inteira.
Eu sorrio. O sorriso tem a vibração de coisa certa em lugar proibido. Não peço mais do que posso pagar. Ele também não.
— O futuro? Não sei dizer o nome — confesso, a voz quase inaudível, morrendo na ponta da sandália. — Só sei os cheiros: álcool em gel, o café da beira da estrada, óleo de moto no final do dia, e a maresia que o vento traz para o morro. Sei as cenas: Dona Elza descendo a escada devagar, um bebê que se acalma no peito que já chorou muito, e meu pai aprendendo a ser discreto ao tentar cuidar. Nomear, porém... — balanço a cabeça. — Falta-me culpa e sobra-me afeto. Talvez a palavra seja caminho.
— Caminho é um bom nome — ele concorda. — Porque não precisamos defendê-lo, só precisamos percorrê-lo. Se a onda vier, a gente aceita; se não vier, a gente redefine a direção.
O refrão final atinge o ápice. Tainá me toca levemente na cintura, um lembrete sutil: a regra. Duas músicas terminam quando aprendemos a contar o tempo.
— No mesmo lugar de sempre? — ele pergunta, com didatismo.
— No mesmo silêncio — corrijo, e deixo escapar a frase que me ocupou a mente a tarde toda: — A gente se encontra onde a música não abafa o som.
Ele guarda como se fosse chave.
— Eu entendo.
— Então entende mais uma — peço, e minha língua escolhe a coragem que não faz barulho: — Eu quero você sem culpar ninguém por te querer. Nem ele. Nem eu.
— Eu me quero ao teu lado sem roubar você de você — ele devolve. — Se um dia o nome vier, que caiba. Se não vier, que não falte.
Dedos ainda alinhados — não entrelaçados —, a música cai. A laje aplaude redonda. Caio encerra sem fogos. Célio maneja a descida como mestre-sala de fluxo. Eu me afasto meio passo, ele também: de nós dois, a cidade não terá história para contar além do que fizemos certo.
— Água — ele oferece, gesto simples como vela acesa fora da igreja.
— Água — concordo, o copo encostando no meu lábio como se fosse benção do posto.
Tainá reaparece a nosso lado, âncora e maré no mesmo corpo.
— Acabou a janela — avisa, sem dureza. — Eu levo ela. Você fica.
— Eu fico — ele confirma.
— Eu vou — digo, mas deixo o pulso falar por nós: um toque breve, sem promessa larga, sem medo curto.
Caminhamos — eu e Tainá — pela trilha que Célio abre com a sobrancelha. Antes da esquina, olho de volta. Ele não move mais que o necessário: respeito tem coreografia.
Ao alcançar a rua, sinto o terço de Nilda no bolso. Coragem não é barulho. Repito para mim e para a cidade. O nome pode esperar; o pulso já sabe o caminho. E, no desenho que me leva para casa sem cena, escrevo por dentro a rota que me serve:
onde a música não grita, eu encontro ele. Onde a vida fala baixo, eu me encontro.