Isadora
O dia nasceu com cheiro de ferro passado e panela no fogo. Vera e Nilda andavam pela cozinha como quem arma quartel: toalha de linho, talheres em ordem militar, flores que fingiam primavera em meio a rádios chiando ordem. Breno e Ítalo apertavam as novas travas. O morro parecia segurar a respiração para o jantar de alianças.
— Vem cá, minha filha — Nilda pediu, chamando com a ponta dos dedos. Tudo nela é mão estendida, nunca empurrão. — Bolso.
Estendi o lado do vestido. Ela enfiou o terço e um papel dobrado minúsculo.
— Coragem não é barulho — repetiu, como se batisse o prego que me sustenta. — Se esquecer, lê.
Assenti. O coração batia numa cadência que eu já reconheço: modo sussurro por fora, alarme por dentro.
Sombra me esperava na sala, na frente do mapa que nunca sossega. O boné um pouco mais baixo que o costume, a coluna de quem empurra o mundo para caber numa rota. n**o Célio discretamente encostado, Vera com uma prancheta mental.
— Hoje você senta ao lado do senhor Dalmo — ele disse, sem girar a voz. — E conversa com o filho dele. Educação, nada de palco. Padre Remo vai estar. Coruja também. — Pausa. — Sorri e não briga comigo.
Traduzi: eu era moeda diplomática. Selo de “estamos bem.” Vitrine de equilíbrio. Preto no branco: poupar o surfista significava me pendurar na parede. O gosto na boca veio de ferro — não de sangue, de esmalte descascando.
— Pai… — comecei, e não chamei de “chefe” de propósito. — Eu não sou arranjo de mesa.
Ele respirou pela narina, como quem dosa sal.
— Você é minha filha. É família. E família se apresenta inteira quando alguém quer medir força. — Olhou por cima do meu ombro, mas era para mim. — Eu movo alianças, não guerras.
— E me move como bandeira — consegui dizer, sem faca, mas sem doçura. — Eu não vou derrubar sua mesa. Só não vou ser prato.
Célio arrumou o ar com os olhos. O olhar dele diz: “conduta vira senha”. Eu agarrei a frase por dentro. Sombra assentiu, mínimo, como quem aceita que a montanha também faz curva.
À noite, a casa virou palco sem luz. Chegaram senhor Dalmo (charuto, riso calibrado), Coruja (olhos que nunca desligam) e Padre Remo (silêncio que pesa). Vera servia com mãos de bailarina. Nilda fazia a mesa parecer domingo de mundo que não nos pertence.
Sentei onde mandaram — ao lado do filho de Dalmo, Tito, moço de camisa limpa e discurso pronto.
— Isadora, é? — ele arriscou, gentil demais.
— É. — Respondi como quem diz “boa noite” à chuva.
— Estuda? — insistiu.
— Estudo o posto, aprender a olhar sem roubar dor dos outros. — E sorri do tamanho do prato.
Tito pareceu achar graça. Dalmo me elogiou como se eu fosse trabalho bem feito. Padre Remo me ofereceu um “Deus te guarde” que coube no bolso do vestido. Coruja pousou a atenção em mim e passou adiante, listado.
Sombra conduziu a conversa como maestro que evita prato caindo. Falou em “diminuir barulho”, “respeitar fluxo”, “nada de manchete”. Não disse “badboy”, não disse “surfista”. Disse “quem ajuda velho fica anotado” — e todo mundo entendeu o recado que não tinha endereço.
A cada brinde, eu era janela: aberta para o que eles queriam mostrar, fechada para o que eu sou. Entendi ali, olhando a vela refletida no talher: poupar Lucas podia significar perder a mim.
A sobremesa veio com frutas e uma tentativa de piada sobre “futuros”. Tito ensaiou convite para “tomar um café” com a equipe dele, “conhecer negócio”. Eu mudei de assunto com a habilidade de quem aprendeu cedo a sair certo.
— Padre, o senhor ainda visita o abrigo na Rua 4? — perguntei, atravessando. — Estamos precisando de vacina lá. Vera está organizando.
Padre Remo me olhou como quem vê uma peça mover-se sem quebrar regra.
— Sim, minha filha. Posso levar. — E fechou a conversa onde ela ficou bonita: no trabalho, não em mim.
Sombra percebeu. Não se irritou ali. Guardou. Ele sempre guarda.
O silêncio que se instalou após a saída dos aliados era pesado, mas produtivo. Na arrumação pós-reunião, Célio cuidava do corredor, Vera juntava as taças, e Breno e Ítalo checavam o portão. Permaneci na sala, sozinho, encarando o mapa. A Sombra me alcançou, um sinal familiar de exaustão.
— Você me tirou de uma negociação com um padre — ele disse, um quase riso que não chegou a nascer.
— Eu te tirei de me usar como moeda — respondi, macia. — Paguei com outra coisa: serviço.
Ele coçou a barba inexistente. Não há barba, mas há o gesto.
— Não me afronta no meu palco.
— Não te afrontei. Mudei a luz. — A coragem encontrou sua forma. — Eu te ajudo a não virar monstro. Me ajuda a não virar vitrine.
A frase ficou entre nós dois como ponte estreita. Ninguém atravessou naquela hora.
No quarto, Nilda me esperava sentada na beira da cama, como mãe que não pergunta mas sabe. Fez sinal para o bilhete.
Abri. A letra redonda dizia:
“Coragem não é barulho.
Quem se cala para agradar morre de migalhas.”
Sentei no chão. Tainá mandou mensagem: “Respira”. Eu respondi: “Respiro. E decido.”
A decisão final veio clara, dolorosa e firme: ela iria recusar o papel meramente decorativo e fugir por 24 horas. O objetivo não era feri-lo, mas sim testar quem ela era longe da sombra do sobrenome. Não era um desaparecimento dramático de novela, mas um silêncio necessário para um ensaio. Sem o morro, sem a favela, sem o nome da família. A prioridade era: primeiro, respirar; depois, seguir em frente, na direção certa.
— Nilda — falei, baixinho. — Preciso sair por um dia. Sem cena. Sem ninguém. Quero ver se eu existo fora de Isadora de Sombra.
Os olhos dela encheram de um medo macio.
— Isso vai doer nele — avisou.
— Se eu fizer barulho, dói mais — respondi. — Se eu me calar, morro de migalha. Um dia. Eu volto.
— Então volta viva — ela disse, passando o polegar no meu queixo como se apagasse resto de batom. — E não leva orgulho, leva mapa. — Apontou o terço. — E reza.
Não dei detalhes. Não deixei rota pronta na língua de ninguém. Vera me cobriria no posto como “estágio extra”; Tainá faria pergunta boba no grupo certo para fingir que eu estava onde não estava. Célio… Célio perceberia. Ele sempre percebe. Conte com conduta, não com sorte.
Escrevi para Sombra um bilhete de uma linha, que deixei no espelho:
“Volto em 24h. Não é contra você. É por mim. — Isa.”
Deitei-me com o vestido ainda no corpo. O sono vinha aos trancos. Sonhei com o mar invadindo a Rua 1, arrastando rádio, apagando charuto, afogando a vela. Despertei no escuro que antecede a escuridão total.
Saí cedo, a casa m*l despertava. Vera bocejou um “Benção”; retribuí com um beijo no ar. Breno apenas viu o vulto do vestido e presumiu ser Nilda indo à padaria. Ítalo estava em meio a uma discussão com o entregador. Célio não estava no corredor — ou estava e me permitiu passar para observar quem sou longe do meu nome.
Na rua, a moto habitual sussurrou seu te vejo. Não a respondi com um gesto. Respondi com o passo. Calçada e linha do meio. Água primeiro na garrafa pequena. Sem atalhos.
Peguei o ônibus que desce como quem aprende a rezar enquanto caminha. Não ia para a laje, nem para a lona. Dirigia-me a um lugar silencioso: a orla vazia de um amanhecer qualquer, ou o posto no extremo oposto onde ninguém sabe que “Dora” é “Isadora”. Nome inventado, pulso verdadeiro.
Sentei-me perto da janela. A cidade desfilava sem disfarces: ferro-velho abrindo, padaria acendendo o forno, o mar ao longe como uma promessa que não precisa ser cumprida para existir. Li o bilhete de Nilda mais uma vez. Rezei com o terço entre os dedos. Chorei um pouco, discretamente.
Se eu poupar Lucas à minha custa, não salvarei ninguém. Se eu me perder, ele se tornará apenas um pretexto para o meu vazio. Não quero que ele seja culpa. Quero que ele seja um encontro, onde a música não é ensurdecedora.
O vapor na janela formou um desenho involuntário; passei o dedo e escrevi nele, só para mim: “Eu existo.” Em seguida, passei a mão e apaguei. Coragem não se manifesta com ruído.
O ônibus seguiu. Vinte e quatro horas para me escutar. Depois, eu retorno — e pago o preço do que disser no meu silêncio.