Capítulo 18 — Ladeira em Chamas

1731 Words
Lucas O primeiro estalo não é música. Não tem grave, não tem rima. É faca no pano do ar. O segundo vem um palmo depois, mais distante, mas suficiente para o corpo inteiro trocar de marcha. A laje prende a respiração como gente; Caio baixa o volume por instinto de quem lê clima melhor que meteorologista. E aí a cidade entra no modo que separa quem fica inteiro de quem quebra. — Abre a lateral! — n**o Célio já está no meio do corredor, braço estendido, rádio no ombro. — Sem correria! Sem pisa-pisa! O pânico quer provar que sabe dançar. Eu aperto a vontade no bolso e desço dois degraus do camarote. Rafa vem junto, par, sem pergunta. — Velhos primeiro — ele lembra, como se repetisse um mandamento que só serve quando o mundo fica estreito. A lâmpada fria do corredor pisca duas vezes e morre. A escuridão não é completa — tem tela de celular, tem luz de bar —, mas é o suficiente para as sombras crescerem de tamanho. O cheiro muda: suor mais ácido, perfume cortado, fritura virando metal. Adrenalina ajusta a nitidez do olho. — Você! — aponta Célio para mim, breve. — Escada velha. Dá apoio. Segura a mão, não o braço. — Copiado. O corpo sabe antes da cabeça onde ficar. Escada velha é a que dá para o beco com o poste torto. Já chego tirando gente da beira: dois adolescentes querendo descer pulando, uma moça de salto com a calma errada. — Pelo meio, família! — grito, voz baixa de quem aprendeu a não botar gasolina na noite. — Sem foto! Sem filmar! Olha o chão! A primeira senhora surge com o cabelo preso num coque corajoso e olhos muito abertos. Se chama Dona Elza porque todas as senhoras que seguram o mundo têm nome de Elza na minha cabeça. — Segura aqui, mãe — ofereço o antebraço, palma visível. — Um degrau de cada vez. Pensa que é reza: pai-nosso, ave-maria, amém. — Eu nunca gostei desse som — ela diz, trêmula. — Hoje o som gosta da senhora. — Sorrio com um canto; ela entende a licença. Atrás, um rapaz puxa a mãe pelo braço como quem puxa saco de feira. — Pelo antebraço, não! — corto. — Dói e ela cai. Segura na mão e na palavra: fala o próximo passo. Isso. Ele corrige, envergonhado. A mãe suspira um obrigada sem olho. A escada aceita mais um corpo. A cada passo, o chão avisa onde pode e onde não pode. Um menino com camisa do Flamengo — o mesmo da outra noite? — observa o rodapé por onde escorre água de um isopor derramado. Desliza fácil. — Joga açúcar! — alguém sugere, em pânico supersticioso. — Pano primeiro! — retruco. Rafa já aparece com um pano arrancado da banca. A gente seca corredor como quem estanca ferida. Funciona. Caio, lá em cima, mantém a voz baixa no microfone: — Calma, família. Respira. Luz já volta. — Ele constrói um tapete de melodia para a multidão caminhar em cima sem tropeçar no próprio medo. Do outro lado da laje, um arrasto pesado me chama. Seu Ademar, bengala torta, joelho teimoso, parou na metade da escada. Ele não enxerga direito. O neto, desesperado, tenta erguer o velho no colo. — Nem pensar — digo, chegando. — Joelho não gosta de pressa. Vem cá, Seu Ademar. Mão no meu ombro. O senhor manda o compasso. — Eu não corro — ele avisa, orgulhoso e ofendido. — Eu também não. — Nisso, a gente se reconhece. Um passo. Pausa. Outro passo. A escada vira metrônomo. n**o Célio abre um corredor de silêncio com duas palavras: “Abre bênção”, e as pessoas obedecem sem discutir gramática. É bonito de ver quando a comunidade decide não brigar com a própria vida. A lâmpada volta num solavanco e morre outra vez. Não é falha elétrica; é a noite testando nossos verbos. Eu sinto um par de olhos do alto, não desses curiosos que juntam história, mas de quem mede. Olho de volta só com o canto. No topo da escada de cimento, onde a sombra dobra, uma silhueta recortada. Boné baixo. Postura de quem segura mapa. Mesmo parado, o corpo parece conduzir a ladeira. Sombra. Não é o apelido de bairro; é ele. O dono do morro nos observa. Mede o estranho que não correu primeiro. Meu peito quer crescer; eu baixo. Não é hora de provar nada. É hora de guardar. Seu Ademar escorrega meio passo; prendo com a mão no ombro, não no braço. — Meu peso ainda é meu — ele protesta. — E o meu respeito é seu — respondo. Rafa reaparece, suor na testa. — Mais dois lá em cima, mãe e bebê. — A urgência corre junto, controlada. — A mãe tá no susto. — Traz pelo lado, sem passar perto da quina — digo. — Bebê no alto, mãe no baixo. Inverte o instinto. Ele entende. O instinto sempre manda agarrar o bebê como troféu. A técnica manda proteger a mãe para o bebê ganhar chão junto. Dois corpos descendem inteiros. Uma voz estoura fora do compasso: — É rajada! — grita um, errado. — É nada! — retruca outro, com pânico querendo palco. Célio corta: — Sem manchete! — e isso é ordem que vale mais que megafone. Eu sorrio, apesar do ácido na língua. Manchete não nos serve. Conduta sim. No bar, o bartender ergue uma garrafa d’água e aponta com o queixo: “Água primeiro?” Eu aceno. Ele espalha copos como quem distribui antídoto. Uma menina chora sem som. Passo o copo, aponto o chão: — Olha pro pé, amor. O corpo acalma quando o olho acha chão. Ela acalma. Queria ser poeta para escrever isso direito. Prefiro ser útil. Caio murmura a senha: — Respira. — E a laje obedece. O corre-corre perde fôlego, troca de passo. A música volta só o suficiente pra lembrar que o pânico não tem trilha. Chego ao final da escada com Seu Ademar. Rafa pega do outro lado, entrega para a neta com um gesto que selaria tratado. — Achei que ia cair — o velho admite, pequena vitória na voz. — Achou errado — respondo, e ele ri com o lado da boca que ainda acredita em graça. Volto. Ainda tem gente para recolher da borda, para indicar rota, para ensinar onde o corpo pesa errado. Célio e eu fazemos dobradinha, o rádio dele marcando o tempo. Ele me olha duas vezes do mesmo jeito: inventário. — Você — ele fala por fim, quando o pulso da laje volta a bater no normal. — Não correu primeiro. — Não é elogio, não é bronca. É livro-caixa. — Eu tinha coisa pra fazer — respondo, sem drama. — Tinha mesmo. — Ele aponta para a escada recém-vazia. — E fez certo. O olhar do alto ainda pesa. Levanto o queixo milímetros. Sombra não diz nada; não precisa. Mede. A sensação é de prova sem caneta. Penso nele como montanha: não dá para escalar com ego, nem dá para ignorar. Existir em montanha exige passo certo. E então vejo o que não devia procurar: um vulto de renda passando ao longe, no limite da minha visão. Máscara. Ela. Isadora sem nome, Dora com meu coração recém-nascido. Ela me olha por meio segundo — é o suficiente. Perguntas voam, respostas não têm asa. Eu não mexo. Tainá está com ela, anzol que puxa para a margem certa. — Andrade — Rafa cutuca, trazendo meu foco de volta. — Água. Você vai cair. Eu rio, meio tonto. Adrenalina cobra boleto no corpo quando acaba. Bebo metade da garrafa. O bar volta, as vozes voltam, o cheiro volta. A cidade desaperta as mãos. — Reabre a pista devagar — Célio avisa no rádio. — Sem “última música” hoje. O recado é vida. Caio entende e entrega mar em vez de tsunami. Eu amo esse cara. No bar, o bartender encosta o cotovelo no balcão: — A noite te viu, surfista. — Eu vi a noite também — respondo. — A gente se entendeu. — Cuidado para não se apaixonar por perigo com bom perfume. — Cheguei um pouco antes disso. — Sorriso curto. Sombra desce dois degraus do seu mirante silencioso e some pela porta lateral. O rastro dele é ordem, não ameaça explícita. Ele me viu. E eu sei que ele me mede não por discurso, mas por ato. — Você percebeu? — Rafa chega, cabelos colados na testa. — Percebi. — Eu fecho a garrafa. — Ele me viu não correr. — Mete a mão no ombro do amigo. — E eu vi que não correr não é heroísmo: é trabalho. Rafa sorri, cansado. — Bem-vindo ao traço fino que separa ambição de desastre. No canto, Seu Ademar levanta a mão para mim, pequeno aceno de homem que atravessou mais escadas do que eu. Respondo do mesmo tamanho. Tainá passa guiando Isadora para a saída, sem nome, sem cena. Ela não me dá adeus com a mão. Dá com o olho. Eu guardo como contrato. Caio encerra sem apoteose. Célio faz os últimos arranjos como maestro que não gosta de solo. Eu e Rafa esperamos a laje esvaziar, como quem fica para lavar forma depois do bolo. — Bora? — ele pergunta. — Bora. — Olho uma última vez para o alto onde Sombra estava. O concreto olha de volta. Na estreita viela, o motor da moto habitual soava em intermitências, uma mensagem rotineira: "te vejo". Meu silêncio era a resposta. Voltei a fixar o olhar na escada, agora em quietude, e absorvi a única promessa para a noite seguinte: não fugir primeiro, não me expor por vaidade, mas sim permanecer por necessidade. — Curiosidade atrai perigo, lembra-se? — Rafa me alertou com um toque, repetindo o aviso constante. — A conduta é o nosso salvo-conduto — retruquei. Iniciamos a descida. A íngreme ladeira, que minutos antes parecia incandescente, agora revelava apenas a exaustão da cidade. No íntimo, eu compreendia o critério dela para selecionar quem permanece: acompanha o indivíduo na escuridão e indaga, depois, sobre o uso que ele deu às suas mãos. Eu auxiliei idosos na escada. Não é um feito grandioso, mas hoje, foi o bastante. Voltarei amanhã. Sem buscar destaque ou ostentar um ar de risco. Apenas com o dever.
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