Lucas
A Rocinha aparece no para-brisa como um céu tombado sobre a cidade: luzes em degraus, casas empilhadas, ladeiras que sobem em espiral. O som chega antes da entrada — grave que vibra no peito, não no ouvido. Ligo o pisca, encosto onde o Caio combinou. Ele está com a mochila no ombro, fone num ouvido e a urgência mansa de quem sabe o que faz quando o relógio encosta nas duas da manhã.
— Chegou liso — ele sorri. — Tênis certo, camisa básica, ego no porta-luvas. Dá pra confiar.
— Ego ficou em casa limpando o espelho — respondo.
Rafa atravessa a rua com dois copos d’água.
— Hidrata — entrega um para mim. — E lembra: respeita o território. Sem gracinha, sem “sou amigo do DJ” na voz. Amigo do DJ fala baixo e paga o que bebe.
— Eu pago — digo, levantando o copo. — E falo baixinho.
Caio aponta o caminho.
— Rua 1. Depois dobra na escada da banca vermelha, passa pela viela da pipa azul, sobe mais dois lances e a laje abre. Se alguém perguntar, a senha é “vinil riscado”. No camarote, você fica à direita do palco. Se der r**m, me manda mensagem? Não. Se der r**m, me procura com os olhos.
— Copiado — respondo, travando o telefone no bolso da frente. — E, Rafa, se eu começar a virar lenda urbana, me puxa pela orelha.
— Puxo pelo juízo — ele rebate. — Bora.
Subimos com a cidade acesa por dentro. O morro, à noite, tem código próprio: crianças que ainda não foram dormir vendendo bala com orgulho de vendedor; uma senhora que frita pastel e manda benção para quem passa; moto subindo devagar por respeito ao fluxo. A cada esquina, o grave faz o corrimão tremer. Eu sorrio. Perigo, para mim, sempre teve gosto de adrenalina recém-aberta — aquele primeiro gole que acorda tudo.
Vem um vendedor com isopor no ombro.
— Vai querer, patrão? Água, energético, refri gelado.
— Água depois, irmão. Obrigado.
Rafa dá o ritmo.
— Passo curto, olhar gentil, nada de apontar. O morro te lê.
Eu deixo que me leiam: nada de relógio brilhando, corrente guardada, dinheiro trocado. Menos é senha.
Na esquina da banca vermelha, dois seguranças observam, rádio no ombro. Reconheço um deles: n**o Célio. Ele mede as pessoas como porteiro de universo.
— Boa noite — Caio avança, respeito no tom. — Vinil riscado.
Célio atende com meio-sorriso.
— Passa liso, DJ. Hoje a laje é tua. — O olhar desliza por mim e por Rafa, não ameaçador, só atento. — Boa noite, rapaziada. Entra certo, sai certo.
— Valeu, irmão — digo, curto.
A escada é uma coluna vertebral de concreto. Subimos, e o Baile do Fio se revela: laje larga, paredões de som como muralha, luzes que cortam a fumaça em faixas. A pista é um mar morno; o camarote, um barco alto. O ar cheira a amendoim, perfume doce, cerveja e eletricidade. O mundo estala.
— Você curte daqui por um tempo — Caio aponta. — Eu subo pra ligar as coisas. Duas horas cravado.
— Vai lá, maestro.
Rafa me dá um tapinha no ombro.
— Qualquer coisa, meu ombro é oficina. Ajusta nele e segue.
Pouso no camarote. O bartender me reconhece como “novo” sem me fazer sentir turista.
— O que manda?
— Uma dose pequena — respondo. — Daquela que não ensina a língua a tropeçar.
Ele ri.
— Tem língua tropeçando de soberba por aí. Bom ver quem gosta de ouvir a própria cabeça depois.
— Eu gosto de sair inteiro — digo, e deixo a grana no balcão. Sem fiado, sem cena.
Primeiras doses, primeiras promessas. Eu prometo a mim mesmo: não filmar, não virar protagonista, não esquecer de onde estou. Minha cabeça corre mapas: as saídas, a escada, o corredor por trás do palco. Nada de paranoia — só o respeito que o Rafa prega e que eu pratico para continuar colecionando histórias sem virar notícia.
A batida segura a pista, o DJ da a******a levanta a mão, alguém acende uma fumaça que dança junto com o laser. O público responde sem ensaio; o morro sabe a própria métrica. Eu observo, estudo, sorrio. Tem um casal que dança colado como se fosse última noite; tem uma menina com glitter no olho que canta cada verso como oração; tem um moleque vendo tudo de cima do muro, tentando decorar os passos para repetir amanhã.
Rafa aponta um grupo.
— Alí é a turma do Fio — murmura. — Se passar, cumprimenta com a cabeça e segue. Não atravessa conversa.
— Copiado.
De tempos em tempos, alguém encosta no camarote pedindo isqueiro, informação, sorriso. Eu dou os três em modo econômico. Minha arma sempre foi a conversa, e hoje ela tem calibre baixo. Um menino me oferece um cordão “por preço de amigo”; recuso com carinho, porque no morro “não” também tem coreografia. Ele entende.
O celular vibra no bolso. Caio: “Ligando os graves. 1:58.” Eu levanto o copo em direção ao palco como se ele pudesse me ver pelo canto do olho. O DJ da a******a agradece, a pista grita, o microfone chia. Dois da manhã.
As luzes diminuem, o grave aprofunda, e Caio entra com uma sequência que eu não sabia que precisava ouvir. Trap num abraço de funk, recorte de voz antiga que arrepia a nuca, virada que levanta as mãos de quem jurou que não ia levantar. Ele fecha a mão no ar: sobe todo mundo. E sobe.
— Tá vendo? — Rafa fala perto da minha orelha, para vencer o som. — Ele trouxe a laje pra dentro da música.
— Ele trouxe a vida pro meu peito — devolvo, sincero.
Eu gosto quando o corpo entende antes da cabeça. Sinto o chão vibrar, a camiseta colar nas costas, o sorriso vir do estômago. Olho a pista com a curiosidade de sempre — catalogo estilos, leio movimentos, reconheço lideranças silenciosas. O morro se organiza sem placa, e isso me fascina: símbolo, gesto, respeito.
Um grupo abre roda para um passinho; a roda cresce, alguém improvisa uma luz de celular, as palmas marcam o compasso, e por alguns minutos o mundo inteiro parece ter encontrado o mesmo ritmo cardíaco. Eu rio sozinho. É isso que eu venho buscar quando saio do meu roteiro: a sensação de participar de algo que não depende do meu nome.
Viro o rosto e, então, vejo.
Ela não chega; ela acontece. Morena, máscara de renda, batom escuro, cabelo preso num coque que deixa a nuca à mostra como convite e aviso. Não é uma salsa de palco; é uma dança que parece acelerar o ar e, ao mesmo tempo, colocar a minha cabeça em câmera lenta. Tudo ao redor segue normal — luz, gente, fumaça —, mas ela dobra o tempo. O quadril é precisão, os ombros conversam com a batida, e o olhar, por trás da máscara, faz o truque mais antigo do mundo: não me procura, mas me acha.
Eu sinto a adrenalina trocar de pele. Não é mais o perigo da ladeira, a senha no portão, o respeito às saídas. É o risco de querer ficar. Penso em Bruna falando de liberdade e medo com a mesma cara. Penso no Rafa dizendo que um dia eu entraria num lugar que não me deixaria sair “liso”. Penso em nada.
— Quem é? — Rafa pergunta, seguindo meu olhar.
— Uma música que eu não sabia que existia — respondo, meio rindo de mim mesmo.
Ele olha, mede.
— Máscara é disfarce, não destino. Vai devagar. Aqui olhar tem preço.
— Eu pago olhando menos — digo, mas já estou investido.
Ela gira devagar, a luz bate na renda, o batom brilha. Uma amiga puxa a mão dela, as duas riem, a batida encaixa. Ela fecha os olhos um segundo — um segundo — e eu reconheço ali uma coisa minha: alguém que respira melhor quando a vida faz barulho suficiente para calar o resto.
Eu encosto o copo no balcão, os dedos firmes. O corpo quer descer. A cabeça lembra as regras. A sedução, em mim, sempre foi jogo de leveza — mas hoje tem algo diferente: eu não quero conquistar; eu quero entender.
— Calma — Rafa ancora. — Duas músicas, você observa a maré. Depois, se ainda fizer sentido, desce. Sem empurrar o destino.
Concordo, mas meu coração já escolheu o compasso. Na pista, a morena DANÇA. E tudo em mim entra num tipo novo de zona de risco — aquela onde a adrenalina não vem do que pode me ferir, e sim do que pode me tocar.