Lucas
O mar me recebe como sempre recebeu os desajustados: com regras simples. Rezo para a água afogar a cabeça; ela devolve pensamento com oxigênio. Remo até a linha em que a areia vira memória e entro na direita que se arma limpa. Desço a parede, corto, subo, saio. Outra. Outra. A prancha obedece; o peito, não. A cada manobra, a morena mascarada volta como reflexo no vidro: a nuca exposta, o sorriso de canto, os olhos que pararam nos meus sem pedir cena. O corpo acerta a curva; a lembrança derruba meu equilíbrio.
— Acorda, Andrade — falo para mim, rindo do ridículo de conversar no meio da série.
No quiosque, Pedrão me entrega a água de coco.
— Hoje cê tá surfando e pensando, hein?
— Péssimo hábito — respondo. — Água leva o sal e deixa a cabeça cheia.
— Quando a cabeça decide ficar cheia, o mar vira espelho. — Ele dá de ombros. — Não briga com espelho.
Sento, bebo, deixo a brisa fazer seu trabalho. O telefone vibra com convites previsíveis: after em Ipanema, almoço no Jardim, “passa aqui pra ver o pôr do sol”. Nada me tira da imagem da máscara de renda e de um toque acidental que meu corpo nem viveu e, mesmo assim, jura ter sentido. Eu finjo que sou só fome de novidade; eu sei que não é.
Quando levanto, um motoqueiro estaciona do outro lado da calçada. Capacete espelhado, jaqueta comum. Não olha para mim, mas me percebe. É o tipo de atenção que não pesa de frente; pesa nas costas.
— Tudo certo? — Pedrão pergunta, vendo meu olho voltar.
— Só o mar. O resto é cenário.
Saio. O capacete vira na minha direção tarde demais para ser inocente. Viro a esquina. O espelho do retrovisor da moto acompanha a curva como olhos atrás de máscara.
***
Mais tarde, encontro o Rafa no boteco miúdo que a gente usa quando a vida pede mesa baixa.
— Você tá com cara de quem brigou com onda — ele avalia, puxando a cadeira. — E perdeu.
— Perdi pra uma música que usa máscara — confesso, sem metáfora. — Rafa, eu não quero “só mais uma história”.
Ele levanta a sobrancelha.
— Guarda essa frase. Ela cobra boleto depois.
— Eu pago — digo, sincero. — Eu quero descobrir o nome dela sem destruir lugar nenhum, sem postar, sem prêmio. Só… nome. E a pessoa por trás do nome.
— Isso tem preço no morro — ele lembra. — Olhar é convite, lembra?
— Eu não tô convidando para festa. Tô pedindo licença no idioma certo.
Rafa respira, pensa, solta:
— Então aprende a esperar. E, principalmente, aceita que pode dar em não.
— Eu aceito o não. — Paro, sustentando. — Só não aceito mentir pra mim.
Ele ri com um pouco de pena e muito carinho.
— Então vamos fazer o que dá para fazer: voltar com o Caio, esperar sem forçar, não cortar caminho. Se o morro quiser te engolir, te engole por inteiro; se quiser te carregar, te carrega com o pé no chão.
Eu balanço a cabeça. O telefone vibra. Caio: “Hoje, set cedo na laje pequena. Sem fogos, sem loucura. Você vem?”
Respondo: “Vou esperar. Sem forçar.”
No ponto combinado, Caio me recebe com o fone num ouvido e a pressa tranquila de quem tem horário marcado com o coração da cidade.
— Passa liso, Andrade — ele indica o caminho. — Hoje é laje menor, mas a regra é a mesma. Célio já sabe que você vem. Nem hostil, nem amigo. Território é território.
— Mapa na cabeça — digo. — Sem atalho.
A subida é outra, mas o cheiro é o mesmo: churrasco, fritura, laje molhada, perfume doce. A Rua 1 de lá vira outra Rua 1 aqui, como se o morro falasse dialetos. n**o Célio aparece no início da escada, rádio no ombro, o olhar que pesa sem humilhar.
— Boa noite — falo. — Respeito no bolso.
— Todo mundo diz isso na primeira vez — ele devolve, neutro. — O morro acredita na segunda.
— Então eu volto.
Ele me mede por um segundo que não termina em ameaça. Só avalia. Abre espaço com o queixo.
— Camarote é ali, mas não sobe achando que enxerga mais. Às vezes ver de perto é entender de longe.
— Entendido.
Entramos. A laje é menor, o som bate com menos muralha, as conversas passam por entre as músicas, e a viela lateral parece um pulmão. Subo um degrau, só um, e deixo a visão arrumar meus nervos. Caio testa os graves, o público responde com cabeça, e eu sinto que minha vigilância interna não desligou. Os olhos varrem as bordas, a pele marca a presença de um homem de boné encostado no poste, outro na mureta, um terceiro que finge procurar sinal no celular. Nada de caricatura. Atenções normais somadas dão uma anormalidade: estão me vendo.
— Você sentiu? — pergunto ao Rafa, quando ele chega com duas águas.
— Senti — ele admite. — Mas não é cerco. É curiosidade com manual de regra. Um cara que volta precisa ser lido. Faz parte.
— Lido eu topo. Previsto eu não.
— Então não seja previsível no que compromete. — Ele encosta o ombro no meu. — E não força o destino.
Caio entra no set com elegância. Na pista, a vida se socializa rápida: um casal discute baixinho, dois meninos ensaiam o passinho, uma senhora balança o copo como quem dirige orquestra. Eu respiro pela barriga, proibido de ter pressa. O corpo sabe onde estou; a cabeça repete o nome que ainda não tem dono.
A máscara aparece por um segundo no meu pensamento, e meu peito troca de marcha. Eu a quero ver sem transformar isso num assalto de olhar. Hoje, ela pode não vir. Tudo bem. Eu vim para aprender o lugar até o sim ou o não chegarem.
— Tá pronto para esperar? — Rafa insiste.
— Tô. — Bebo um gole. — E tô pronto para descobrir sem destruir.
Uma moto rabisca o beco ao lado e apaga, farol rápido. O mesmo movimento da manhã. Não é prova; é padrão. Sinto o recado não dito: “Te vemos”. Engulo a ansiedade como quem engole espinho com água. Não corro. Não reajo. Respeito.
Nego Célio surge a dois passos, sem ruído. Encosta o cotovelo no corrimão.
— Quando a noite olha pra você, você olha pra noite. Sem peito estufado. — Ele fala sem me olhar. — E sem abaixar a cabeça.
— Direção de trânsito — brinco, baixo.
— Direção de vida. — Ele some de novo, conduzindo um microcaos perto do bar com dois gestos e um “chega junto, família”.
O set cresce. Caio chama no microfone: “Respira”, e a laje obedece. Eu obedeço. O motoqueiro reaparece no recorte entre duas casas e desaparece como se nunca tivesse existido. Não sei se é paranoia, se é o braço comprido de alguém que tem por hábito olhar por cima do muro. Eu sinto.
— Cê tá pálido — Rafa observa, meio sério. — Quer sair?
— Não. — Olho a pista. — Quero ficar do jeito certo.
Ele sorri, me dá um tapinha na nuca.
— Esse “jeito certo” você aprende aqui. Com erro pequeno e acerto grande.
Uma menina esbarra no meu braço, pede desculpa com olhos e sorriso. Eu respondo com o mesmo idioma. Não há máscara de renda em lugar nenhum, hoje. A ausência, curiosamente, me alivia: explica pra mim mesmo que o que me traz aqui não é caça, é compromisso com o que eu disse ao meu amigo — não quero só história.
— E se ela não vier mais? — Rafa lança, como quem testa freio.
— Então o nome dela fica preso na música — respondo, com calma. — E eu continuo indo aonde a música me ensina respeito.
Ele avalia, gosta, brinda com água.
— Assim, dá.
No fim do set, Caio encerra com uma sequência que baixa o BPM e sobe a pele da laje. Palminhas marcam, uma bandeira balança na ponta do varal, o morro faz silêncio bonito por três segundos. Eu não saio correndo. Eu não desço atrás de sombra. Eu espero.
Nego Célio reaparece, agora mais perto. Nem sorriso, nem carranca.
— Andrade, né?
— É.
— O morro devolve o que recebe. Volta certo que ele te entende rápido.
— Tô aprendendo — digo.
Ele assente um milímetro. Nem amigo, nem inimigo. Árvore que observa quem passa mais de uma vez.
Na descida, a viela cheira a óleo e pastel. A moto liga em algum canto e some. Não há ameaça, há recado. Sinto que alguém me vigia e, pela primeira vez em muito tempo, isso não vira pânico; vira responsabilidade. Se eu quero o nome dela, eu preciso merecer ver sem ser visto de um jeito errado.
No carro, respiro, deixo o volante encaixar na mão. O mar não afogou a cabeça. A laje lavou. O resto é trabalho de quem escolhe ficar inteiro.
— Eu volto — digo ao retrovisor, como se o morro morasse ali.
E a cidade, do jeito dela, ouve.