Isadora
Ensaios no espelho sempre começam pelo cabelo. Prendo em um coque alto, bem firme, como quem ancora uma promessa. O rosto fica mais exposto; gosto de ver os ossos da minha vontade. Passo o batom escuro com cuidado de cirurgiã: borda por borda, contorno que me devolve a coragem que finjo ter. A máscara de renda espera ao lado, leve como uma mentira bonita.
Fecho os olhos por um instante e escuto a casa. O chiado dos rádios, vozes truncadas, passos disciplinados. O mundo do meu pai gira com precisão de relógio; eu só quero três horas fora do ponteiro. Quando abro os olhos, encontro Dona Nilda no batente, o avental limpo, o olhar misto de benção e preocupação.
— Cabelo preso, batom escuro, segredos na mão — ela comenta, entrando devagar, como se respeitasse um rito. — Você fica mais você quando tenta ser outra.
Sorrio, sem defesa.
— Não estou tentando ser outra, Nilda. Só uma versão de mim que possa respirar sem pedir licença.
Ela se aproxima, ajeita um fio rebelde que escapou do coque, e me entrega um pequeno terço de madeira.
— Você não é seu pai. — Diz como quem crava a frase num lugar fundo. — Leva. Não é escudo contra bala, mas às vezes segura tempestade por dentro.
O peso do terço na minha palma é desproporcional ao tamanho. Beijo sem fazer o sinal da cruz — a fé que tenho não gosta de plateia — e escondo o cordão no sutiã, perto do coração.
— Vai ser rápido — prometo. — Entra, dança um pouco, sai. Dora e mais nada.
Ela morde a boca, lembrando-se de quando eu era pequena e pedia para dormir na casa de uma amiga que ela já tinha ligado antes. Nilda sempre ligou antes, mesmo quando eu não sabia. Agora, não pode. É isso que nos corta.
— Eu vou cobrir tua saída — avisa, baixinho. — Falo com a cozinha, puxo teu pai para jantar mais cedo, invento sobremesa. Mas volta inteira. Se der r**m, se abaixa. Se alguém perguntar, você foi dormir cedo com dor de cabeça, e quem quiser que discuta comigo.
— Obrigada. — Abraço com gratidão que me aperta a garganta. — Eu sei o que arrisco em você.
— Eu te ganhei de presente quando tua mãe partiu — ela lembra, apertando meu rosto entre as mãos. — Presentes a gente guarda na parte segura da casa. Vai e volta.
Respiro fundo. Tainá me espera no beco lateral. A saída é cronometrada: descemos pela escada de serviço, passamos pela lavanderia entre cestos de roupa e cheiro de sabão, e paramos atrás da porta que dá para a área externa, onde um carro descarrega caixas de mantimentos. Nilda acena para o motorista; entra e sai gente, e nos tornamos parte do fluxo — duas funcionárias, duas sombras.
O portão range. O ar da rua me invade com cheiro de fritura e noite: churrasquinho, pastel, gasolina, suor, perfume doce. Lá em cima, na direção da laje do Fio, um feixe de luz rasga o céu do morro; o som ainda não estourou, mas a batida já vibra no concreto, como coração acelerado antes do beijo. Tainá encosta o ombro no meu, confere minha máscara e alinha minha postura como se a vida exigisse balanço de ombros.
— Telefone no modo avião quando chegarmos na esquina — ela reforça, repetindo nossas regras como mantra. — Sem olhar longo, sem copo aberto, sem conversa fora do combinado. Você dança comigo e, se eu falar, a gente sai na hora.
— Sim, senhora — brinco, disfarçando o tremor interno.
— E respira — ela completa, pressionando meus dedos. — O mundo é grande demais pra você caber no medo que colocaram em você.
Descemos acompanhando a carona no fluxo da noite. Em cada esquina, um microcosmo: crianças apostando corrida com chinelo arrastado, uma senhora na janela reclamando do barulho e sorrindo porque o barulho é vida, um menino vendendo trufas, dois rapazes discutindo quem canta melhor naquela base. Ando entre becos com a naturalidade de quem nasceu aqui e a cautela de quem aprendeu que olhar fixo tem preço. Minha cidade inteira cabe numa ladeira; amo e temo isso na mesma medida.
Na primeira curva, um grupo de rapazes bate papo com o n**o Célio. Ele me vê de relance. O coração ameaça pular do peito, mas Tainá me puxa um centímetro para trás, de modo que minha máscara e a sombra me deem anonimato.
— Boa noite, Célio — ela diz, confiante, num tom que não pede licença nem desafia. — A gente vai pela Rua 1.
— Rua 1 é caminho — ele assente, sem interrogar, mais ocupado com o rádio preso no ombro. — Hoje o baile vai estar grande. Oi, Dora. — Joga num meio-sorriso. O nome falso escorrega da boca dele como código válido. Sinto o sangue gelar.
— Oi — respondo curto, treinando a primeira palavra de uma pessoa que não sou. Se ele percebe, não demonstra. Às vezes, aqui, o cuidado também é disfarce.
Seguimos. A Rua 1 é um rio de gente. Meninas com brilho nos olhos, meninos com correntes que estalam no ritmo, tias com copos de plástico dando risada de alguma piada antiga. O Baile do Fio acende as casas como se fossem lanternas sobrepostas; as cores vibram, a laje promete dança. O morro sabe dançar desde antes de aprender a fugir.
Quando viramos na última esquina antes da laje, meu celular vibra. Um choque seco percorre minhas costas. Tainá estreita os olhos.
— Eu disse para colocar no avião na esquina — ela lembra.
— Eu ia pôr agora — respondo, já puxando o aparelho do bolso, arrependimento queimando a ponta dos dedos.
A tela mostra número desconhecido e uma mensagem curta, sem foto, sem saudação:
“Te vejo.”
O mundo dá um passo para trás. A batida do som parece se afastar um palmo, o ar fica ralo, as pernas pesam. A frase é controle velado; não precisa de assinatura. A linguagem do meu pai às vezes cabe em duas palavras. “Te vejo.” Ele não diz “não vá”. Nem precisa. Ele lembra que seus olhos chegam antes de mim.
Tainá lê a mensagem por cima do meu ombro. A mão dela aperta meu pulso. Sua voz muda de registro: menos amiga, mais piloto.
— Apaga. Modo avião agora.
Eu obedeço. O ícone do avião sobe no canto da tela como um salva-vidas que chegou depois da onda. O coração, no entanto, ainda está preso numa arrebentação invisível.
— Ele sabe? — pergunto, sem conseguir esconder o tremor.
— Ele sempre sabe — ela responde, verdadeira. — A pergunta é: você entra sabendo que sabe, ou volta e entrega as rédeas?
Fecho os olhos por dois segundos. Sinto o terço encostar no osso do esterno. Você não é seu pai. Não sou. Mas sou a filha dele, e esse vínculo dança comigo, mesmo quando a música não toca.
Abro os olhos. A luz da laje escorre, convida. Quero dançar. Não para afrontar; para existir. As regras que estabelecemos foram para isso: entrar, respirar, sair. A mensagem vira sinal, não sentença.
— Eu entro — digo, com a calma que precisei fabricar. — Três horas. Sem foto, sem nome. Se você disser “agora”, eu saio.
Tainá assente. Puxa a máscara até ajustar o elástico atrás da minha orelha, confere meu batom como quem confere uma armadura, e sorri de canto.
— Então vamos. Dora, fica perto. Isadora, fica viva.
Rimos sem som. Damos os passos finais. A laje abre diante de nós em luz quente e batida funda. O mundo, por um instante, parece esquecer meu sobrenome. Eu subo como quem pisa uma ponte estreita entre duas margens: de um lado, a casa que respira por códigos; do outro, a noite que respira por música.
No bolso, o celular dorme no avião. Na pele, o terço vibra como uma promessa antiga. Na cabeça, a frase de Nilda acende: eu não sou meu pai. O morro, atento, decide se me deixa passar.
E a batida começa.