Lívia
Acordei com a inquietante sensação de não ser mais dona de mim.
O quarto, de um branco excessivo e estéril, era gélido. Sem quadros ou espelhos, apenas um colchão gasto no chão, uma coberta áspera e um travesseiro fino, impregnado de desinfetante. A ausência de janelas impedia qualquer som externo.
Estava viva, mas cada fibra do meu ser clamava pela morte — ou, no mínimo, pela perda da crença de que minha vida ainda me pertencia.
Levantei-me devagar, a cabeça pesada pelo medo, pela fome ou pela raiva crescente que me consumia.
Tentei abrir a porta. Trancada.
Bati com força, gritando: — Ei! Abre essa porta!
Silêncio.
Bati de novo, a respiração ofegante, o peito em chamas.
— Eu não sou propriedade de ninguém, ouviu?! Não sou mercadoria!
Ninguém respondeu.
Sentei-me novamente no colchão. Meus olhos ardiam, mas recusei-me a chorar. Não por ele. Não ali.
Era exatamente isso que ele queria: que eu me quebrasse, que implorasse.
Micael Torres, o senhor do morro, o homem que ditava regras e tratava vidas como moedas, comprando e vendendo silêncios, agora se considerava meu dono. Pelo menos, era o que ele pensava.
Mas eu não me entregaria facilmente. Resistiria, nem que fosse apenas por dentro.
Horas depois, a porta rangeu e se abriu. A luz do corredor invadiu o quarto como uma faca, e com ela, um homem alto, vestido de preto, entrou sem dizer uma palavra, apenas apontando para fora.
Levantei-me. Meus músculos protestaram, a boca seca. Mas obedeci.
O corredor era amplo e silencioso, câmeras em cada canto. Cada passo ecoava. O capanga me guiou até uma sala que parecia uma fusão de escritório e sala de interrogatório. Lá estava ele: Micael.
Sentado em uma cadeira de couro, pernas abertas, cotovelos nos joelhos, como um rei inspecionando seu novo brinquedo.
— Senta.
O tom era calmo, mas inquestionável. Sentei-me.
Ele me observou por um longo tempo, o silêncio entre nós era quase tangível.
— Dormiu bem? — ele perguntou.
Permaneci em silêncio.
— Já começou a desobedecer de novo?
— Eu não vim aqui por vontade própria — respondi, com a voz firme.
Ele riu, um som baixo e cínico. — Ninguém vem. Mas todos aprendem a ficar.
A frase me causou calafrios. Ele se levantou e caminhou lentamente até mim, passos precisos, presença sufocante.
Parou atrás de mim. Senti o calor de seu corpo se aproximando, sua respiração perto do meu pescoço.
— Você sabe por que está aqui? — sussurrou.
Assenti, os olhos fixos no chão.
— Fale.
— Minha mãe… devia dinheiro. Você me pegou como pagamento.
— Como moeda. — Ele confirmou. — E sabe o que se faz com uma moeda?
Não respondi.
— Se usa. Do jeito que quiser. Até ela não valer mais nada.
Minha mandíbula travou.
Ele passou um dedo pela minha nuca, devagar. Meu corpo inteiro enrijeceu. O toque era leve, mas carregado de poder. Ele testava limites, e eu sabia que qualquer reação errada seria usada contra mim.
— Mas antes de usar… a gente ensina a funcionar. E você vai funcionar do meu jeito, entendeu?
— Eu não sou máquina — rebati, a voz tremendo de raiva.
Ele deu a volta e parou diante de mim, inclinando o rosto para o meu.
— Não. Você é propriedade. E eu cuido do que é meu.
As palavras me queimaram.
Propriedade.
Nunca imaginei ouvir isso dirigido a mim. E o pior: dito com tanta calma, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Você vai me obedecer — ele continuou — até isso parecer normal. Vai aprender a olhar nos meus olhos só quando eu permitir. Vai comer quando eu mandar. Vai falar quando eu deixar. E quando eu quiser silêncio… você vai se calar.
Fechei os punhos.
— E se eu não quiser?
Ele sorriu, mas os olhos estavam frios.
— Você quer viver?
Meu coração parou por um segundo.
Era isso. Sem me bater. Sem gritar. Sem levantar a voz. Ele dominava com palavras, com o olhar, com a certeza de que, se ele quisesse, eu sumiria sem deixar rastro.
— Começamos hoje — disse ele, voltando à cadeira. — Primeira lição: confiança.
— Confiança? — cuspi. — Em você?
— Não. Em mim, você vai obedecer. A confiança é em você mesma… em não fazer merda. Vamos ver se consegue cumprir uma ordem simples.
Ele apontou para a bandeja sobre a mesa. Havia pão, queijo, suco.
— Coma.
Franzi a testa. Era só isso?
— Não está envenenado, princesa. Mas se quiser morrer de fome, o problema é seu. Isso aqui funciona com regras. E regra número um: você come quando eu digo. E agora eu disse. Então… coma.
Fui até a bandeja, a mão trêmula. Cada mordida tinha gosto de derrota.
Ele me observava. Não como um homem assistindo uma mulher comer, mas como um dono observando se o cachorro aprendeu o truque.
Quando terminei, ele se levantou.
— Vai voltar pro quarto. Mais tarde, quero você pronta. Roupa em cima da cama. Você vai vesti-la. Sem questionar.
— Pra onde eu vou?
— Aonde eu mandar.
— Vai me vender?
Ele se virou, riu pelo nariz e respondeu sem olhar:
— Não. Te vender seria fácil demais. E você… eu vou manter por perto. Tem coisas que só se aprende com convivência. Você vai descobrir.
Voltei ao quarto.
A roupa estava lá: um vestido preto, justo, curto. Mais maquiagem, salto e até uma gargantilha fina com uma argola de metal no centro.
Engoli em seco. Era humilhação com etiqueta.
Sentei no colchão com o vestido nas mãos. Ele me moldava. A cada ordem, a cada silêncio imposto, a cada toque que não era violência, mas dominação.
Ele não precisava me bater para me dobrar. Ele fazia isso com o olhar. Com a ausência de escolha. Com a certeza de que ali, no morro, ele era Deus.
E eu era apenas mais uma alma entregue como moeda de troca.
Mas no fundo do meu peito, uma parte ainda gritava. Ainda resistia.
E essa parte… eu ia proteger com todas as forças. Mesmo que ele tentasse quebrar cada pedaço de mim.