Capítulo 2

1026 Words
Lívia Acordei com a inquietante sensação de não ser mais dona de mim. O quarto, de um branco excessivo e estéril, era gélido. Sem quadros ou espelhos, apenas um colchão gasto no chão, uma coberta áspera e um travesseiro fino, impregnado de desinfetante. A ausência de janelas impedia qualquer som externo. Estava viva, mas cada fibra do meu ser clamava pela morte — ou, no mínimo, pela perda da crença de que minha vida ainda me pertencia. Levantei-me devagar, a cabeça pesada pelo medo, pela fome ou pela raiva crescente que me consumia. Tentei abrir a porta. Trancada. Bati com força, gritando: — Ei! Abre essa porta! Silêncio. Bati de novo, a respiração ofegante, o peito em chamas. — Eu não sou propriedade de ninguém, ouviu?! Não sou mercadoria! Ninguém respondeu. Sentei-me novamente no colchão. Meus olhos ardiam, mas recusei-me a chorar. Não por ele. Não ali. Era exatamente isso que ele queria: que eu me quebrasse, que implorasse. Micael Torres, o senhor do morro, o homem que ditava regras e tratava vidas como moedas, comprando e vendendo silêncios, agora se considerava meu dono. Pelo menos, era o que ele pensava. Mas eu não me entregaria facilmente. Resistiria, nem que fosse apenas por dentro. Horas depois, a porta rangeu e se abriu. A luz do corredor invadiu o quarto como uma faca, e com ela, um homem alto, vestido de preto, entrou sem dizer uma palavra, apenas apontando para fora. Levantei-me. Meus músculos protestaram, a boca seca. Mas obedeci. O corredor era amplo e silencioso, câmeras em cada canto. Cada passo ecoava. O capanga me guiou até uma sala que parecia uma fusão de escritório e sala de interrogatório. Lá estava ele: Micael. Sentado em uma cadeira de couro, pernas abertas, cotovelos nos joelhos, como um rei inspecionando seu novo brinquedo. — Senta. O tom era calmo, mas inquestionável. Sentei-me. Ele me observou por um longo tempo, o silêncio entre nós era quase tangível. — Dormiu bem? — ele perguntou. Permaneci em silêncio. — Já começou a desobedecer de novo? — Eu não vim aqui por vontade própria — respondi, com a voz firme. Ele riu, um som baixo e cínico. — Ninguém vem. Mas todos aprendem a ficar. A frase me causou calafrios. Ele se levantou e caminhou lentamente até mim, passos precisos, presença sufocante. Parou atrás de mim. Senti o calor de seu corpo se aproximando, sua respiração perto do meu pescoço. — Você sabe por que está aqui? — sussurrou. Assenti, os olhos fixos no chão. — Fale. — Minha mãe… devia dinheiro. Você me pegou como pagamento. — Como moeda. — Ele confirmou. — E sabe o que se faz com uma moeda? Não respondi. — Se usa. Do jeito que quiser. Até ela não valer mais nada. Minha mandíbula travou. Ele passou um dedo pela minha nuca, devagar. Meu corpo inteiro enrijeceu. O toque era leve, mas carregado de poder. Ele testava limites, e eu sabia que qualquer reação errada seria usada contra mim. — Mas antes de usar… a gente ensina a funcionar. E você vai funcionar do meu jeito, entendeu? — Eu não sou máquina — rebati, a voz tremendo de raiva. Ele deu a volta e parou diante de mim, inclinando o rosto para o meu. — Não. Você é propriedade. E eu cuido do que é meu. As palavras me queimaram. Propriedade. Nunca imaginei ouvir isso dirigido a mim. E o pior: dito com tanta calma, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Você vai me obedecer — ele continuou — até isso parecer normal. Vai aprender a olhar nos meus olhos só quando eu permitir. Vai comer quando eu mandar. Vai falar quando eu deixar. E quando eu quiser silêncio… você vai se calar. Fechei os punhos. — E se eu não quiser? Ele sorriu, mas os olhos estavam frios. — Você quer viver? Meu coração parou por um segundo. Era isso. Sem me bater. Sem gritar. Sem levantar a voz. Ele dominava com palavras, com o olhar, com a certeza de que, se ele quisesse, eu sumiria sem deixar rastro. — Começamos hoje — disse ele, voltando à cadeira. — Primeira lição: confiança. — Confiança? — cuspi. — Em você? — Não. Em mim, você vai obedecer. A confiança é em você mesma… em não fazer merda. Vamos ver se consegue cumprir uma ordem simples. Ele apontou para a bandeja sobre a mesa. Havia pão, queijo, suco. — Coma. Franzi a testa. Era só isso? — Não está envenenado, princesa. Mas se quiser morrer de fome, o problema é seu. Isso aqui funciona com regras. E regra número um: você come quando eu digo. E agora eu disse. Então… coma. Fui até a bandeja, a mão trêmula. Cada mordida tinha gosto de derrota. Ele me observava. Não como um homem assistindo uma mulher comer, mas como um dono observando se o cachorro aprendeu o truque. Quando terminei, ele se levantou. — Vai voltar pro quarto. Mais tarde, quero você pronta. Roupa em cima da cama. Você vai vesti-la. Sem questionar. — Pra onde eu vou? — Aonde eu mandar. — Vai me vender? Ele se virou, riu pelo nariz e respondeu sem olhar: — Não. Te vender seria fácil demais. E você… eu vou manter por perto. Tem coisas que só se aprende com convivência. Você vai descobrir. Voltei ao quarto. A roupa estava lá: um vestido preto, justo, curto. Mais maquiagem, salto e até uma gargantilha fina com uma argola de metal no centro. Engoli em seco. Era humilhação com etiqueta. Sentei no colchão com o vestido nas mãos. Ele me moldava. A cada ordem, a cada silêncio imposto, a cada toque que não era violência, mas dominação. Ele não precisava me bater para me dobrar. Ele fazia isso com o olhar. Com a ausência de escolha. Com a certeza de que ali, no morro, ele era Deus. E eu era apenas mais uma alma entregue como moeda de troca. Mas no fundo do meu peito, uma parte ainda gritava. Ainda resistia. E essa parte… eu ia proteger com todas as forças. Mesmo que ele tentasse quebrar cada pedaço de mim.
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