O Legado

615 Words
Rael. O sol nascia cuspindo fogo sobre as telhas do morro, tingindo o céu de tons de laranja e vermelho. Para mim, era só mais um dia. O mesmo de sempre. O cheiro de maconha queimada misturado com café fresco e o ronco dos motores das motos subindo e descendo as vielas. O som da vida aqui era assim: barulho, movimento, tensão. Sempre. Eu estava na laje da boca, a coronha do fuzil apoiada no ombro, observando o movimento. Meus "crias" se espalhavam pelos pontos estratégicos, olhos atentos, sempre prontos. Depois que meu pai caiu, há uns quinze anos, a responsabilidade do morro, da quebrada, caiu nas minhas costas. Eu era só um garoto, mas não tive escolha. Ou assumia, ou virava pó. Escolhi a primeira opção. E me tornei o Rael, o Don. Aquele que se temia, o que mandava, o que resolvia. Quase trinta anos nas costas e tem hora que ainda me pego cansado dessa porr@ O bom de ser o chefe é que tenho respeito. Mando e desmando nesse morro. Aqui eu sou a lei. E não importa o que aconteça, dentro do meu morro, todo mundo tem que andar na linha, sobre as minhas regras e sobre o meu comando. — Bom dia, chefinho — a voz rouca do Cabeça chegou aos meus ouvidos. Ele se aproximou, estendendo um copo de café preto. Forte, do jeito que eu gostava. — Dia — respondi, pegando o copo sem desviar o olhar do movimento lá embaixo. Ele era uns dos únicos homens que tinha uma certa liberdade para falar comigo — Alguma novidade? Cabeça deu de ombros. — Nada demais. Uns boatos de polícia lá embaixo, mas nada de concreto. E o de sempre: o Zé Macaco reclamando que o ponto dele tá fraco. — Zé Macaco é fraco — resmunguei. — Se não sabe segurar o que é dele, vai perder. Lei da rua. E eu não vou fazer nada. Ele não quis um ponto? Então que se vire. Fica de olho porque não quero problemas com gente que não sabe fazer o próprio trabalho. — Sei disso. — E nada de aliviar dividias, Cabeça. — Qual é Rael? Está me estranhando? Sabe que eu não dou mole para esses filhos da put@ — Eu sei. É por isso que você está aqui. — zombo. Mulheres, dinheiro, droga. Essa era a minha rotina, na mesma medida. Não que eu me importasse com nenhuma delas em particular. Eram só acessórios do poder, provas da minha posição. As minas vinham fácil, o dinheiro fluía, e a droga... bem, a droga era o que movia a engrenagem. Eu não usava, não precisava. Meu vício era outro: controle. Manter tudo funcionando, manter a ordem, manter o respeito. Lembro de quando meu pai ainda estava vivo. Ele me ensinava a atirar, a negociar, a desconfiar de tudo e de todos. "Aqui no morro, Rael, a única pessoa em quem você pode confiar de verdade é em você mesmo. E talvez, nos seus irmãos de sangue. No resto, nunca." As palavras dele ecoavam na minha cabeça, a cada decisão, a cada enfrentamento. Havia momentos, muito poucos, que eu me pegava olhando para o horizonte, para as luzes da cidade lá embaixo, tão diferentes das nossas. O asfalto liso, as construções imponentes. Um mundo que eu não conhecia, e nem fazia questão de conhecer. Aquele era o meu mundo. Aquele era o meu trono. E eu estava pronto para defender cada centímetro dele, custe o que custar. Qualquer um que ousasse questionar minha autoridade, pagaria caro. Não havia espaço para fraqueza. Não para o Don. Eu tinha um legado, e sobre o meu comando, nada sairia do controle.
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