Novo Lar

863 Words
Maitê. Respirei fundo, na tentativa de controlar alguns tremores, mas o cheiro de esgoto misturado com temperos de comida me estavam me dando um nó no estômago. O “subir a rua principal” que o aviso dizia se transformou numa escalada íngreme por uma ladeira de paralelepípedos irregulares, entre carros velhos estacionados de qualquer jeito e crianças jogando bola em cada cantinho livre. Esse lugar tinha vida diferente. Era pesado, duro, sujo e sufocante e ainda sim eu consiga ver rostos sorrindo, felizes e até mais receptivos do que no afasto. O engraçado é aqui a vida não parecia correr da mesma forma. Aqui, ao contrario do afasto, parecia que a vida estava só passando. As casas, umas em cima das outras, eram de tijolo aparente ou pintadas em cores vibrantes que pareciam gritar por atenção. Não era o que eu via na TV, aquela miséria sem fim. Era diferente. Uma bagunça organizada, cheia de vida. Depois dos primeiros dias em que cheguei na cidade grande, acabei de me dar conta de que quase esqueci de como era sorrir pelo simples fato de ver outra pessoa cruzando seu caminho. Perguntei na padaria do Zé – um senhor de bigode farto e sorriso bondoso – onde ficava a casa da Dona Neide. Ele apontou uma viela estreita, tão apertada que eu m*l conseguia ver o fim. — É logo ali, menina. No final do beco. Mas cuidado, pra não se perder. — Sua voz era um aviso gentil, misturado com um tom de quem via muitos forasteiros passarem por ali. — Vou tomar cuida. — Vai com calma. E se mantenha no caminho por entre as vielas. — Obrigada — sorri em agradecimento. Enquanto subia, observei. Mulheres conversavam nas portas, estendendo roupas nas cordas sobre a cabeça. Um grupo de homens jogava dominó na calçada, o som das peças batendo na mesa se misturando com o funk que saía de alguma janela. A música era alta, a voz da MC era forte, falando de superação e da realidade dura. Eu nunca tinha ouvido algo assim de perto. Não era só sobre crime, como a TV pintava. Era sobre gente. O caminho não foi fácil mas consegui encontrar o que procurava. Dei duas batidas na porta e esperei que alguém viesse abrir. O sorrio que recebi da senhora, me pegou de surpresa pela segunda vez hoje. — Dona Neide? — Isso menina, vamos entrando. Conversamos lá dentro. De início, ela não perguntou meu nome e nem o que eu estava fazendo ali. Ela apenas se afastou e me deu passagem. A casa de Dona Neide era pequena, mas impecável. Tinha um vaso de samambaia na porta e uma pintura fresca em tons de azul claro. Ela me recebeu com um sorriso acolhedor, os olhos miúdos e brilhantes por trás de óculos que escorregavam no nariz. Eu avisei que viria por conta do anuncio, mas não imaginei que ela fosse me deixar entrar sem antes confiar que eu era eu mesma. — Então é você a moça do interior? Vamos até a cozinha minha filha — diz se dirigindo ao pequeno cômodo — Venha, tome uma água — Sua voz era suave, e o acolhimento dela me fez sentir um nó na garganta. Era a primeira gentileza sincera que recebia em dias. — Obrigada Dona Neide. Agradeço a água. — Lá fora está calor. O sol aqui costuma castigar um pouco a gente. Como viu, a tantas casas juntas que não muito como o ar circular — diz rindo. — É, aqui é diferente. — Primeira vez em uma favela. — É. — Você se acostuma — sorri com gentiliza — Venha, vou te mostrar o que tenho. A casa era simples, um quarto e uma sala minúsculos, cozinha e banheiro compactos, mas limpos. O preço? Menos da metade do que qualquer quitinete no asfalto. Parecia um milagre. Não era luxo, mas era meu. Meu primeiro pedacinho de chão na cidade grande, mesmo que fosse no alto do morro. — Tem certeza minha filha. — Tenho sim, Dona Neide. Esse lugar está perfeito. — Vou preparar os papeis. Pode pegar a chave hoje se quiser. — Seria perfeito. Obrigada. Enquanto assinava o contrato improvisado, Dona Neide me olhou com curiosidade. — Filha, você veio sozinha? Não tem medo de morar aqui? Hesitei. O medo estava lá, um nó apertado no estômago, mas eu não podia dar para trás. — Medo? Ah, não. Eu... eu sou corajosa. E preciso de um lugar pra ficar. Parece um bom lugar, Dona Neide. — Forjei um sorriso, tentando parecer mais confiante do que eu realmente era. Ela sorriu de volta, um sorriso que parecia dizer "eu te entendo, mas cuidado". — Seja bem-vinda, então. Aqui a gente se ajuda. Mas é bom ficar de olho aberto. Morro é morro, né? Ande na linha, tome cuidado e vai ser sair bem. Estarei aqui se precisar de algo. Assenti, sem saber exatamente o que ela queria dizer com aquilo. Era um mundo novo. Perigoso, talvez. Mas meu instinto me dizia que havia mais do que o perigo ali. Havia comunidade. E para uma garota sozinha, vinda do interior, comunidade era tudo.
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