Adivinha só, ninguém estava contratando por causa do Natal, nem mesmo as lojas que precisavam de estoquistas, era como se o universo estivesse contra mim. Eu quase chorei nas escadas de uma loja. Quer dizer, aonde eu tinha chegado? Não existia um santo que pudesse me ajudar?
— Hey! —Abel se projetou em minha frente e continuei olhando as ruas e os carros apressados correndo de um lado a outro. — Estou aqui especialmente para te ajudar!
— Você não quer me ajudar... — reclamei começando a andar de volta para casa.
A noite cairia logo mais. Eu tinha passado o dia na rua, procurando um emprego de meio período ou até como cuidadora de cães, babá, qualquer coisa que fosse. Mas não havia nada. Todos estavam entretidos demais com o feriado e em resolver seus problemas de adulto enquanto eu parecia uma criança chorosa com um anjo maluco a tiracolo.
— Quero sim! — Abel insistiu andando ao meu lado. Será que ele não sentia mesmo frio nos pés? — Só aceite as minhas condições, é tudo que eu peço.
Suspirei longamente.
— O que você ganha em me ajudar? — questionei. — Tipo, eu sei que existem milhões de pessoas com problemas piores que os meus, então, por que está ajudando justamente a mim?
— Porque eu quero! — respondeu com simplicidade. — Então, por favor, me ouça!
— Estou deprimida, sem amigos, sem emprego, quase sem casa, sem um futuro próspero. Por que você quer que eu vá para casa dos meus pais agora? — choraminguei. — Dê-me um emprego primeiro, eu irei depois. Prometo!
Abel espremeu os olhos e me ignorou.
— Você está cruzando os dedos. E família em primeiro lugar! Vá ver sua família! Vamos amanhã, ok?
— Não! — exclamei voltando para casa.
Fazia dois anos que eu não voltava para casa. Todo esse tempo mentindo sobre minha vida para a minha família. Eu não poderia voltar justamente durante o auge do meu fracasso. Meus pais teriam um infarto e a Nívea tentaria consertar os meus defeitos.
Quando cheguei no prédio, dei o azar de me esbarrar com a proprietária. Ela sorriu antes de perceber que era eu, então me olhou de cima a baixo e torceu o nariz. Gostava de deixar claro que não gostava de brasileiros, ainda mais se eles fossem ferrados como eu.
— Nana, seu aluguel está atrasado! — reclamou me seguindo até o pequeno lance de escadas. — É Natal! Eu também preciso fazer a minha ceia e dar presentes aos meus netos.
— Eu sei, Sra. Jackson. Me dê só mais alguns dias! — implorei.
— Argh! — revirou os olhos em desprezo. — O que posso fazer? Você tem até a véspera para me pagar. E eu espero que pague já que não vai gastar dinheiro voltando para seu país.
Assenti indo até meu apartamento e ignorando a vontade de chorar. Eu costumava ser a única moradora do prédio durante feriados e fins de semana. Geralmente estava com o Samuel, ele e Louise faziam com que eu não me sentisse tão fora de contexto. Eles me fizeram amar Nova York, mas também me fizeram odiá-la.
Sra. Jackson se afastou e acabou tropeçando em alguma coisa e batendo a b***a no chão. Abel apareceu ao meu lado sorrindo.
— Você fez aquilo? — perguntei fechando a porta.
Ele deu de ombros vagando pela casa com as mãos nas costas.
— Ela mereceu! Foi muito rude com você.
— Pode fazer isso com todas as pessoas que foram rudes comigo só nessa semana? — perguntei já animada. — Tenho uma lista enorme!
Abel pensou um pouco sentando no sofá e cruzando as pernas.
— Que tal você usar meus poderes para resolver os seus problemas? — sugeriu. — Tipo, voltar para a casa dos seus pais?
Bufei chateada. Não aguentava mais aquele assunto.
— Esquece, anjo charlatão! — ralhei.
O anjo me observou por um momento. Se estivesse lendo meus pensamentos saberia o quanto estava sendo inconveniente em insistir no assunto sobre voltar para o Brasil. Minha vida era toda uma mentira e eu estava temporariamente bem com isso, mas minha terra natal guardava todas as minhas verdades de 24 anos, além das expectativas dos meus pais.
— Eu já sei do que você precisa! — ele falou se levantando de súbito.
— Finalmente! — dei graças aos céus. — Aceito qualquer tipo de emprego que pague adiantado!
Abel torceu o nariz e ignorou o que eu disse.
— Você precisa de comida! Andamos o dia inteiro e você só me comprou um cachorro quente fajuta!
Rolei os olhos para cima.
— Você come muito! Eu não tenho quase dinheiro nenhum, não posso bancar regalias!
— Eu farei algo para comermos enquanto você faz as malas! — disse indo à pequena cozinha do apartamento.
— Seria bom, mas não há comida... — murmurei envergonhada. — Talvez só um pedaço de pizza de anteontem.
— Não se preocupe com isso! — deu-me uma piscada de olhos.
Fui para o quarto me sentindo exausta. Apesar daquela presença divina em minha casa, eu não sentia que as coisas poderiam melhorar.
Meu celular começou a vibrar anunciando uma ligação do Samuel, meu não ainda tão mencionado ex-namorado. Cretino! Cretino! Cretino! E possivelmente esse adjetivo nem seja o suficiente para defini-lo, mas eu não queria gastar meus neurônios pensando em como caracterizar o desprezo que era a sua existência no mundo.
Tentei não pensar tanto nele e fui regar as plantas da sacada. Nem percebi o quanto era ridículo quando peguei um ramo cheio de folhinhas e comecei a arrancar uma por uma para decidir se voltaria ou não para a casa dos meus pais. Não dava para negar que sentia saudades de casa. A única coisa que me impedia de voltar era que não conseguiria continuar mentindo ainda mais quando estava no fundo do poço. Esperava contar a verdade quando tivesse tomado um rumo melhor, decidido o que fazer de verdade. Entretanto, parecia ter chegado ao ponto final.
— Eu vou... — tirei uma folha. — Não vou... Eu vou...
Até a antepenúltima eu não iria. Faltavam apenas duas e de repente uma caiu sozinha, a que garantiria que eu ficaria em Nova York na p******o das minhas mentiras.
— Você vai! — Abel falou arrancando a folha que sobrara. — Problema resolvido. Faça as malas, partiremos amanhã!
— Não vale! — retruquei. — Você fez a outra folha cair. Isso é trapaça!
— Eu não sou a mãe natureza para fazer isso. — negou na defensiva. — Vamos, Nana! Eu prometo que te darei um emprego logo depois.
— Não dá! — admiti cansada, sentando-me na cama. — Não tenho dinheiro para pagar o aluguel, quem dirá para uma passagem de avião para o Brasil!
— Isso não é problema! — disse.
E num passe de mágica uma passagem se projetou em suas mãos. Meus olhos quase não conseguiram acompanhar o movimento.
— Primeira classe, porque você merece um descanso dessa vida difícil! — ofereceu-me o papel.
Fiquei boquiaberta ao analisar a passagem para ter certeza de que era real. Muito mais real do que o anjo que a criou.
— Não acredito que me deu uma passagem de primeira classe sendo que poderia ter me dado o dinheiro para pagar meu aluguel! — reclamei estarrecida.
Abel sorriu um sorriso de mostrar todos os seus dentes perfeitos emoldurados pelos lábios rosados. A pele reluzia sem sofrer com o ressecamento do frio.
— Estou te dizendo... — começou. — Aceite as minhas condições e resolverei todos os seus problemas!
Ponderei sua proposta.
— Eu posso confiar na sua palavra?
— Você pode confiar com a sua vida! — respondeu com tamanha seriedade que não pude discordar. — A comida está na mesa!
Realmente ele era uma entidade divina com superpoderes, pois a mesa estava repleta de coisas gostosas, e não era como se ele tivesse descido e comprado em algum restaurante, porque era comida brasileira, arroz, feijão, ensopado... Lembravam a comida da minha mãe e só conseguir comer enquanto chorava, porque eu era uma péssima filha e sentia saudades da minha família.
E foi assim que decidi voltar para casa. Fazer negócio com um anjo não parecia pior do que continuar vivendo a minha vida.