8. Capitulo – Palavras Não Ditam Tudo

1521 Words
O helicóptero pousou suavemente no heliporto do edifício em São Paulo. Era segunda-feira. O céu permanecia encoberto, e o ritmo frenético da cidade já pulsava com força. Kiara desceu com a pasta de anotações nas mãos e um silêncio resignado nos olhos. Estava de volta. À agenda cheia. Aos compromissos cronometrados. Ao mundo controlado e impecavelmente de Nicolas D’Alencar. Enquanto ele seguia para uma reunião externa, ela se refugiou no escritório. Ligou o tablet, atualizou e-mails, organizou a semana, confirmou a participação de Nicolas como palestrante principal em uma conferência internacional. Também precisaria revisar os protocolos de segurança digital, uma área que ele mesmo fazia questão de acompanhar de perto. Nicolas não era apenas um empresário brilhante. Era o arquiteto de um dos sistemas de criptografia mais avançados do mercado, conhecido por conter ataques a bancos e conglomerados tecnológicos. Um sistema antirrastreamento quase inquebrável que o colocava sob os holofotes — e sob o radar de pessoas perigosas. Havia algo nele que inspirava fascínio. E receio. E Kiara jamais soube como, exatamente, ele havia chegado até ali. Nem como seguia sempre à frente. Ela se habituara a controlar todos os detalhes da rotina dele. Mas o que não conseguia mais controlar era o que acontecia dentro de si. Era tudo intenso demais. Aquela viagem. O jeito como ele a olhava. O modo silencioso com que a defendia. Os gestos contidos — e até as provocações. Sentada à mesa, digitou o último e-mail do dia. E então, parou. Ficou olhando para a tela por longos segundos. Depois, escreveu outra coisa. Um documento curto, direto, com o título: Carta de Demissão. Por um instante, passou os olhos pela tela em branco. Pensou em apagar. Pensou em deixar para depois. Mas não havia depois. Estava escrito — e dentro dela, também. O motivo? Ela não ousava dizer em voz alta. Mas era simples: havia se apaixonado pelo seu chefe. Logo após a reunião, Nicolas permaneceu sozinho na sala de vidro. As cadeiras ainda alinhadas ao redor da mesa longa, mas o espaço parecia imenso e vazio, como se o silêncio tivesse tomado forma. Ele se aproximou da janela, apoiando as mãos na moldura fria. Lá fora, a cidade seguia seu curso indiferente às memórias que insistiam em voltar. Era maio. E ele odiava esse mês. Respirou fundo, mas o ar entrou amargo. Como sempre acontecia quando o calendário cruzava aquela linha tênue entre o outono e algo mais sombrio. Sem perceber, foi arrastado para mais de vinte anos atrás. Para os corredores gastos do orfanato. Para o cheiro do refeitório nas manhãs frias. Lembrou-se das mesas cheias de meninos, das mãos pequenas sujas de cola e tinta, criando cartões para mães que viriam buscá-los no fim de semana. Mas ele... Ele apenas observava. Desde os doze anos, aprendera que não havia ninguém. Nada a esperar. Nada a oferecer. Rodrigo. Carol. Ítalo. Os três dividiam com ele o silêncio das datas esquecidas. Quatro crianças num canto do refeitório, tentando fingir que aquilo não importava. Ele sorriu, um daqueles sorrisos duros, que não chegam aos olhos e foi até o aparador buscar uma dose de uísque. O líquido dourado brilhou sob a luz filtrada pelas persianas, mas nem isso aquecia aquele tipo de lembrança. A dor não vinha como pancada. Vinha como ausência. Como o que nunca foi dito. Como o espaço vazio ao lado da cama. Na infância, aprendera a não chorar. Aprendera a não pedir. Mas nunca aprendeu a esquecer. Encostou-se à parede, o copo firme na mão, os olhos fixos em nada. As conquistas, os contratos, os prêmios... tudo o que havia construído. E ainda assim, maio o devolvia ao menino de olhar quieto, esperando por ninguém. Ele estava visivelmente cansado, com a gravata já afrouxada e o olhar exausto. Ao cruzar a área principal do escritório, viu Kiara diante do computador, concentrada. Ela não o notou de imediato. Ele não disse nada. Apenas passou por ela em silêncio, indo direto para sua sala. Poucos minutos depois, ela entrou, trazendo o tablet e o habitual resumo do dia. — Quatorze horas: conferência com o grupo espanhol. Dezesseis: videoconferência com Londres. Dezoito, reunião com o desenvolvedor do projeto Horizon. Às dezenove, jantar com o ministro. — Ela mantinha o tom eficiente e calmo de sempre. Nicolas escutava, massageando as têmporas, sentado atrás da mesa. — E é isso? Perguntou, já se inclinando para pegar o celular. Kiara hesitou. — Tem mais uma coisa. Ele ergueu os olhos para ela. — Quero que receba minha carta de demissão. A frase pairou no ar. E o silêncio que se seguiu foi quase constrangedor. Nicolas a encarou, como se não tivesse escutado direito. — O quê? Ela estendeu o envelope pardo com firmeza. — Já está redigida. Cumpro o aviso prévio, se preferir. — Você está brincando. Disse ele, recostando-se na cadeira e cruzando os braços. — Não estou. — Kiara, isso é ridículo. Ele se levantou, contornou a mesa. — O que aconteceu? Eu fiz alguma coisa? — Não, Nicolas. Você não fez nada. — Então por quê? Ela sustentou o olhar por um instante. Depois, respirou fundo. — Porque, se eu continuar trabalhando com você... não vou conseguir mais separar as coisas. Ele franziu o cenho, ainda tentando processar. — Você está... Deu um passo hesitante — isso tem a ver comigo? Ela riu com amargura, baixando os olhos. — Tem tudo a ver com você. Por um instante, algo escureceu o olhar dele. Um músculo da mandíbula se contraiu, imperceptível. Mas ele recuou. Voltou à versão que todos esperavam dele: imperturbável. Kiara manteve a postura, apesar do coração acelerado. Não disse o que realmente sentia. Apenas respirou fundo, abaixou o olhar e concluiu, com um leve aceno: — Pretendo investir em outra coisa. É só isso. Ele a observou em silêncio. Depois cruzou os braços, voltou a se encostar na mesa e respondeu com uma calma quase fria: — Tudo bem. Ela piscou, surpresa. — Tudo bem? Repetiu, em voz baixa. — Sim. Disse ele, com um leve encolher de ombros. — Se você encontrar alguém à altura, aceito a carta. Kiara sentiu um nó se formar no estômago. Ele parecia indiferente. Como se aquilo não significasse nada. Como se ela... não significasse nada. — Certo. Respondeu, tentando manter a voz firme. — Continue no cargo até o fim do mês. Pago o dobro. Ele voltou para a cadeira. — Mas comece a treinar alguém. Você conhece melhor do que ninguém o caos da minha rotina. — Claro. Respondeu ela, escondendo a mágoa. — Eu conheço. E saiu da sala antes que ele percebesse que seus olhos estavam marejados. Kiara caminhou até sua mesa como se nada tivesse acontecido. Como se o mundo dentro dela não estivesse em ruínas. Contendo as lágrimas, ergueu a cabeça e começou a fazer exatamente o que ele pedira. Escreveu o anúncio da vaga. Usou palavras objetivas, mas cada linha era como um corte fino, preciso, do tipo que não sangra de imediato. Descreveu o cargo, as responsabilidades, o nível de sigilo, a disponibilidade para viagens, o domínio de idiomas, o equilíbrio emocional. Todas as coisas que ela fazia com os olhos fechados. Antes de publicar, hesitou. Leu de novo. Corrigiu uma vírgula. Respirou fundo. Foi então que ouviu a voz dele atrás de si. — Preciso de você em uma reunião daqui a trinta minutos. Ela se virou devagar. Nicolas estava parado ali, mãos nos bolsos, a expressão indecifrável. A mesma de sempre. Mas havia algo mais... tenso. Ou seria apenas impressão? — Tem certeza de que quer que eu vá? Perguntou, calma. Ele deu um meio sorriso. Não era sarcasmo, era algo mais... contido. — Ainda é minha assistente, não é? Ela assentiu, voltando-se para o computador. — Estarei pronta em dez minutos. — Ótimo. Disse ele, e saiu sem olhar para trás. Ela o acompanhou com o olhar. E, por um instante, tudo o que desejou era não ter se apaixonado por aquele homem. Kiara suspirou fundo, leu mais uma vez a descrição da vaga na tela... e começou a rir sozinha. “Capacidade de lidar com variações de humor dignas de um prêmio da Academia”, ela digitou, com um sorriso travesso nos lábios. “Capacidade de interpretar silêncios como respostas completas. Nível avançado de leitura de sobrancelhas arqueadas.” Ela mordeu o lábio, ainda rindo. Apagou. As candidatas iam fugir só de ler aquilo. Pensariam que estavam se candidatando ao cargo de assistente de um agente secreto — ou de um gênio excêntrico. O que, no fundo, não era tão longe assim da realidade. Mas ela não podia dizer a verdade crua. Precisava suavizar. Escreveu de novo: “Procuramos alguém altamente proativo, capaz de antecipar necessidades e lidar com imprevistos com discrição e elegância. É essencial ter habilidades refinadas de comunicação, resiliência emocional e memória excepcional. ” Tradução não-oficial: Boa sorte decifrando um homem que fala pouco, pensa demais e muda de ideia como uma tempestade tropical. Ela apagou mais uma frase sarcástica e respirou fundo. Ainda era sua função por mais um mês e iria manter tudo no lugar. Inclusive as aparências.
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