O inicio de tudo - Bem vindos, e uma boa leitura!
Prólogo
O silêncio entre eles não era vazio. Era um campo minado.
— Você é de fora?
A pergunta, embora simples, carregava um certo desafio, como se já soubesse a resposta e quisesse apenas confirmar o que os olhos haviam percebido.
Kiara manteve o olhar firme do outro lado da mesa — uma superfície de madeira escura, brilhando sob a luz difusa do escritório. Impecavelmente limpa. Impessoal. Como ele.
Nicolas D’Alencar. O nome ecoava na sua mente com a precisão de uma manchete. Executivo renomado. Meticuloso. Intocável. E, ainda assim, absurdamente humano naquele instante — folheando o seu currículo com um desinteresse tão bem ensaiado que parecia arte.
— Sou de Curitiba. Ela respondeu, a voz contida, mas segura. — A minha família por parte de pai, mora aqui em SP, então, agora estou a tentar fincar raízes aqui.
— Treze dias na cidade? Ele murmurou, sem levantar os olhos.
— Isso. Num pequeno apartamento, por enquanto.
— Veio sozinha?
A pergunta a fez hesitar por um segundo, mas não mais.
— Sim.
Foi então que ele ergueu os olhos. Cinzentos. Tempestuosos.
— E o seu noivo?
Kiara olhou para a aliança no dedo e entendeu que ele já a havia notado. Tudo nele era observação e controle.
— Isso é relevante? Perguntou, tentando não perder a compostura.
— É. Disse ele, com a franqueza de quem não está acostumado a ser contrariado. — Porque quem trabalhar comigo precisa estar disponível. Sempre.
— Ele não está comigo em São Paulo, se é isso que quer saber. Ficou resolvendo questões do trabalho dele. A ideia é que venha depois.
Nicolas sustentou o olhar por tempo demais.
— Interessante. Noiva e... disponível.
— Desculpe?
Ele sorriu, um sorriso que parecia surgir não dos lábios, mas de algum pensamento indecente.
— Profissionalmente. Não leve a m*l.
Mas ela levou. Não por sentir-se ofendida, mas por sentir-se vista demais.
Havia algo nele que desconcertava. Um magnetismo incomodo. Um charme feito de arrogância, olheiras m*l dormidas e ternos amarrotados.
Ele era belo, sim, mas não era só isso. Era perigoso.
— Senhor D’Alencar...
— Nicolas. Não sou juiz, nem tão velho.
Ela engoliu seco.
— Você tem o que preciso. Disse ele, após virar a última página do currículo. — Idiomas, organização, disciplina. Gosta de balé?
A pergunta a pegou de surpresa.
— Gostava... quando tinha tempo.
— E de ler?
— Quase sempre antes de dormir.
Dessa vez, ele sorriu de verdade. Mas só com um canto da boca. O suficiente para bagunçar certezas.
— Não procuro uma assistente. Procuro alguém que viva o meu tempo. Que respire o meu fôlego. Eu sou o projeto.
— Eu entendo, mas...
— A última assistente disse que quem aceitar essa vaga deve ter um certo desequilíbrio emocional.
Kiara não resistiu e sorriu. Pela primeira vez, de verdade.
— Talvez eu tenha.
Ele a observou como quem tenta decifrar um segredo antigo.
— Interessante. Repetiu.
E foi só isso. Uma palavra jogada no ar, entre o fim e o começo de algo que nenhum dos dois ousava nomear.
Ela saiu da sala com a nítida sensação de que acabara de atravessar uma linha invisível — e perigosa.
**
— Senhor D’Alencar, a próxima candidata está à espera.
— Mande entrar.
Ele ajeitou os punhos da camisa, tentando organizar o próprio pulso. Mas não adiantava. Ainda via os olhos dela.
A nova candidata entrou. Sorriu, entregou o currículo. Disse algumas frases bem colocadas. Mas ele já não ouvia.
— Você mora onde? Perguntou, interrompendo.
— Perdizes. Por quê?
Ele não respondeu. Pegou o celular do bolso e saiu da sala sem dizer mais nada.
Do outro lado da rua, Kiara tentava chamar um carro por aplicativo. O ar estava mais quente do que lembrava. Ou talvez fosse só o nó na sua garganta.
O celular tocou.
— Alô?
— Não é seu noivo.
A voz era dele. Grave, direta, sem espaços para dúvida.
— Nicolas? O nome escapou como um sussurro que ela não pretendia dizer.
— Gostei do som do meu nome na sua voz.
Silêncio. Ele continuou:
— Quer o emprego ou não?
Ela hesitou.
— Pensei que...
— Eu também. Mas mudei de ideia.
— Isso não parece um trabalho. Parece uma armadilha.
— Talvez seja. Mas é uma armadilha de luxo. O salário é ótimo. As viagens são frequentes. E o apartamento tem vista para o Ibirapuera.
— Como assim?
— O edifício é meu. Seremos vizinhos. Ou algo assim.
Ela fechou os olhos. O coração batia mais forte do que deveria por algo que, em tese, era apenas trabalho.
— Temos ou não um acordo? Ele insistiu.
E foi ali, entre o som dos carros e o torpor da decisão, que ela entendeu: talvez não fosse sobre emprego. Nem sobre ele. Era sobre o que ela mesma estava tentando evitar.
— Sim. Respondeu, a voz mais baixa do que gostaria. — Quando começo?
— Agora.
**
_______________________________________________________________________
1. Capitulo – Onde foi que eu me enfiei
O elevador subiu lentamente, como se saboreasse a tensão de Kiara Medeiros.
Aos 27 anos, ela carregava mais certezas do que gostaria e menos esperança do que merecia. Tinha a beleza das mulheres que não se esforçam para agradar — pele morena clara, olhos castanhos intensos, e um rosto emoldurado por cabelos castanhos escuros, presos num coque firme. A sua postura era ereta, os ombros erguidos, mas os dedos apertavam a pasta com mais força do que necessário.
Estava começando o seu primeiro dia na Atlas Systems — e a sua vida estava prestes a mudar.
Quando as portas se abriram no 28º andar, Kiara sentiu o contraste imediato entre o luxo e o silêncio. O ambiente exalava poder. Ou melhor, o poder de um só homem.
— Bom dia. Disse a recepcionista, sem sorrir muito. — O senhor D’Alencar pediu que você vá direto para a sala dele.
Kiara assentiu e seguiu pelo corredor, sentindo a pressão do lugar se acumular nos ombros. Ao chegar à porta, bateu suavemente.
— Entre.
A voz que respondeu era grave, controlada. O tipo de voz que não se espera, mas que impõe respeito mesmo no silêncio.
Nicolas D’Alencar.
Tinha 30 anos, e o tipo de beleza que vinha da presença, não da simetria. Alto, ombros largos, cabelos pretos levemente desalinhados, e um olhar cinza claro que parecia saber demais — e sentir de menos. A camisa branca dobrada nos antebraços e o relógio suíço discretamente elegante não diziam “rico”. Diziam “acostumado a mandar”.
Ele estava de pé, de costas para a sala, olhando a cidade pela imensa parede de vidro. Um predador à vontade em seu território.
— Dormiu bem?
Ela hesitou, depois respondeu com firmeza:
— Sim. E o senhor?
— Evite esse tom de formalidade exagerada. Não gosto de jogos.
Ele se virou, e foi como se o ar mudasse de densidade. Aqueles olhos...
— Pode sentar.
Ela obedeceu, tentando manter o controle da própria respiração.
— Fizemos uma triagem. Viagens começarão já esta semana. Rio de Janeiro primeiro. Paris, talvez em três semanas. Tem passaporte?
— Sim, atualizado.
— Ótimo. Não tenho paciência para imprevistos que poderiam ser evitados com planejamento.
Enquanto falava, ele analisava seus gestos como se decifrasse um código. Kiara sentia o peso daquele olhar. Um misto de julgamento e... algo mais difícil de nomear.
— Ainda está noiva? Ele perguntou, com a mesma naturalidade de quem pergunta se vai chover.
Ela demorou um segundo para responder.
— Estou.
— E isso será um problema?
— Para quem?
O canto da boca dele se curvou, mas não em um sorriso. Em algo mais sutil. Quase perigoso.
— Para o seu tempo. O meu exige exclusividade. E sinceridade.
— Eu entendo. E estou disposta a dar o meu melhor.
Ele inclinou-se levemente para a frente, apoiando os antebraços sobre a mesa.
— “Dar o melhor” não basta aqui. Não busco assistentes. Busco resistência. Resiliência. Entrega. Eu sou o projeto.
As palavras o deixavam mais nítido. Nicolas era frio, exigente, controlador. Mas por baixo da perfeição ensaiada, havia algo quebrado. E Kiara viu. Ou achou que viu.
Antes que pudesse responder, ele estendeu um envelope para ela.
— Aqui estão os seus acessos, senhas, agenda da semana. O resto, você vai descobrir sozinha. Gosto de quem aprende rápido.
Ela assentiu.
— E mais uma coisa. Disse ele, antes que ela saísse. — Não me chame de senhor D’Alencar. Nunca mais.
Kiara parou com a mão na maçaneta. Virou-se devagar.
— Como devo chamá-lo, então?
— Como você quiser. Desde que não seja “imune”.
A frase ficou no ar, pairando entre a ameaça e o convite.
Kiara saiu do escritório com um milhão de pensamentos. Mas um deles era mais alto que todos:
Ela havia mergulhado fundo. E não havia mais como voltar à superfície.