Kiara acordou num colchão que provavelmente custava mais que seu carro anterior. Ou seu último salário enquanto estava em Curitiba. A coberta era macia, quente... e tinha definitivamente sido lavada com algum tipo de essência de luxo que não se encontra em supermercado.
A suíte era silenciosa, envolta numa penumbra tranquila. Mas sua mente, não. Ela estava em guerra. “Respira. Finge que é só mais uma segunda-feira”.
Mas não era.
Na noite anterior, por telefone, encerrara oficialmente o que restava do seu noivado com Felipe.
“— Então tem outro.”
“— Não é isso...”
“— Demorou demais para negar.”
“— Eu tô dizendo que não é isso!”
“— E ainda tá enrolando.”
E ela estava. Porque, tecnicamente, não havia outro homem.
Mas também... havia.
Um homem que vivia numa escala de cinza onde o certo e o errado se esbofeteavam com frequência.
Nicolas D’Alencar. O homem que nunca pedia, só comunicava. Que dava ordens com a mesma naturalidade com que dizia "bom dia" (isso quando dizia).
O homem que conhecera todas as suas senhas em menos de uma semana — e que já sabia das suas inseguranças antes mesmo dela admitir que as tinha.
Três meses. Três longos, sufocantes, perigosamente encantadores meses trabalhando para ele.
E, em três meses, ele tentou.
Duas vezes.
Espanha.
O jato particular parecia um forno parado no hangar, e Kiara m*l conseguia manter os olhos abertos. A exaustão pesava, mas havia um comando firme que não deixava espaço para descanso.
— Vai se deitar. A voz dele, fria e sem rodeios, não admitia discussão.
— Ainda tenho que rever os contratos. Murmurou ela, tentando soar firme.
— Pode rever deitada. Eu superviso.
Ela ergueu o olhar, surpresa com o tom arrastado, quase um convite.
— Nicolas...
Ele sorriu com aquela certeza perigosa, inclinando-se um pouco mais perto.
— Prometo que sou bom em supervisão. E, quem sabe, você pode até usar o seu pijama caro.
O sorriso dela foi um misto de incredulidade e uma vontade quase desesperada de se deixar levar.
Nova York.
Na suíte presidencial, Kiara anotava mudanças de cronograma, mas a voz dele cessou. Ele parou de falar, olhando para ela como quem tenta decifrar um enigma proibido.
— Troquei minha senha. Disse Nicolas, sem tirar os olhos dela.
— Sério? Qual é? Ela perguntou, fingindo despreocupação.
— Nome de mulher.
Ela o encarou, desconfiada.
— Isso não ajuda em nada.
— Começa com K.
Ela congelou.
— E termina com I-A-R-A.
O bloco caiu da sua mão, caneta rolando no tapete. Ela tentou disfarçar o rubor que subiu ao rosto.
— Chantagem emocional ou megalomania?
— Apenas uma senha. Ele retrucou, voz baixa, quase um sussurro. — Quer tentar adivinhar a minha do cofre? É algo que você nunca teria.
Ele se aproximou, tão perto que Kiara sentiu o calor dele invadir seu espaço, mas Nicolas recuou no último segundo, como se brincar fosse a única segurança que ele permitia.
Ele era um cretino charmoso, o tipo que jurava não se prender a nada nem ninguém, e ainda assim fazia o coração dela bater como se estivesse sob fogo.
E foi nessas duas vezes que ela percebeu que acabaria cedendo e que não sentia mais nada por seu noivo.
Levantar da cama foi mais difícil do que ela pensava.
Não pelas cobertas. Elas eram quentes, macias, pesadas como um abraço que ela não queria soltar.
Mas pelo que vinha depois.
Pelo que pesava dentro.
Naquela manhã de segunda-feira, Kiara despertava oficialmente para uma nova realidade.
Solteira.
Sozinha.
Mas não exatamente...
Livre.
Porque Nicolas D’Alencar não perdoava lacunas — nem na agenda, nem no coração.
E, agora que ela deixará para trás qualquer rastro de Felipe, era como se a última muralha tivesse ruído.
Ela podia sentir. Ele sentiria também.
A batalha estava prestes a começar, e ela não sabia se torcia para vencer...
ou para se perder completamente.
A cozinha era silenciosa, elegante, moderna — e impessoal. Eram 6h32 da manhã.
Toda feita de mármore n***o e aço escovado, como se nenhum coração jamais tivesse batido ali.
A máquina de café, brilhando na sua complexidade, parecia mais um satélite do que um eletrodoméstico.
Kiara estava de meias, os cabelos presos num coque frouxo que m*l escondia o cansaço. A camiseta de seda e os shorts realçava suas pernas, parecia deslocada no meio daquele cenário de revista de arquitetura. Como se ela fosse a única coisa viva num lugar que não a conhecia.
Caminhou até a máquina como quem procura sentido.
Apertar os botões era seu ritual. Pequeno, mas seu.
— Tudo que eu preciso é cafeína. Nada mais. Um café. E depois volto a ser uma mulher funcional.
O cheiro começou a se espalhar como um bálsamo.
Por um instante, quase pareceu possível.
Ela olhou para a mão. A aliança ainda estava ali. Brilhava sutil, como uma lembrança que se recusa a desaparecer.
Era só um anel, e ainda assim, era também escudo.
Ou desculpa.
A porta da cozinha se abriu com aquele clique seco que ela já aprendera a temer.
— Bom dia, Cinderela.
Ele.
Nicolas D’Alencar.
No modo dele: impecável, inalcançável, e completamente presente.
O terno cinza escuro moldava seu corpo alto como se tivesse sido desenhado sobre ele.
A gravata estava no lugar exato. O perfume, discreto, parecia se infiltrar no ar como uma lembrança que ela não escolheu guardar.
E os olhos — cinzentos como céu antes da chuva — pousaram sobre ela como se não existisse mais ninguém no planeta.
Kiara revirou os olhos, mas sem muita convicção.
A máquina chiou e o café ficou pronto. Ela estendeu a mão.
Mas ele foi mais rápido. Como sempre.
— Ei!
— Primeiro café do dia precisa passar por controle de qualidade. Disse ele, dando um gole longo, como se fosse direito adquirido.
— Isso é roubo.
— Isso é sobrevivência. Respondeu, saboreando. — Você colocou canela?
— Sim.
— Malícia antes das oito da manhã. A voz dele era de diversão. — Você é perigosa, Kiara.
Ela preparou outra xícara em silêncio, sentindo os olhos dele sobre ela como um código que ainda não decifrara, mas que não desistia de tentar.
Nicolas a observava como se ela fosse uma equação que ora queria resolver, ora queria ver incendiar.
— Dormiu bem? Ele perguntou, recostado na bancada, ainda com a caneca que não era dele.
— Dormi.
Mas não era verdade.
Ela havia passado metade da noite acordada, ouvindo o som do próprio coração tentando se convencer de que estava tudo bem.
Nicolas terminou o café e saiu sem cerimônias, como se aquele momento não tivesse significado.
Mas teve.
Sempre tinha.
Kiara ficou sozinha na cozinha, segurando a própria xícara como se aquilo fosse escudo contra o mundo — ou contra ele.
Fitou a aliança de novo.
Não havia mais ninguém. Ela sabia disso.
Mas também sabia que usar o anel era, de certa forma, manter uma linha imaginária entre o que ainda podia controlar... e o que começava a desmoronar sem que ela pudesse impedir.
Com a caneca em mãos, seguiu de volta pelo corredor.
Cada passo parecia ecoar dentro de si.
A arquitetura impecável do apartamento contrastava com o caos que ela carregava por dentro.
As portas de mogno. Os detalhes em cobre. A lareira que jamais acendeu — não por falta de frio, mas por medo de se queimar.
A cama ainda estava desfeita, enquanto a luz da manhã se filtrava pelas cortinas, lenta e preguiçosa, como quem não tem pressa para iluminar verdades difíceis. Kiara deixou a xícara sobre o criado-mudo e caminhou até o closet, onde algumas de suas roupas dividiam espaço — limitado, com a quantidade de roupa que ela havia comprado durante esses três meses com ele, para sempre se apresentar impecável.
— Vamos lá. Sussurrou para si, puxando uma calça de alfaiataria e uma blusa de seda. — Um novo dia fingindo que isso aqui é só trabalho.
Vestir-se naquele apartamento era mais do que se preparar para o dia. Era vestir uma armadura.
Cada botão fechado era uma tentativa de conter o caos que vivia logo abaixo da superfície.
Porque, por mais que tentasse fingir, trabalhar com Nicolas D’Alencar era tudo, menos profissional.
Jatos privados. Carros pretos com vidros escuros. Hotéis com apenas uma porta entre eles.
E silêncios. Longos, carregados, quase ternos.
Ela podia mentir para o mundo. Para ele. Para si mesma, até certo ponto.
Mas não naquele instante, em frente ao espelho, onde tudo ficava mais claro.
Ela queria dormir com ele. Já não se dava ao trabalho de negar.
O que a assustava não era o depois.
Era o durante.
Era a ideia de entregar tudo... e descobrir que, para ele, aquilo fora só mais uma terça-feira.
Ela estava terminando de prender o cabelo num coque improvisado quando o telefone tocou.
O nome dele no visor era quase uma ironia.
Nicolas.
Claro que era ele.
Às 7h04 da manhã de uma segunda-feira, ele já tinha algo urgente. Ou insano.
Ou insuportavelmente encantador para dizer.
— Bom dia. Atendeu, tentando soar mais desperta do que se sentia.
— Já está vestida?
Kiara franziu o cenho, o coração acelerando sem razão aparente.
— Isso é uma pergunta profissional ou pessoal?
— Se fosse pessoal, você não atenderia o telefone. Disse ele, com aquele sorriso escondido na voz. — Preciso de você na sala de reuniões em trinta minutos. Mudança de planos. Vista algo... diplomático.
— Diplomático como... “evite parecer que estou à beira de um colapso”?
— Exato. Mas com salto.
— Trinta minutos.
— Vinte e cinco. E traga bom humor... o seu, principalmente.
Ele desligou. Sempre desligava primeiro.
Como quem não dá tempo para a dúvida nascer.
Kiara encarou o celular em silêncio.
— i****a charmoso. Murmurou, pegando o batom. — Não sei se te amo ou se preciso de um psiquiatra.
Talvez precisasse dos dois.
**
Kiara chegou pontualmente à sala de reuniões.
Salto firme. Postura decidida. Blusa alinhada. O coque solto o suficiente para parecer casual, mas preso o bastante para não parecer vulnerável.
Ela trazia os relatórios do dia.
E dois cafés.
Um para ela.
Outro, é claro, para Nicolas.
Mas quem estava sentado na cabeceira da mesa... não era ele.
— Marcelo? Perguntou, confusa.
O homem de terno azul-marinho ergueu os olhos do tablet com um sorriso que carregava anos de paciência acumulada.
— Kiara. Bom dia. Pode sentar.
Ela sentou, com elegância, mas não escondeu a surpresa no olhar.
— Achei que Nicolas estaria aqui.
— Também achei. Disse Marcelo, quase com ternura. — Até ele me avisar que não estaria.
Ela cruzou as pernas, tentando disfarçar o incômodo que começava a arder por dentro.
— Ele me ligou há trinta minutos. Mandou vir com salto. E com diplomacia.
— Clássico. Marcelo sorriu, como quem já viu essa história antes. — Você ainda está na fase da indignação.
— Três meses, duas semanas e um contrato que penso em rasgar toda terça-feira. Respondeu, irônica.
— Vai passar.
— Passar?
— A indignação. Um dia você simplesmente aceita que ele é assim. E você para de esperar o óbvio.
Ela se inclinou levemente, diminuindo o tom.
— Ele desaparece assim... com frequência?
— Às vezes manda mensagem. Às vezes aparece horas depois como se tivesse ido só até a padaria. Marcelo a encarava. — Uma vez mandou um bilhete por um motorista.
Outra vez, foi um guardanapo de bar. Com marca de batom.
Ela piscou.
— Isso é real?
— Com Nicolas, tudo é possível. Ou impossível. Depende do dia.
Marcelo parecia estar em paz com o caos.
Como se já tivesse passado por todas as fases: raiva, negação, aceitação... e agora apenas observava, com uma leveza resignada.
— E ninguém nunca... explodiu?
— Muitos explodiram. Nenhum ficou. Ele bebeu o café que Kiara trouxe para Nicolas. — Mas você... está indo bem. Ele olhou para a xicara em sua mão. — A maioria já teria quebrado a xícara dele.
Kiara olhou para o café ainda quente.
Teve vontade.
Mas não fez.
— Ele disse que era urgente.
— Então talvez tenha sido.
Ou talvez tenha sido só um jogo.
Ela afundou na cadeira. Sentia o peso da ausência dele como quem sente uma promessa quebrada sem que ela tenha sido feita.
— Por que ainda estou aqui?
— Porque você é boa. E, talvez, seja a única pessoa a quem ele realmente escuta.
Sem interromper. Sem desligar.
Ela olhou o café e sentiu um nó no estômago.
Raiva? Talvez.
Ou pior: preocupação.
Porque, por mais que tentasse, ela se importava.
— Ele ao menos mandou alguma mensagem? Kiara perguntou, tentando manter a voz estável, como se a ausência de Nicolas não estivesse queimando por dentro.
Marcelo sorriu de lado. Um sorriso lento, quase fraterno. Era o tipo de sorriso que não dizia “vai passar”, mas que oferecia companhia até a dor decidir ir embora.
— Nada até agora.
Mas ele sempre aparece.
— Quando?
— Quando acha que vai causar mais impacto.
Ela soltou o ar com força, como quem tenta soprar para longe uma mágoa que insiste em ficar.
— Um dia, Marcelo... um dia eu desapareço antes dele.
Marcelo deu uma risada breve, sem deboche, só compreensão.
— Duvido. Marcelo a olhou de modo sério. — Você gosta demais da briga.
Ela não respondeu. Porque talvez... ele tivesse razão.
Talvez ela gostasse do jogo, mesmo sabendo que o jogo nunca seria justo.
— Que tal um almoço depois da reunião com o embaixador? Ele sugeriu, inclinando o tablet para o lado, como quem oferece uma pequena pausa à tempestade.
— Embaixador? Kiara franziu a testa. — De onde saiu isso?
— Seu chefe mandou uma mensagem. Olha só.
Marcelo girou o tablet com aquela expressão marota que precede as confusões inevitáveis.
Ela pegou o aparelho com desconfiança, equilibrando o café na outra mão, como se já soubesse que viria espinho — e não flor.
A mensagem era curta. Sempre era.
Nicolas economizava palavras como quem tem medo de gastar sentimentos.
“Reunião com o embaixador hoje às 8h. Você assume. Leve Kiara para almoçar depois da reunião — por conta da empresa. ”
Kiara piscou uma, duas vezes.
Depois leu de novo, com um ceticismo que crescia junto da frustração.
— “Leve Kiara para almoçar”? Repetiu em voz alta, cada sílaba pingando ironia. — Que cavalheiro...
— Viu só? Disse Marcelo, rindo. — Reconhecimento pelos seus serviços prestados.
— Ele sabia dessa reunião desde ontem. Ontem, Marcelo. Ela levantou-se. — Eu cuido da agenda dele, organizo os voos, escolho os horários, até o corte de cabelo, se ele permitir. E ainda assim... ele simplesmente desaparece.
Ela rolou a mensagem de novo, e lá estava: mais uma frase.
Mais um espinho.
“Ela sabe do que se trata. É paga para isso. ”
O silêncio que se seguiu foi mais barulhento que um grito.
"Que vontade de socar esse homem com uma agenda de couro italiano".
Marcelo tentava conter o riso, mas era inútil.
A cena era tragicômica. E profundamente humana.
— Então, o almoço...?
Ela se levantou devagar, ajeitando a saia com firmeza.
Cada movimento dizia mais do que qualquer resposta.
— Vai ser no restaurante mais caro que eu conheço.
Vai ter entrada, prato principal, sobremesa, vinho, e um café que custa mais do que o aluguel do meu primeiro apartamento em Curitiba. E eu vou mandar a nota direto para o financeiro, com um post-it escrito:
“Reembolso aprovado pelo patrão.”
Marcelo levantou as mãos, rendido à força do furacão que era Kiara quando decidia não recuar.
— Ok, ok. Só não me faz passar vergonha.
— Você vai passar fome se tentar me impedir. Disse ela, já com a bolsa em mãos.
— Vamos mostrar ao embaixador que o caos de Nicolas é, na verdade, o que dá charme a essa empresa.