3. Capítulo — “Silêncios Carregados”

1997 Words
— Que maldito! Resmungou Kiara, afundando-se nos travesseiros macios, tentando se esconder dele. De si mesma. Era isso: nada de salto agulha, maquiagem impecável ou reuniões. Ia trabalhar de casa. Ou melhor… do apartamento que, por obra de ironia, dividia com o próprio motivo da sua frustração. Ainda podia ouvir a risada de Marcelo ecoando: — Você não tem um pingo de remorso, né? — Nenhum. Respondeu ela, olhando o cardápio do restaurante como quem escolhe uma joia rara. — Meu sofrimento tem gosto de lagosta e vem com manteiga trufada. Pediu tudo que seu humor exigia: Carpaccio de wagyu com azeite — supostamente infusionado em ouro, porque nada menos do que exagerado satisfazia seu humor naquele dia. Filé mignon alto, selado com perfeição. Sobremesa francesa com pétalas de rosa cristalizadas — o tipo de doçura que nem a vida, nem Nicolas, lhe ofereciam. Marcelo, sempre divertido, comentou: — Se você olhar assim para o Nicolas, como olha para essa sobremesa, ele logo se apaixona. — Não estou disponível. Ela disse, erguendo a mão esquerda, onde um anel discreto brilhava sob a luz quente do restaurante. — Um escudo emocional? — Exatamente. Blindagem tripla contra homens problemáticos com sobrenomes poderosos. Mas o bom humor ficou no restaurante. Horas depois, de volta ao silêncio do apartamento... Ao abrir o celular, a realidade a atingiu como um alerta de incêndio: a agenda de Nicolas era uma bagunça apocalíptica. Reuniões remarcadas. Chamadas ignoradas. Silêncio absoluto. “Como alguém tão brilhante podia ser tão... caótico? ”. Ela lembrou-se daquela manhã. Tinha acordado decidida a sair. Preparou o seu café — pequeno ritual que a fazia sentir algum controle. Mas bastou virar-se e ele apareceu, como se sempre estivesse ali. Nicolas entrou na cozinha, pegou a sua xícara preferida — a de porcelana azul com a borda lascada — e tomou um gole do café recém-preparado, como se fosse algo dele. Como se ela fosse algo dele. Flertou com ela, conversou, e não disse nada, poderia ter dito “Eu vou dar uma sumida aqui, assuma”. Mas, não. Ele saiu sem dizer nada. E então... desapareceu. Não estava no escritório. Não apareceu na videoconferência. Só uma notificação automática no tablet de Marcelo, fria como um bilhete deixado por engano: — “Ela sabe do que se trata. É paga para isso. ” Kiara lia e relia, como se cada palavra lhe apagasse um pedaço da esperança. E ele? Ele tinha ido para outro lugar. Talvez uma reunião pessoal. Com Nicolas, era sempre impossível saber — e mais impossível ainda não querer saber. E mesmo sem ele, ela precisava ir até a empresa naquela manhã. Quatro da tarde. Kiara respirou fundo e voltou para o apartamento. A chave girou na fechadura, e no seu lar o mesmo silêncio polido de sempre. Sem ele. Ela entrou, chutando os sapatos e caminhando até a cozinha. Preparou outro café. Preto. Forte. Real. Encostou-se à bancada, olhando a cidade lá fora, o céu se rendendo aos tons quentes do entardecer. Tinha tudo para ir embora. Mas o coração... esse traidor elegante, insistia em ficar. — Eu devia pedir demissão. Ela disse em voz alta, como quem testa a própria vontade. Ela tentou imaginar-se longe dali. Não conseguiu. Não ainda. Não enquanto sentisse o chão vibrar discretamente toda a vez que Nicolas entrava num ambiente. E não enquanto houvesse, por menor que fosse, uma oportunidade — escondida em algum canto do destino — de que ele finalmente parasse de sumir... e começasse a enxergá-la. ** Roma, oito da manhã. (de uma sexta-feira) O carro deslizava devagar pelas ruas antigas, entre edifícios dourados pelo sol, cúpulas imponentes e turistas exaustos. Mas Nicolas não via nada disso. Tinha os olhos ocultos sob os óculos escuros e o celular encostado à orelha. Chamando… Chamando… Na terceira tentativa, ela atendeu. — Sim? A voz de Kiara cortou como vidro limpo. Fria. Nítida. Ele hesitou. Por que sempre lhe ligava quando sentia aquele leve aperto no peito? Culpa? Improvável. Devia ser refluxo. — Ainda brava comigo? Tom cínico. Tentando desarmar. Como sempre. — Não. Estou ótima. Feliz por consertar o caos que você deixou para trás.Sabia que hoje é sexta? — Jura? Achei que fosse domingo. Ele fingiu surpresa. Silêncio. A respiração dela pesava do outro lado da linha. — Nicolas… Começou, paciente como quem ensina uma criança teimosa. — Você remarcou uma reunião internacional sem me avisar. Você sumiu. E o Marcelo ainda teve a audácia de fazer piada. — Exagero seu. Ele murmurou, apoiando a testa na mão. — Estou tratando você como um CEO inconsequente que faz origami com a agenda e me entrega para montar com fita crepe. — Está bem, Reverenda Madre. Eu mereço. Ele suspirou. — Eu só... dormi demais. Foi uma semana péssima, se quer saber. — Coitado. Imagino uma jovem italiana, enrolada... — Não, ela é brasileira, e loira. Ele foi falando, como se tivessem interesse em saber. E você sabe... Ele parou de repente. — Está com ciúmes? — Não. Respondeu, rápida demais. — Estou irritada. Muito diferente. Ele sorriu. Preguiçoso. Quase aliviado por ouvir aquela raiva familiar. — Seu café favorito ainda é o melhor. — O que isso tem a ver? — Porque pedi um com leite e açúcar. Péssimo. Estou com saudade do que você faz. Kiara silenciou. — O que você quer? — Voltar. E encontrar... você. Ela mordeu o lábio, sentindo um incómodo — Irritada com ele — e ainda mais consigo mesma. — Avise-me quando pousar? Ele riu. Um riso curto, mas real. — Vejo você logo, Kiara. — Aham. Se eu não tiver pedido demissão antes. Ela desligou. Nicolas encarou o telefone, ainda sorrindo, mesmo com o gosto r**m do café. Roma era linda. Mas Kiara… Ela conseguia fazer até a culpa parecer um pouco mais leve. ...Silêncio. Ele ligou novamente, a linha telefónica parecia vibrar com tudo o que ainda não tinham coragem de dizer em voz alta. — Kiara... Ele disse, baixo, como se aquele nome fosse uma prece que só ela poderia entender. — Nicolas? Ela olhava para o computador, tentando se concentrar. Do outro lado, ele fechou os olhos. Não era saudade, ele achava. Era algo mais profundo. Como se o ar lhe escapasse, e ela fosse seu escape. — Estou com saudade do jeito que você fala “não”... Disse com um sorriso suave. Ela riu, mas a risada veio tingida de exaustão. — Você tem um talento especial para ser insuportável quando está cansado, sabia? — E você, não acredita no que falo. A voz dele se arrastava, como se a distância pesasse mais do que deveria. — Já disse que odeio quando me julga? — Já. Ela deixou de lado o relatório. — E eu já disse que, se você não me desses tantos motivos, não haveria julgamento. — Então o problema sou eu? — Sim. A risada dela foi curta, mas honesta. — Você é o problema, o caos... e o motivo pelo qual meu estômago está queimando desde sábado. — Isso é amor, Kiara. A mão dela tremeu. A xícara quase escorregou. O coração, esse traidor, vacilou — ainda que por um segundo. — Isso é úlcera. Respondeu, mordendo a parte interna da bochecha para não sorrir. — E se continuar assim, vou começar a cobrar adicional noturno e taxa de convivência. Nicolas riu. Era um riso de verdade — daqueles que limpam o peito e aliviam a alma. — Você é única, jamais alguém me fez sorrir assim. Ele disse. E havia uma ternura nova na sua voz. Como se ele tivesse parado de correr atrás do mundo só para descansar por um instante... nela. — Quando você volta? — Em algumas horas. Antes das três. — Ótimo. Ela tentou manter a voz firme. — Estarei no seu escritório. Ou talvez não. Talvez eu esteja num spa de luxo em Bali com o cartão da empresa. — Me avisa se for para Bali. A voz dele suavizou. — Eu vou junto. — Nunca. Ela riu, e dessa vez o sorriso doeu. — Você estragaria até Bali. E então, silêncio. E o som final. Ela desligou. Nicolas ficou olhando para o teto da suíte do avião, o celular ainda na mão, como se ela pudesse voltar só pelo desejo. Um sorriso escapou. E do outro lado do oceano, Kiara deixou as planilhas de lado. Olhando para o anel no seu dedo. Ainda fingindo que nao o queria. Porque Nicolas tinha cruzado fronteiras demais — e agora morava num lugar onde nem mesmo as paredes mais bem construídas conseguiam manter o coração dela a salvo. ** O som das portas de vidro se fechando atrás de Nicolas foi como um sussurro no meio do silêncio. Não havia anúncio de chegada. Nenhuma mensagem, nenhum alerta. Era quase meio-dia, e ele simplesmente estava ali — como um fantasma elegante, envolto num terno escuro que parecia moldado à mão para o corpo que o vestia. A cena diante dos seus olhos era como uma fotografia que ele queria guardar: Kiara, sentada na cadeira que tantas vezes fora dele, o corpo inclinado para a frente, uma perna cruzada sobre a outra, concentrada em cada palavra que dizia. A voz dela — em inglês firme, afiado, preciso — preencheu o espaço como uma melodia familiar. Não era apenas fluência. Era controle. Postura. Uma presença que tomava forma mesmo quando ninguém olhava diretamente para ela. — Sim, podemos reagendar, mas só se a equipe de Dubai confirmar a disponibilidade até quinta. Precisamos do posicionamento até amanhã no máximo. Caso contrário, vamos realocar para a semana seguinte. Entendido? Perfeito. Fico no aguardo. Obrigada. Ela desligou com a tranquilidade de quem sabia o que estava fazendo. Ainda não tinha notado a sua presença. E, por um instante, ele ficou grato por isso. Havia algo hipnotizante em observá-la assim — plena, imperturbável, tão dona daquele espaço quanto ele jamais fora. Quando ela sentiu que não estava sozinha, virou o rosto. E o viu. Ela tirou seus óculos, o encarando. — Está tentando me substituir? Ele perguntou, levando as mãos aos bolsos. — Se quiser, posso providenciar uma carta de demissão. Respondeu ela, girando a cadeira com calma ensaiada. — Me saí muito bem na sua ausência. Ele se aproximou, sem pressa. — Percebi. Disse, com um sorriso pequeno. — Estava ouvindo você negociar entre dois fusos diferentes, sentada na minha cadeira... como se fosse a dona da empresa. — Você sumiu, logo a adulta teve que tomar as rédeas.. Ela se levantou com graça, oferecendo a ele o tablet com a agenda. — Quer saber seus compromissos da tarde ou ainda vai fingir que sua presença aqui não exige explicações? Ele a observou. Por um segundo a mais do que deveria. O cabelo preso com distração. O vestido elegante, mas discreto. Tão profissional quanto inacessível. — Você está brava? Ele perguntou, com a voz mais suave do que o esperado. — Estou funcional. Respondeu ela, sem hesitação. — O que é muito mais produtivo do que estar brava. Ele recebeu o tablet, mas os olhos... não se moviam dos dela. — Dormiu bem? — O suficiente. E você? Teve sonhos romanos? Ele finalmente sentou, mas não na cadeira. No sofá. Como se recusasse a tomar de volta o lugar que ela tinha ocupado tão bem. — Sonhei com uma assistente que tomava meu lugar e assumia o controle da empresa. Fez uma pausa, com um brilho no olhar. — Estava vestida como você. — Um pesadelo, então. — Ou talvez... o começo de um sonho perigoso. Ela revirou os olhos e pegou a pasta da próxima reunião. — Recomendo um banho, sua aparência está horrível, e você tem uma reunião importante. — Vai continuar cuidando de mim, então? — Até entender que preciso ir. Dessa vez, ele sorriu com sinceridade. Ela saiu da sala. Sem olhar para trás. E Nicolas ficou ali, por um momento a mais, observando o lugar onde ela estivera.
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