5. Capítulo — A Mensagem Que Faltava

2277 Words
Naquela semana, enquanto Nicolas falava ao telefone com um diplomata italiano, Kiara fitava a tela do celular como se algo fosse cair do céu. Era uma terça-feira nublada em São Paulo. Naquele sábado, seu pai faria aniversário — um lembrete incômodo, um peso antigo alojado no peito. Um dos motivos pelos quais se mudara para a cidade — não só pelo trabalho, nem apenas pela carreira — era a esperança de, enfim, reconstruir alguma ponte com aquele homem. Seu pai. Ela se lembrava com clareza dos dias bons — dos domingos de palavras-cruzadas, dos filmes antigos que assistiam juntos, das histórias inventadas antes de dormir. Até os doze anos, ele fora seu herói sem capa. Um homem que a fazia rir — e sentir-se importante. E então... veio a ausência. Anos depois, casou-se com Suzana — muito mais jovem, linda e solar, o oposto discreto da mulher com quem havia se separado. E quando Kiara, já com quinze anos, dissera que queria morar com ele, recebera apenas uma mensagem curta, quase clínica: “Suzana está grávida. Não é uma boa hora para disputar atenção com ela. ” Disputar atenção. Kiara jamais esquecera aquelas palavras — como se amor de pai fosse um troféu escasso, reservado a quem gritasse mais alto. Sua mãe, sempre realista, dissera com ternura dolorida: — Não crie expectativas, Kiara. Seu pai é alguém feito para ser esquecido, não carregado no coração. Ele sempre foi assim. A ausência dele dói menos quando você para de esperar que ele mude. Mas Kiara... ainda queria tentar. Na semana do aniversário dele, ela comprou um livro raro que sabia que ele adoraria — uma edição antiga de Neruda que ele citava nos velhos tempos. Mandou embrulhar com um laço discreto, azul-marinho. Colocou um cartão. Nada sentimental. Apenas: “Feliz aniversário, pai. Que o dia te abrace com leveza. – Kiara” Nicolas notou sua expressão mais silenciosa do que o habitual quando ela entrou em sua sala para revisar os contratos da semana. Ela disfarçou. Ele não perguntou. Mas, ao final do dia, ele passou por sua mesa, como quem ia embora, e disse: — Vai fazer alguma coisa no sábado à noite? Kiara franziu o cenho, surpresa. — Não. Quer dizer, provavelmente só vou entregar um presente e talvez fingir que o fim de semana não existe. Ele se aproximou com passos lentos, os olhos brilhando com aquele tom que sempre a deixava alerta, como se soubesse mais do que dizia. — Estou indo a um jantar em Riviera de São Lourenço. Um empresário norueguês comprou uma casa absurda por lá e quer impressionar investidores. Preciso fazer social. Quero que vá comigo. — Como... acompanhante de trabalho? Ela provocou, cruzando os braços. — Como alguém que não me deixa cometer gafes diplomáticas. Ele sorriu. — É porque você sempre me diz quando meu paletó está torto antes que alguém mais perceba. Ela hesitou por um instante. Riviera. Coincidentemente — ou talvez não tão coincidentemente assim — era perto de onde seu pai agora morava com Suzana e suas irmãs, naquela casa de portões altos e silêncios longos. Mas Kiara não questionou. Nem sobre o convite, nem sobre a coincidência. Apenas assentiu devagar, com um pequeno sorriso. — Tudo bem. Eu vou. — Ótimo. Nicolas inclinou a cabeça, satisfeito. — Vista algo azul. Combina com você. Ela o observou sair da sala como quem atravessa um filme antigo — em câmera lenta, deixando no ar um rastro de intenções não ditas. ** Naquela noite, em casa, Kiara colocou o vestido no cabide com cuidado. Sabia que não era só um jantar. E, apesar de tudo, seu coração se apertava com uma esperança inesperada. Talvez seu pai ficasse feliz ao vê-la. Lhe dissesse algo gentil. E quem sabe, por um momento, voltassem a ser apenas pai e filha. E... só isso fosse suficiente. O som grave das hélices preenchia o céu cinza, abafando o silêncio entre eles. Kiara mantinha os olhos fixos na paisagem que deslizava sob o vidro curvo do helicóptero. O litoral paulista se estendia como uma pintura úmida — prédios altos sendo engolidos por montanhas cobertas de verde, a linha tênue entre o concreto e o mar. A chuva fina deixava tudo com um brilho opaco, quase melancólico. Ela ajeitou o cinto com um gesto automático, o vestido azul-marinho caindo com elegância sobre os joelhos cruzados. Tinha escolhido o tom por causa dele — embora jamais fosse admitir. Nicolas estava ao lado, sem gravata, as mangas da camisa dobradas, o olhar preguiçoso alternando entre o tablet e ela. — Nervosa? Ele perguntou, sem tirar os olhos da tela. — Não com o jantar. Respondeu, mantendo a voz firme. — Só estou pensando se deveria ter trazido uma segunda opção de presente. Noruegueses me parecem imprevisíveis. Ele riu baixo, um som que se perdeu no ronco constante das hélices. — Você está linda. Isso basta. Ela virou o rosto para ele. — Isso basta para quê? Nicolas fechou o tablet, inclinando-se um pouco. A distância entre eles ficou... perceptível. — Para manter qualquer um interessado em te ouvir. Mesmo que você só esteja falando sobre safras de vinho ou diplomatas antipáticos. Ela suspirou, voltando a olhar pela janela. O mar agora se tornava visível, cortando a costa com força e beleza. E, mais à frente, entre coqueiros e telhados geométricos, surgiu a silhueta da mansão — moderna, com janelas imensas e um heliporto iluminado, destacando-se como uma joia arquitetônica sobre a encosta. — Estamos quase lá. Disse o piloto, num tom prático. Kiara apenas assentiu. E foi nesse instante, enquanto seus olhos ainda acompanhavam o traçado da propriedade, que Nicolas falou — como se fosse uma sugestão banal, um comentário entre muitos. — Depois do jantar, pensei em dar uma volta. Seu pai ainda mora por aqui, não é? ? Ela piscou devagar, mas não respondeu de imediato. — Mora, sim. Disse por fim, com a voz neutra. — Não é longe daqui. — Quer passar lá? Ela se virou, surpresa, mas sem agressividade. Apenas surpresa real. Não por ele saber, mas por ele perguntar com aquela naturalidade gentil, como se fosse óbvio que ela poderia — ou deveria — fazer isso. — Talvez. Murmurou. — Se der tempo. — A gente faz o tempo. Ele respondeu, voltando a se recostar no assento como se não tivesse acabado de oferecer a ela algo que ninguém mais oferecia: espaço. O helicóptero começou a descer. E Kiara, com o coração batendo mais rápido que o motor, soube que aquela noite não seria apenas um jantar diplomático. ** O vento ainda brincava com os cabelos de Kiara quando os sapatos elegantes tocaram o chão do heliporto revestido de pedra branca. O calor úmido da noite litorânea abraçou-a com sutileza, misturado ao cheiro de mar e das flores que decoravam o caminho até a entrada principal da mansão. Nicolas estendeu o braço, como se fosse um gesto casual, mas havia uma intencionalidade serena em guiá-la até ali. Eles caminharam pelo vilarejo envolto em bruma e lavanda silvestre até a entrada de uma casa de madeira clara, com janelas iluminadas por dentro. Kiara apertava o casaco contra o peito — o frio não vinha só do clima. Ela ainda não sabia o que esperar daquele jantar. Só sabia que não era um jantar de negócios. Antes que Nicolas tocasse a campainha, a porta se abriu com espontaneidade. — Nicolas! Exclamou uma mulher ruiva, de olhos acolhedores e um sotaque musical ao falar o português com leveza. O sorriso largo e genuíno se abriu antes mesmo do abraço. — Você demorou. Ela o envolveu nos braços, como quem acolhe um velho amigo, com afeto sem cerimônia. Foi quando uma menina pequena, de cerca de seis anos, surgiu pelos corredores com a urgência e o entusiasmo de quem esperava por aquele momento o dia inteiro. — Onkel! Gritou, lançando-se nos braços de Nicolas. A cena fez Kiara parar instintivamente a poucos passos da porta. Ela não entendia norueguês, mas reconhecia a pureza da alegria em qualquer idioma. Nicolas a ergueu do chão com facilidade, rindo com a mesma naturalidade que raramente mostrava em ambientes formais. A menina o rodeou pelo pescoço, depois pousou os olhos escuros em Kiara — que permanecia à soleira da porta, sem saber se interrompia ou observava. — Kiara, esta é Elisabeth. Disse Nicolas, indicando a mulher ruiva com um gesto elegante. — E essa pequena aqui é a Ingrid. — Ingrid tem seis anos. Completou Elisabeth, com o sorriso voltado agora para Kiara. — Ela entende mais português do que fala, mas... é observadora. Como toda criança curiosa. Ingrid, ainda nos braços de Nicolas, inclinou-se até ficar à altura do rosto dele e disse algo em norueguês, quase sussurrado, mas com a naturalidade de quem pergunta uma coisa óbvia: — Er hun kona di? Kiara franziu o cenho, intrigada com o som da pergunta. Era evidente que se dirigia a ela, mas a palavra final, carregada de expectativa, escapava à sua compreensão. Nicolas sorriu de lado, inclinando-se para responder algo também em norueguês. A frase foi curta, quase uma confidência entre os dois. Ingrid arregalou os olhos, soltou uma risada baixa, e saiu correndo para dentro da casa. Kiara voltou o olhar para ele, claramente curiosa. — O que ela disse? Nicolas apenas piscou, desviando os olhos com a mesma calma provocadora de quem sabe exatamente o efeito que causa. — Nada importante. Respondeu, com uma leveza que só serviu para deixar o mistério ainda mais espesso. Elisabeth, que testemunhava a troca com o riso nos olhos, lançou-lhe um olhar cúmplice. Kiara sorriu com polidez. Treinada demais para ser descortês, educada demais para recuar. Mas por dentro… algo trincou. ✦ Enquanto atravessava o hall em silêncio, envolta por paredes de madeira clara e aromas de jasmim e pão recém-assados, sentiu-se como alguém que espreita a janela de uma vida que nunca será sua. O riso leve de Ingrid preenchia a sala. Nicolas conversava com Elisabeth em norueguês — fluente, confortável, quase doce. Não era um jantar profissional. Nunca foi. Ele a trouxe ali por outro motivo. E isso a deixou mais exposta do que gostaria de admitir. Ela desviou o olhar para o vidro da janela, os dedos tamborilando na borda da mesa. Por um instante, seu peito apertou, uma mistura confusa entre o desconforto e algo que beirava a fascinação. Um peso estranho se alojou no peito — como se cada gesto ali dissesse: veja bem — é assim que se pertence. A boca se fechou num fio tênue, enquanto uma pontada de dúvida cruzava seus pensamentos. E se ele realmente quisesse que ela estivesse ali? Não para impressionar os outros, nem para seduzi-la, mas porque, naquele universo dele, reservado e protegido, havia um espaço vazio — e ela, por algum motivo inexplicável, ocupava esse lugar. O pensamento sussurrou dentro dela, doce e inquietante, despertando um desejo silencioso de pertencer, junto a um medo frio de se perder. Ela engoliu em seco, respirou fundo, e sentou-se na cadeira, como se entrasse em um jogo de xadrez onde não sabia se era rainha, bispo, ou apenas um peão. Mas olhou para Nicolas — e, por um breve instante, ele também a olhava. Sem ironia. Sem controle. Apenas olhava. E naquele instante… o mundo dela já era outro. ✦ A casa era moderna, de linhas limpas e grandes paredes de vidro. Por dentro, luzes âmbar davam ao ambiente um clima acolhedor, quase íntimo, que contrastava com a imponência arquitetônica. Tudo exalava uma sofisticação discreta, sem exageros — o tipo de lugar onde o luxo não precisava se anunciar. Kiara se sentia deslocada de certa forma. — Nicolas! Exclamou o homem, não tinha jeito de um norueguês, era alto, cabelos quase grisalhos e olhos claros como mar aberto. Abraçaram-se com familiaridade, como velhos amigos reencontrados após longas viagens. Elisabeth conduziu Kiara até a ampla varanda, onde o som do mar se misturava ao tilintar dos copos de cristal. Sentaram-se em espreguiçadeiras com almofadas bege, e logo uma funcionária surgiu com duas taças de vinho branco gelado. — Ele parece diferente. Comentou Elisabeth, com naturalidade. Seus olhos repousaram sobre Nicolas, que ria com sinceridade do outro lado da varanda. — Conheço Nicolas há muitos anos. E, sinceramente… nunca o vi tão leve. Ou tão sorridente. Kiara sorriu com educação, mas sentiu um leve rubor lhe subir pelas bochechas. — Ele é… exigente no trabalho. Mas também sabe ser generoso. — Há quanto tempo estão juntos? A pergunta a pegou desprevenida. Kiara desviou os olhos por um segundo, depois voltou a encará-la, medindo bem as palavras. — Eu trabalho com ele há quase quatro meses. Sou assistente pessoal. Elisabeth inclinou levemente a cabeça, sem perder o sorriso. — Assistente? — Sim. Respondeu Kiara, com um pequeno riso nervoso. — Apenas isso. Elisabeth deu um gole no vinho e balançou a cabeça, como quem finge acreditar. Kiara procurou Nicolas automaticamente. Ele ainda conversava com o homem, agora mais relaxado do que ela já o vira nos últimos dias, com o copo de uísque na mão e os sapatos abandonados embaixo da poltrona de madeira. Não era um encontro protocolar com investidores. Era pessoal. E, de repente, tudo parecia mais íntimo do que ela imaginara. — Ele é como um irmão mais novo para Rodrigo. Explicou Elisabeth, gentilmente, percebendo o silêncio de Kiara. — E tem um carinho enorme pela nossa filha. Mas hoje… parecia ansioso para você vir. Kiara não soube o que responder. A noite ainda estava começando. E talvez, no meio daquele cenário luxuoso e inesperadamente afetivo, ela precisasse rever tudo o que pensava saber sobre o homem ao seu lado.
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