ISABELA
Eu cheguei alguns minutos antes da aula começar. As luzes ainda estavam apagadas, os corredores silenciosos, como se a universidade inteira segurasse o fôlego.
Meu coração também.
Desde aquela noite no corredor — desde a forma como o corpo dele encostou no meu por acidente, desde o jeito que ele disse meu nome como se tivesse sido arrancado da boca dele — eu não era mais a mesma.
E eu o odiava por isso.
Odiava como eu mesma tinha virado alguém que… esperava por um sinal. Mesmo sabendo que nada daquilo deveria existir.
Entrei na sala vazia e escolhi um lugar ao fundo. Queria evitá-lo. Ou talvez… só observar sem ser observada.
O cheiro dele chegou antes da presença. Cedro, algo amadeirado, inconfundível. A porta se abriu devagar e, mesmo sem olhar, eu sabia que era ele. Meu corpo sabia.
Arthur Moretti.
A minha ruína.
— Chegou cedo hoje, senhorita Duarte. — A voz dele se espalhou pela sala, baixa, firme, perigosa.
Eu ergui os olhos. Ele já me encarava — mas não como um professor observa uma aluna.
O olhar dele descia… subia… me despia sem tocar.
E eu deixei. Porque não tinha força para não deixar.
— Não consegui dormir — respondi, tentando manter a voz estável.
A sobrancelha dele arqueou levemente.
— Insônia tem cura… dependendo do motivo.
— E se o motivo for… irritante? — provoquei.
Ele parou. A postura rígida. As mãos se fecharam como se segurassem alguma coisa invisível.
— Irritante? — repetiu, se aproximando um passo.
O suficiente para minha respiração vacilar.
— Ou… instigante?
O calor subiu pelas minhas pernas, pelo meu pescoço. Ele estava fazendo de propósito, eu sabia. E ainda assim… eu queria.
— Depende da perspectiva — respondi.
E por um segundo — um único segundo — eu juro que vi a máscara dele rachar.
Os lábios dele abriram, como se fosse dizer algo que ele não deveria. Algo impulsivo. Algo que pudesse destruir nós dois.
Mas a porta se abriu, e os alunos começaram a entrar.
Arthur deu um passo para trás tão rápido que parecia ter levado um choque.
A frieza voltou ao rosto dele.
O professor substituiu o homem.
Mas eu tinha visto.
Eu tinha visto tudo.
⸻
ARTHUR
Maldita seja essa garota.
Maldito seja o jeito que ela me olha.
Maldita seja a forma como o meu nome soa na boca dela, como se acendesse algo que eu passei anos tentando matar.
Ela chegou cedo.
E eu não deveria ter falado nada.
Não deveria ter dado aquele passo.
Não deveria ter deixado minha voz baixar daquele jeito, nem deveria ter olhado para a boca dela como se fosse cometer um crime.
Mas eu cometi.
Eu olho para ela e esqueço a p***a do mundo.
E isso é um problema.
Um problema real.
Porque eu sei o que acontece com professores que cruzam linhas — mesmo quando não cruzam.
Eu sei o peso de uma denúncia falsa.
Eu carreguei esse peso sozinho.
E deixei cicatrizes que ninguém vê.
Eu jurei nunca mais dar espaço para qualquer situação interpretada como inadequada. Nunca mais confiar na minha própria humanidade dentro de uma sala de aula.
Mas então… ela apareceu.
E meu controle deixou de ser absoluto.
Durante a aula, fiz o possível para manter distância. Mesmo assim, cada vez que eu olhava, Isabela me encarava com aquele olhar que dizia mais do que qualquer palavra.
Um olhar que sabia o que fazia comigo.
Um olhar que me tirava do eixo.
Ela não anotava nada. Só me observava como se estivesse tentando decifrar os demônios que escondo.
E o pior?
Parte de mim queria que ela descobrisse.
— Senhorita Duarte — chamei, percebendo que ela desviava o olhar pela primeira vez.
Eu queria recuperá-lo.
Idiota.
— Pode ler o trecho em destaque?
— Claro, professor — ela respondeu, mas a voz… a voz veio baixa, quente, quase… desafiadora.
Ela leu.
E quando a palavra ética deslizou pela boca dela, eu senti o veneno da ironia.
Nós dois sabíamos que, naquele momento, não havia nada ético no que estava acontecendo entre nós.
Nada.
Quando a aula acabou, eu tentei sair rápido. Precisava respirar. Precisava colocar gelo no que queimava dentro do peito.
Mas ela bloqueou a porta antes que eu alcançasse a saída.
— Professor — disse, cruzando os braços.
A blusa dela subiu um pouco, revelando um pedaço de pele na cintura.
Inofensivo.
Letal.
— A gente precisa conversar.
Eu fechei os olhos por um instante.
Não.
Não agora.
Não sozinhos.
— Não é apropriado, senhorita Duarte.
— Você não pareceu muito preocupado com o que é apropriado hoje cedo — ela respondeu, dando um passo à frente.
O chão sumiu sob meus pés.
Ela estava certa.
E eu estava perdido.
— Isabela… — meu tom saiu rouco, falho, honesto demais.
— Eu te incomodo? — ela sussurrou.
Mas não era insegurança.
Era provocação.
Era guerra.
— Você… — eu engoli seco — é perigosa.
O sorriso dela foi a minha sentença de morte.
Ela se aproximou mais um passo.
Um passo que tirava o ar do meu corpo.
Um passo que dissolvia anos de autocontrole.
— Então por que você treme quando eu chego perto?
Eu não tremia.
Eu era mais frio que gelo.
Eu era sólido.
Mas por ela?
Sim.
Eu tremia.
Eu abri a boca para responder.
Para dizer que isso tinha que parar.
Para colocar barreiras, limites, paredes.
Mas então—
A porta se abriu novamente.
Lucas apareceu.
O olhar dele caiu sobre nós.
Primeiro nela.
Depois em mim.
E o mundo parou.
— Interrompi alguma coisa? — ele perguntou, a voz firme demais, como se estivesse preparado para enfrentar o próprio inferno.
Isabela deu um passo para trás.
Eu dei dois.
E mesmo assim, era tarde demais.
Ele tinha visto.
Ele tinha sentido.
Ele sabia.