feet don’t fail me now
A chuva caía pela janela. Trazia em cada gota a lembrança viva de um passado nunca esquecido. Juliette se lembrava, todo dia, da mesma história. Fazia seis anos agora, mas parecia que tudo havia acontecido ontem.
Ela tinha saído do Rio de Janeiro com uma dor no peito, e deixando uma história para trás. Seu casamento da adolescência tinha chegado ao fim. Oito anos casada com Rodolffo Matthaus. O único homem de sua vida, e ainda assim Juliette nunca tinha sido realmente feliz. Seu maior desejo de ser mãe, ia cada dia morrendo naquele casamento, até que chegou a hora de terminar tudo.
Para esquecer e encontrar um novo caminho na vida, ela decidiu estudar inglês em Nova York. Sua irmã e tia deram todo seu apoio, e contra os conselhos da mãe, Juliette partiu para uma temporada longe de tudo.
Nova York foi a melhor escolha da sua vida. Além dos estudos, que iam super bem, Juliette conheceu uma vida que nunca sonhou em ter. Tinha feito amigos novos e de todos os lugares do mundo. E por um desses novos amigos ela conheceu Sarah. A tão badalada e famosa Sarah. Seu nome não era tão conhecido na fotografia, mas nas mesas de bar, não tinha quem não suspirasse por aquela mulher.
A linda moça de cabelos loiros, olhos esverdeados e pele branca como a neve, logo a conquistou. Ela falava do mundo com a experiência de alguém com seus sessenta anos, mas Sarah tinha a mesma idade de Juliette. Sua liberdade, seu desejo de viver era contagiante, e Juliette não se lembra ao certo, quando aquela aventura, aquele tempo de descoberta, tinha se transformado em amor.
Amor que era recíproco. A conquistadora Sarah tinha se acalmado, seus olhos e atenção eram todos para Juliette. Com o fim do curso de inglês, Juliette estendeu seu visto e ficou trabalhando como assistente de Sarah. Compartilhavam seus sonhos e desejos para a vida. Juliette ainda não lembra como teve coragem, quando pediu para Sarah ser a mãe dos filhos dela.
O olhar vivo de Sarah, a alegria que tomou conta da mulher. Juliette lembrava de tudo. Aquele perfume inesquecível, aquela pele macia. Tantas noites de amor que vieram depois daquele pedido. Tanto amor naquela tristeza que se abateu.
Por alguma razão Juliette não conseguia manter a gravidez. Já tinham tentando todas as formas de inseminação, trocado o doador, mas o terceiro mês chegava, e a criança morria. A infelicidade, o sentimento de frustração, saber que todos aqueles anos em que ela secretamente havia culpado o ex-marido por não ter um filho, era na verdade culpa dela. Então, Sarah mais uma vez foi altruísta demais. Entregou seu óvulo e deixou que Juliette tivesse a gravidez desejada.
Passou o terceiro mês, e a cada mês sua barriga ia crescendo. Aquela vida ali dentro era calma, mas era o mais puro amor. Se seu sorriso tinha voltado, seu casamento com Sarah tinha voltado aos tempos gloriosos. As noites eram cheias de amor, e os dias uma espera infinita pelo nascimento daquele ser tão amado pelas suas mães.
Foi na trigésima sétima semana que o trabalho de parto se iniciou. Aquela dor, aquele momento que parecia eterno. Horas gritando, para no fim tudo se acalmar e ser celebrado com um choro. O primeiro choro, o primeiro contato. Juliette se sentiu completa quando segurou sua linda bebezinha no colo pela primeira vez.
Sarah seguia como a autêntica mãe de primeira viagem. Se a bebê respirasse diferente ela já sabia, e estava com o telefone na mão, pronta para ligar para o médico, caso se repetisse. Os choros da madrugada, as trocas de fraldas. Tudo era motivo de alegria. Tudo elas aprendiam juntas.
Tudo era amor, então Juliette não soube o que aconteceu. Ela sentia o amor. Mas ele não parecia ser suficiente. E Nova York ficou sufocante. Aquela vida naquele apartamento ficou sufocante. Sarah e a bebê ficaram sufocantes. E foi num dia de chuva, que ela saiu. Bateu aquela porta, e nunca mais voltou.
Todos os dias desde aquele dia. Todo momento, em cada raio de sol ou cada gota de chuva, Juliette sabia que devia ter voltado. E ela ainda não sabia porque não o tinha feito.
– Juliette, vamos começar? – A médica chamou. A doutora Karoline fazia tratamento psicológico com Juliette há cinco anos. Desde o mês passado, as sessões haviam diminuído de duas vezes na semana para uma. Era o segundo grande progresso dela em todos esses anos.
Juliette acordou de seu devaneio e levantou, cumprimentou a tão conhecida médica e entrou em seu consultório.
– Como estamos essa semana, Juliette? – Karoline iniciou a consulta.
– Melhor que semana passada. – Juliette nunca sentava, ela gostava de andar pelo consultório. Detestava ficar parada, cada vez que parava, uma dor invadia seu peito.
Ficar parada significava não fazer nada, e não fazer nada foi o que ela fez em Nova York.
– Você está mais agitada hoje. Aconteceu alguma coisa?
– Duas coisas.
– E não vai me contar?
– Faz exatos cinco anos amanhã. Cinco anos que eu larguei minha vida.
– Nós já conversamos sobre isso, Juliette. Você não largou sua vida. Você tentou salvá-la.
– Daqui a três meses Maria Isis vai fazer seis anos. E sabe onde ela vai estar?
– Onde ela vai estar, Juliette?
– Aqui no Brasil. – Ela olhou pela primeira vez para a doutora.
– E como você sabe disso?
– Eu li naquela revista internacional de fotografia que eu assino. Tinha uma nota da Sarah, ela está vindo para o Brasil. Pro Rio. – Juliette sorriu.
– Juliette, esse é um terreno muito perigoso, e não faz tanto tempo assim....
– Sabe o que é perigoso Karoline? Você. Seus remédios. Seis anos que eu não vejo minha filha. Qual foi a vez que eu entrei aqui e não falei delas? Responde! – Ela alterou seu tom de voz.
– Nenhuma. – Karoline respondeu com calma.
– Exatamente. Faz cinco anos que eu morro a cada dia de arrependimento e você vem me dizer que minha filha é um terreno perigoso? Perigoso é eu continuar ouvindo você.
– Eu só quero te ajudar Juliette. Faz cinco anos que você não vê sua filha, não fala com a Sarah. E se a menina não souber de você? E se a Sarah tiver outra pessoa? Você acha que ela parou a vida por que você foi embora? Você já pensou no que ela passou, no que ela sentiu, no que ela sente?
– Eu quebrei o coração dela. Eu deixei a minha filha. – Juliette respondeu séria. Respirou fundo e com toda a sua convicção disse. – E agora eu vou consertar isso, e ter a minha filha e minha mulher de volta.
(...)
Sempre nessa época do ano, Sarah trabalhava dobrado. Ela se ocupava mais e mais, assim não tinha tempo livre para pensar no que aquela data trazia. Ela estava morta, Sarah sempre dizia para si mesma, e ainda assim, nunca conseguiu pôr um ponto final. As palavras nunca foram ditas, o choro nunca veio. Ela não teve tempo. Tinha um bebê para cuidar, para criar, tinha uma carreira para administrar e tinha que dar conta de tudo sozinha.
A única que conseguia sempre arrancar um sorriso de seus lábios era a pequena Maria Isis. A mini Sarah, como Kerline chamava, era realmente a cara dela. A mesma pele branquinha, os olhos esverdeados, e o cabelo loiro. O sorriso, e o humor matinal também tinha herdado de Sarah. Mas aquele amor, aquele carinho que ela expressava sempre com um sorriso e um gesto, por mais que a biologia dissesse que não, a fotógrafa sabia que eram de Juliette.
– Mommy! – Isis correu e se jogou nos braços de Sarah.
– Você está toda suada. – Sarah disse enquanto cobria a filha de beijos. – Posso saber por onde a srta andou?
- Aunt Ker took me to...
– Em português, só português agora. – Sarah cortou a filha, que parou um pouco e recomeçou a frase.
– Tia Ker me levou para comprar a mala para viagem, e daí na volta paramos no parque, e eu corri um pouco. – Isis falou com o sotaque ainda carregado.
– Mas que mala?
– Uma da Minnie que eu vi, pequena para ir no meu colo.
– Você viu né? Como você é espertinha, já não tinha mala o suficiente para levar?
– Ai, Sarah, ela queria para levar as coisas de mão dela. – Kerline interrompeu a resposta de Isis.
– As coisas de mão dela, vão na minha mala né, Ker.
– Mas agora eu tenho a minha, mommy.
– E o que a srta vai levar nessa mala, posso saber? – Sarah perguntou olhando séria para Isis.
– A Tinker Bell... – Isis começou a usar os dedos para contar. – O meu cheiro, e chocolate? – Vendo a pouca quantidade de coisas listadas, ela ficou insegura.
– E? – Sarah insistiu e em socorro Maria Isis olhou para Kerline.
– E quando ela for fazer a mala, ela vê o que mais vai levar. É muita coisa para saber de cabeça Sarah.
– Mas que bela dupla vocês são. – A fotógrafa respondeu, e Kerline deu uma piscadinha para a pequena que sorriu enquanto abraçava a fotógrafa. – Anda, vamos tomar um banho e se arrumar pro jantar.
Sarah levou Isis para o banheiro, ligou o chuveiro e enquanto a menina entrou foi pegar as roupas e a toalha.
– Mommy, quem vai ser minha teacher? – Isis perguntou na volta de Sarah.
– Professora, filha. E eu tenho que falar com a escola primeiro, ver quem eles vão indicar.
– É que eu esqueço como se fala em português.
– Eu sei, mas você sempre falou bem direitinho, não vai ter problema. Quando a gente estiver lá, fica mais fácil porque todo mundo vai falar igual. – Sarah disse lavando os cabelos da filha.
– A minha outra mama era de lá né? – Isis perguntou, o tom triste que ela trazia sempre que fazia essa pergunta, cortava o coração de Sarah.
– Era, por que?
– Será que eu não tenho um vô lá também? Como eu tenho o vô Diogo.
– Eu não sei, filha. A mamãe já te explicou, eu conheci sua mãe aqui em Nova York e nós não chegamos a ir ao Brasil visitar a família dela. Nem o vovô Diogo chegou a conhecê-la.
– A tia Ker chegou a conhecer, e ela não me conta nada.
– Mas o que você quer saber? Você pode perguntar pra mim. – Sarah desligou o chuveiro e passou a secar a pequena.
– Você fica triste, não gosto de ver você triste.
– Não é tristeza amor, é só saudades. – Respondeu e virou a filha para que ela não visse as lágrimas em seus olhos. Terminou de secar a pequena e antes que ela fugisse a segurou.
– Não mommy, não seca o cabelo.
– Claro que sim. Fica aqui, Maria Isis. – Sarah segurou a filha com mais força.
E com muito custo secou os cabelos da pequena. Essa era sempre a pior parte dos banhos de Maria Isis, e não havia outra pessoa que conseguisse esse feito além de Sarah.
Enquanto Sarah foi para o seu banho, Isis ficou esperando a mãe na cama dela, vendo um livro de fotos que Sarah sempre levava para todos os lugares.
– Você está com fome? – Kerline pulou na cama ao lado de Isis, sorrindo.
– Tou sim. A gente podia comer pizza né?
– Vamos dar essa ideia pra sua mãe. Nossa última noite em Nova York, fechar com chave de ouro.
– Isso! - Isis respondeu
– E por que essa carinha? Já está com saudades daqui?
– Perguntei da minha outra mama pra mommy, mas ela ficou triste. – Isis abaixou a cabeça. – Ela diz que não fica, mas eu sei que fica.
– E por que você perguntou, meu amorzinho? Essa mama não faz parte da sua vida. Pra que saber dela?
– Curiosidade, Kerline. – Isis respondeu, mas se não fosse o tom de voz, poderiam facilmente dizer que era a Sarah falando.
– Mas ó se não baixou a Sarah na pessoa. – Kerline começou a fazer cócegas na menina, e enquanto as gargalhadas da pequena enchiam o quarto quase vazio, a fotógrafa saiu do banheiro.
– Olha a bagunça das duas. – Sarah sorriu ao ver a diversão das duas. De todas as pessoas que ficaram contra ela durante o período que Juliette sumiu, Kerline seguiu firme ao seu lado. A mesma Kerline que tinha pavor de criança, foi quem permaneceu e aprendeu a trocar fralda, fazer mamadeira, e cuidar de bebê. Até cantando para Isis dormir Sarah já tinha pego a amiga fazendo.
– Mommy, vamos comer pizza? Para vibrar nossa última noite em Nova York. – Isis disse com toda empolgação quando viu Sarah entrar no quarto.
– Vibrar? – Kerline gargalhou. – Pequena é outra coisa que vibra por aqui.
– Kerline. – Sarah repreendeu a assistente.
– Não é vibrar? – Isis olhava da mãe para a tia sem entender o porquê das suas reações.
– Não amor, é celebrar, comemorar. – Sarah respondeu para a filha, ainda fazendo cara f**a para a amiga. – Vamos comer sim. E você pode escolher os sabores sozinha.
– Ai, Sarah, pô, você sabe que ela vai escolher só doce né?
As três saíram rindo do apartamento da fotógrafa. Pegaram um táxi e foram em direção à pizzaria preferida delas. A imagem perfeita, de uma família imperfeita.
Kerline não tinha o amor que queria da fotógrafa, mesmo depois de todos esses anos. Sarah sofria calada por nunca ter esquecido Juliette. E a pequena Isis, só queria conhecer a mulher misteriosa que preenchia seus sonhos, desde o dia em ela havia visto aquele rosto, nas fotos escondidas da mãe.
Sarah deu um beijo na cabeça da filha e internamente pediu para que essa volta ao Rio de Janeiro tivesse sido a decisão correta.