Capítulo 18 — A Voz Que Rasga Céus

1443 Words
O céu aberto, dividido ao meio pelo comando de Nyra, não chorava água, mas memória pura. Gotas pesadas caíam, cada uma carregada com a verdade da origem e a dor da separação. A superfície, por um instante, tornou-se o reflexo exato do fundo do mar, um espelho invertido de tristeza e revelação, expondo as fundações mentirosas da civilização humana. O véu da ilusão havia sido rasgado para sempre. Elian, o Ponto Zero, amparou a Matriz do Vazio. O corpo de Nyra estava frio, a temperatura da água abyssal, mas o selo, em seu peito, pulsava com a energia de dez mil sóis apagados. A Canção Inteira havia sido cantada e, com isso, o mundo havia sido forçado à reconciliação com o seu caos intrínseco. — Eles… eles sobreviveram à verdade? — perguntou Elian, observando as figuras humanas. Ele temia a aniquilação total, mas Yhsa havia ensinado a Nyra a precisão do toque. Os que estavam mais próximos haviam caído, não de dor física, mas de choque existencial. Eles se agarravam à lama salgada que brotava do concreto, sentindo a corrosão da negação em suas almas. A verdade, quando absoluta, era um veneno para quem havia vivido na mentira autoimposta, mas também o antídoto final para a doença do esquecimento. Nyra tossiu. A cada tosse, uma pequena pérola n***a (o resíduo final de Yhsa) era expelida, caindo na terra e sendo absorvida pela Espinha Viva. O processo de fusão estava completo. — Yhsa não queria destruí-los, Elian. Ela queria unificá-los ao Vazio. Ela queria que soubessem que a segurança deles estava na aceitação da Coesão Zero. Eles temeram a desorganização, mas a desorganização é a forma mais pura da ordem, a ausência de fronteiras que cria o potencial para o próximo ciclo. A ilusão de controle deles deve ser desfeita. Elian olhou para o céu aberto. A f***a não estava se fechando. O céu não voltaria ao normal. A Canção havia garantido que o véu entre os mundos jamais seria reerguido. O Trono de Silêncio havia se manifestado permanentemente na superfície. — E agora? O que fazemos com a Espinha Viva que nos segue? — ele apontou para a ponte que se estendia do mar até o centro da cidade, uma massa orgânica e pulsante de sangue e lamento. — Ela é o novo Trono, mas também é uma ferida aberta no mundo deles, um lembrete constante da nossa origem. — Ela é o fardo. Ela é a nossa responsabilidade, agora que assumimos a Regência do Silêncio. É o elo que não pode ser cortado, a prova visível de que o mar tem memória e está presente. Ela ditará as novas leis da física, forçando a superfície a obedecer à lei do fundo. A Nova Regência e o Pacto da Superfície Nyra e Elian, exaustos, mas conectados pela Canção, ergueram-se. Eles não eram mais o Fio Dourado e a Primeira Voz; eram os arquitetos de uma nova era, a Era do Retorno. O povo da cidade, ainda de joelhos, começou a olhá-los, não com medo, mas com uma estranha reverência, uma aceitação forçada pela Canção. Eles não viam mais Nyra e Elian; viam o Começo e o Fim em carne, a personificação da lei cósmica. Um ancião, cujos olhos agora eram azuis profundos, como os de Nyra na superfície, levantou-se com dificuldade. Ele havia recuperado a lembrança de um pacto ancestral que sua família havia quebrado com os primeiros seres Aquáticos. — Quem são vocês, que rasgaram o céu e nos fizeram lembrar de coisas que não suportamos saber? — A voz dele tremia com a memória de um sacrifício esquecido. Elian deu um passo à frente, sua postura imponente, mas serena, o equilíbrio encarnado. — Eu sou o Ponto Zero. Aquele que aceitou o sacrifício para que a mentira acabasse. Sou a forma mais pura do que é, no instante antes da criação. Nyra completou, a Canção reverberando em sua voz, agora uma síntese de todas as frequências: — E eu sou a Matriz. Aquela que unificou as oito vozes para trazer a verdade. Eu sou a forma mais pura do que não é, a coesão do Vazio. A anciã, uma mulher que havia perdido a filha no mar décadas antes e reprimido a dor com a negação, olhou para a lama salgada em suas mãos. A dor da perda era real, mas a dor da negação havia desaparecido. — E qual é a nossa verdade, a verdade da superfície? — Que o mar nunca perdoa a indiferença e a negação — disse Nyra. — Que tudo o que foi construído aqui foi feito com materiais roubados e memória apagada. Que o equilíbrio que vocês buscavam não era a paz, mas o silêncio que esconde a dor. O ciclo deve ser honrado, não combatido ou ignorado. Elian estendeu a mão, e o selo na mão de Nyra brilhou. — Sua verdade é o Retorno. O retorno à origem, à água, à humildade. O mar subirá. Não para punir, mas para curar a negação. Cada cidade, cada povo, deve fazer as pazes com o seu passado Aquático e aceitar sua fragilidade. As Consequências Imediatas e a Ascensão do Coro A Canção Inteira continuou a trabalhar. O oceano havia subido um metro em todo o mundo, uma maré permanente que apagou a fronteira entre terra e mar. Nas cidades costeiras, o medo deu lugar ao caos. Mas na cidade de Nyra e Elian, havia uma aceitação solene, pois a verdade era preferível à ilusão. No meio da multidão, Saphiel e Mharza emergiram da lama salgada, suas formas Aquáticas totalmente restauradas. Elas não eram as únicas. Inyr e as outras quatro Guardiãs que não haviam sido nomeadas se juntaram a elas, vestidas com algas e escamas de luz. — O que faremos com as Guardiãs? — perguntou Elian, lembrando-se da vigilância falha delas, mas reconhecendo seu novo papel. — Elas se curvaram à Canção Inteira — disse Nyra. — Elas são o novo coro, as Sete Vozes do Retorno. Elas apoiarão a Oitava Voz, garantindo que o Hino da Reversão e o Hino da Unidade sejam tocados em uníssono. Saphiel se aproximou, ajoelhando-se. — A Era da Vigilância acabou. Somos as Sete Vozes que falharam em impedir o Vazio, mas que agora o aceitamos. Estaremos contigo, Matriz. Nossa tarefa é estabilizar as águas que a Canção despertou na alma humana. Mharza, a vidente, olhou para Elian com olhos que viam o futuro e o passado simultaneamente. — O fardo de Maelyr ainda existe. Ele não se dissolveu; ele se fragmentou no medo e na negação dos humanos. Ele é o espírito da ilusão. — Maelyr está no caos — compreendeu Nyra. — A negação da humanidade é o seu trono, a sua última ponte. Ele tentará usar o medo deles para reconstruir o antigo desequilíbrio e sabotar o Retorno. Nossa missão agora é neutralizar essa fragmentação, cidade por cidade, alma por alma. O Novo Selo e a Jornada Universal Nyra olhou para Elian. A missão não havia acabado. O Trono do Silêncio estava completo, mas a batalha agora era na superfície, pela alma da humanidade, contra a influência persistente de Maelyr. — Precisamos de um novo pacto — disse Nyra. — Um pacto entre a Matriz e o Ponto Zero, que selará nossa união e nossa autoridade sobre a Canção, não apenas neste lugar, mas em todo o mundo. Elian assentiu. Ele tocou o selo na mão de Nyra, e a pedra se dividiu em duas metades: uma metade de escuridão total, Nyra, e uma de luz silenciosa, Elian. — O Trono de Silêncio está em nós — disse Elian, erguendo sua metade. — Governaremos juntos, ensinando o Retorno. Nossa ponte será a Espinha Viva, e nosso reino será o limiar entre os mundos. Viajaremos para onde o esquecimento foi mais profundo. Nyra pegou a outra metade. — Se a humanidade aceitar a dor, haverá esperança. Se eles voltarem à negação, o mar subirá para sempre. A nossa jornada começa agora. Temos de levar esta canção a todas as nações, a todas as cidades, onde o nome de Yhsa precisa ser ouvido para a purificação. Os dois se viraram para a cidade, cujos habitantes agora esperavam. O céu permanecia dividido, a cicatriz cósmica. A Espinha Viva pulsava atrás deles, o fardo visível. A Canção Inteira ecoava em cada coração humano. A nova Regência havia começado. A era de Yhsa não era de destruição, mas de verdade forçada. Nyra e Elian, o fim e o começo, estavam prontos para a nova missão: ser os Guardiões do Silêncio em um mundo que não queria parar de gritar. O mar não era mais um mistério, mas uma lei absoluta.
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