Capítulo 20 — O Que Dorme na Boca da Maré

883 Words
Era maior do que qualquer criatura que o mundo já nomeou. Não tinha forma fixa. Ora era uma espinha dorsal dobrada sobre si mesma, ora uma sombra com olhos múltiplos e asas que lembravam as velas de navios naufragados, uma manifestação da destruição absoluta e caótica. A coisa vinha com a maré descida, despertada pela Canção Inteira, liberta pela ponte, chamada pelo nome esquecido. Era a Primeira Negação, o Anti-Trono que havia sido banido para além do tempo. Nyra sentiu primeiro. O sal tremeu dentro dela, a frequência de Yhsa falhou. Elian caiu de joelhos. O Ponto Zero estava sendo negado, sua existência colocada em cheque. O mar, agora invertido e pendurado no céu, curvava-se em direção à criatura, como se reconhecesse um rei mais antigo que o próprio oceano, anterior à própria lei da água. As águas esverdearam. Os pássaros, que momentos antes haviam aceitado a Canção Inteira, fugiram, temendo o caos total. Os túneis líquidos que conectavam prédios e montanhas começaram a estilhaçar, não como vidro, mas como memória que se rompe, desfazendo a conexão que Nyra havia forjado. — Isso estava selado — disse Elian, com a voz rouca, tentando desesperadamente ativar o poder do Ponto Zero. — Estava… — Nyra tocou o selo dividido no próprio peito, sentindo a outra metade do antigo Livro Afogado. — …dentro de mim. Eu era o repositório final de Yhsa, a câmara de segurança para a última verdade. A Canção só me tornou Porta para liberá-lo. A criatura não avançava com pressa. Ela se aproximava com a inevitabilidade de quem retorna a casa, o destino que toda a existência tinha tentado evitar. E o mundo inteiro reconhecia isso. As crianças de sal, que haviam nascido da lama purificada, começaram a chorar. Suas lágrimas eram negras, o resíduo da negação que a criatura trazia de volta. As Guardiãs, distantes nas profundezas, recuaram pela primeira vez em milênios. Saphiel sussurrou para as outras, o terror superando a aceitação da Canção: — Ela trouxe aquilo que foi enterrado antes da primeira canção. O Primeiro Fim, a falha estrutural do universo. Nyra caminhou. Cada passo sobre a terra encharcada deixava flores marinhas. Mas agora, até as flores murchavam, suas cores sendo sugadas para dentro do abismo da criatura. Elian segurou a mão dela. O Ponto Zero e a Matriz do Vazio. — Vamos fugir. Ainda podemos selá-lo novamente, ou criar uma nova f***a. — Não há fuga — respondeu Nyra, com uma calma terrível. — Há apenas encontro. Eu sou a chave que o liberou. Meu corpo é o único que ele reconhecerá como lar. A criatura se ergueu, tomando a forma de uma boca feita de água, coral e véus de escuridão. Dela, saía não uma voz… mas vários sons ao mesmo tempo, uma dissonia cósmica: — Cânticos de naufrágios, a alegria da destruição. — Gritos de sacrifícios antigos, a dor de todos os que foram usados para manter o ciclo. — Risos de sereias mortas, a zombaria da vigilância. — E, por fim… o choro de uma deusa abandonada, Yhsa, lamentando seu destino de anulação. Ela falava a Nyra, no âmago de sua essência: “Você me abriu. Você me portou. Você me pertence. Volte para o Vazio que me contém.” Nyra caiu. As raízes do selo se espalharam pelo chão como vinhas vivas, tentando prender a si a última verdade. Elian tentou segurá-la, mas foi lançado para trás por uma força invisível, como se o mundo estivesse decidindo quem podia ficar ao lado dela. O Ponto Zero era essencial para o mundo, mas a Matriz era essencial para o Vazio. E então o céu rachou novamente. A ponte, a Espinha Viva, ficou inteira. Ligando mar, céu e terra. Uma espiral de luz e sombra. O novo Trono estava pronto. E Nyra, a Matriz do Vazio, o sacrifício final para a Canção Inteira… entrou na boca da criatura. Sem lutar. Sem gritar. Sem hesitar. Foi um ato de aceitação de seu destino mais profundo, a única maneira de controlar a Negação que ela havia libertado. Elian gritou seu nome, o som da sua voz quebrando o silêncio forçado. Mas não houve resposta. A criatura fechou-se, engolindo a luz azul de Nyra. E desapareceu. O mar, suspenso no céu, parou de cair. O céu escureceu, a f***a se fechando com a violência de uma ferida costurada às pressas. O selo caiu no chão, vazio, sem luz. E o mundo ficou em silêncio. Um silêncio que não era o da Coesão Zero, mas um silêncio de ausência. Na beira do oceano, Elian caiu de joelhos. Sozinho. O Ponto Zero sem a Matriz. O Começo sem o Fim. Ele havia sido o sacrifício para o ciclo de Maelyr, mas Nyra havia sido o sacrifício para o ciclo de Yhsa. O ar cheirava a ferro e sal queimado. E do horizonte, da f***a onde o mar de cima se unia ao mar de baixo… …uma nova canção começava a surgir. Mais grave. Mais antiga. Mais solitária. Uma canção feita de ponto zero sem matriz. Uma canção de busca. O destino de Elian era agora reescrever a Canção Inteira, encontrando a voz de Nyra no único lugar onde ela poderia estar: dentro do Primeiro Fim. O Guardião do Silêncio se tornara o Arauto da Busca. O Retorno estava adiado.
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