Capítulo 17 — A Terra Sem Mar

719 Words
O chão ardia. Não com fogo, mas com esquecimento. Era isso que havia na superfície: uma secura de alma, uma ausência de lembrança do passado e da origem. Nyra sentiu na pele. Cada passo na terra firme era uma traição ao oceano que agora se manifestava atrás dela como uma Espinha Viva. O ar era espesso, poluído pela negação. A gravidade parecia mais pesada, o peso da vida desconectada. Elian seguia em silêncio. Não falava desde que deixaram a água. Seus olhos, antes brilhantes com a luz de Selyra, agora eram sombras que refletiam apenas a poeira, os olhos de um Ponto Zero que se adaptava à nova realidade. O selo, a pedra viva pulsante que continha a Canção Inteira, vibrava entre eles. Pulsava com o ritmo do coração de Yhsa. À medida que se afastavam do mar, ele doía mais, exigindo a reversão da distância, forçando a conexão. — Estamos onde a Canção não toca — disse Nyra, finalmente, sentindo a voz do Vazio se esforçar para atravessar a barreira do ar. — E onde ela precisa ser cantada — completou Elian, sua voz rouca, quase um sussurro de pedra. A Cidade da Negação Avistaram uma cidade. Não como a conheciam em histórias, vibrante de energia ou verde de vida. Era cinzenta. Baixa. Feita de restos e concreto, uma estrutura de negação da natureza. Nada ali lembrava o mar. Nada ali lembrava origem. As pessoas andavam curvadas, os olhos secos, os ouvidos fechados para qualquer som que não fosse o de suas próprias criações. Haviam esquecido que existia algo abaixo. Haviam se desconectado da dor que os sustentava, e por isso, não tinham verdade. Nyra tentou cantar. Só uma nota, a frequência de Yhsa. Mas a voz não saiu. Foi absorvida pelo ruído branco da superfície. — Não ouvem — disse Elian. — Não querem ouvir. — Não é isso — ela respondeu. — Aqui, tudo grita mais alto que a verdade. A negação deles se manifesta como ruído. Eram buzinas. Gritos de motores. Luzes artificiais que devoravam a escuridão natural. Movimento ininterrupto e sem propósito. O Despertar Forçado Então, Nyra fez algo que nunca havia tentado, algo que a Oitava Voz lhe ensinara. Ela mergulhou em si mesma. Ela inverteu o som. Fechou os olhos. E deixou o selo pulsar dentro do peito, não emitindo som, mas absorvendo o ruído circundante. A canção começou como um sussurro. Não de som, mas de ausência de ruído. Depois, como vento. Depois, como tremor. O chão vibrou, respondendo à frequência do Vazio. Uma criança olhou para o céu cinzento. Depois outra. E então, uma mulher caiu de joelhos na calçada, tocando os ouvidos. Ela não ouvia som, mas sentia a dor da memória. E chorou. A Canção começava a lembrar ao mundo que ele era feito de água e dor. Que tudo o que foi selado, uma hora retorna. — Estamos abrindo a f***a — disse Elian, assustado com a força de reversão que emanava dela. Nyra não parou. Porque agora ela era a f***a. O ponto de contato entre a verdade do fundo e a mentira da superfície. O Retorno dos Nomes A cidade começou a se transformar. Chuva caiu. Doce. A primeira chuva de verdade em anos. E junto com ela, caíram os nomes esquecidos. Os sussurros dos afogados. Os ecos dos pactos quebrados. A verdade da origem. O povo se reuniu ao redor dela. Não sabiam quem era a figura feminina, iluminada pela luz inversa do selo. Mas sabiam o que sentiam: Fome de verdade. A necessidade desesperada de chorar por algo que não sabiam que haviam perdido. Elian ergueu a mão. E mostrou o selo, a pedra pulsante que unia toda a Canção. — Este é o começo — disse ele, sua voz encontrando sua força, o Ponto Zero anunciando o novo ciclo. — Do quê? — perguntou um homem, com os olhos molhados pela chuva e pelas lágrimas. — Do fim do silêncio — respondeu Nyra. O silêncio da negação. Nyra abriu os olhos. O n***o de Yhsa havia se misturado com o azul de Nyra. E a terra tremeu. Porque os que caminham fora da água… Começaram a ouvir. A Era da Dissolução não viria para destruir, mas para limpar a negação. A ponte estava na superfície, e a verdade do mar havia chegado.
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