Não era só Velha Âncora que se agitava.
Ao norte, nas ruínas afundadas da Fortaleza de Sal, peixes fugiam em massa, nadando em círculos caóticos e depois flutuando, mortos. O próprio oceano parecia esvaziá-los, preparando-se para a invasão que viria.
Em Taryss, a cidade submersa do povo das marés, as estátuas de guardiões milenares tremiam com a profanação. Rachaduras surgiam em conchas petrificadas.
Os anciões, de pele translúcida e olhos cegos, sussurravam o veredicto:
— A Herdeira profanou o ar com seu canto. Mas pior, ela está lembrando.
A Ponte do Esquecimento vai ruir, e os que ficaram serão libertados.
Nyra caminhava pela praia sob um céu que se recusava a clarear, cinza como os olhos dos mortos. Ela procurava por algo que só o sal guardava.
A areia grudava nos seus pés molhados. Por onde passava, crustáceos viravam de lado, e as ondas se recolhiam, hesitantes, temendo o toque de quem vinha do fundo.
Ela ouviu vozes no vento.
Sons que só quem vem do fundo pode entender, exigindo que ela voltasse, acusando-a de violar os juramentos:
— “Estás quebrando as Três Leis. O retorno será o preço.”
Eram três regras sagradas.
Pactos costurados com canto e morte.
As palavras vinham em sua mente como tatuagens sob a pele, revelando as exigências para seu povo e as consequências para a terra:
1. Não cantarás fora da água.
O canto é a alma. E quando solto em terra, envenena os que respiram ar e rasga o véu entre os mundos.
Não é um dom. É uma arma.
2. Não amarás os que pisam solo seco.
O amor enlaça. Mas o sangue dos dois mundos não se mistura; a conexão cria um vínculo proibido que enfraquece o Trono.
O que nasce dessa união nasce… quebrado. Um farol que atrai a escuridão dos abismos, aqueles que foram selados.
3. Nunca lembrarás.
A memória é uma âncora. E sereias não têm direito à âncora.
Lembrar é trair a profundidade, pois o passado é a chave para a guerra.
Nyra já havia violado a primeira lei com seu lamento na capela.
E estava muito perto de quebrar a segunda com a atração por Elian.
Mas era a terceira que a feria, pois o mar, irado, estava fazendo-a lembrar contra sua vontade.
Elian vasculhava os livros antigos na biblioteca abandonada atrás da capela.
A vila tinha esquecido ou preferia esquecer aquele lugar. Ele precisava entender quem era ela, e por que o toque dela lhe trazia visões proibidas.
Achou, por acaso, um volume grosso encapado com couro seco, que parecia grudar em seus dedos. O título estava em língua perdida, mas ele conseguia ler:
“Sobre os Cânticos Afogados e os Nascidos da Ponte”
Ali, em traços tortos, lia-se a distinção crucial:
"Existem três tipos de criaturas do mar:
As que foram moldadas pelo fundo, monstros.
As que foram geradas pelas ondas, filhos do sal.
E as que foram roubadas do mundo dos homens, rainhas sem coroa, cujo sangue é o único selo."
Elian tremeu.
Nyra… era uma dessas. Mas qual? A rainha sem coroa.
Nyra sentia o corpo mudar rapidamente.
Os pulmões ardiam menos. Sua carne estava ficando fria, e o pulso, lento. A pele ficava mais fina, quase transparente, e por baixo dela, as membranas dos ouvidos e a região do pescoço se reestruturavam. Seu sangue azul já não era apenas uma anomalia, era o despertar de sua verdadeira natureza, preparando-a para o fundo.
Certa noite, ela entrou no mar.
Não para nadar, mas para mergulhar até onde a luz morre, seguindo um ritual esquecido que seu sangue guiava.
Mares escuros. Peixes cegos. Vozes antigas.
Ela seguiu até uma f***a nas rochas onde uma flor de algas pulsava como um coração.
Ali, esperava alguém.
— Estás quebrando as leis e despertando a fúria — disse a figura.
Era uma mulher feita de pedra marinha, uma Guardiã, com a pele incrustada de cracas. A voz como mil gotas d’água.
— Estou lembrando — respondeu Nyra.
— Isso é traição ao acordo. O destino de teu povo dependia de teu esquecimento.
— Estou sangrando.
— Então teu tempo está acabando, Herdeira. A vida em terra está te matando.
A Guardiã tocou o rosto de Nyra com dedos de coral branco.
— O pacto de silêncio exigia a vida do quebra-regras. Ele ainda vive?
Nyra hesitou, sentindo a dor da memória que retornava.
— Sim.
— Então o pacto foi mesmo partido, e o preço será a guerra. Por causa dele, a maldição Maelyr foi libertada das profundezas. E agora… o trono vai sangrar.
Elian começou a ter sonhos mais vívidos.
Via Nyra com asas de água, cercada de multidões que cantavam para ela.
Via-se criança, sendo jogado no mar, mas salvo por uma menina.
Via o mar engolindo uma torre, e uma mulher chorando sangue dentro de uma concha gigante.
E o mesmo símbolo no final: a concha aberta, a cicatriz. O livro dizia que esse era o selo dos Nascidos da Ponte, aqueles que existiam para manter os abismos fechados.
Uma noite, sonhou com sua própria morte, acordando com sangue no nariz e uma pérola n***a embaixo do travesseiro. Não era um presente, mas um pagamento; o mar estava cobrando por sua interferência no destino de Nyra.
O mar começou a subir, ignorando as barreiras de areia.
Os mais velhos da vila espalhavam o temor:
Toda vez que a herdeira canta, o oceano exige um corpo em troca, e a dívida recai sobre quem carrega seu selo.
Na décima segunda noite, Nyra subiu ao rochedo onde antes ficava o farol.
Levava consigo um colar, envolto em algas, com uma pedra n***a pulsante que ressoava com a cicatriz de Elian.
Ela o segurou contra o peito. A dor veio como uma onda:
Ela, uma criança, sendo oferecida como a última de sua linhagem para selar o portal.
Homens de Velha Âncora a arrastando para o mar, não para a morte, mas para o exílio.
Uma ponte de sal quebrando sob o peso da traição.
E Elian, um menino. Seu amigo. Seu Guardião.
Ele tentando salvá-la, mas caindo em sua defesa.
Elian… morrendo.
Mas ele não morreu. Os Anciões o encontraram e lhe deram uma vida vazia, trocando sua memória pelo selo da cicatriz no peito. Ele esqueceu o preço que pagou para que ela vivesse.
Naquela madrugada, Nyra voltou ao cais.
Elian a esperava, sem perguntas.
Apenas entregou a ela o livro, a verdade silenciosa.
— És uma rainha sem trono. E eu sou o selo que te mantém aqui — disse ele.
Ela assentiu.
— O mar quer tua volta. E tua morte. E a minha, para completar o sacrifício.
Nyra tocou a mão dele.
— Eu não volto.
— Por quê?
Ela olhou o mar, refletindo seus olhos negros como vácuo.
— Porque se eu voltar… eu levo o mundo comigo. O selo se quebra.
Debaixo da terra, abaixo do mar, os outros começaram a acordar.
Filhos do sal.
Guardas da Ponte.
E monstros de Maelyr que nunca deveriam sair.
A ponte entre os dois mundos rachava.
Porque a canção de Nyra estava apenas começando.
E o amor… o amor era o maior erro, a falha final do selo.