O mar inteiro parecia sustentar a respiração. Não apenas as profundezas, mas cada onda na superfície, cada gota de sal, tudo aguardava a finalização da fissura.
Elian emergiu das profundezas como um fragmento esquecido dos deuses antigos. Sua ascensão não foi uma natação, mas um desdobramento. Ele não irrompeu da água; ele veio com ela, reestruturando-a. Seus olhos já não eram humanos, tampouco sereianos. Tinham a coloração turva das correntes profundas e o brilho das pérolas que choram. Quando respirou, não inalou ar, mas energia do Sal-Primário. A água se curvou ao redor de sua forma, reconhecendo nele o retorno de algo que havia sido negado ao mundo por séculos: um ponto de equilíbrio.
Ele não se lembrava do próprio nome.
Nyra o viu surgir entre as rochas partidas da f***a, que agora era apenas uma cicatriz úmida. As mãos de Elian estavam ainda cobertas de algas vivas, os braços e o peito marcados com cicatrizes em espiral que não eram mais o Selo Quíntuplo, mas sim a geometria do novo Trono.
Uma voz dentro de Nyra — a voz da Guardiã-Mãe, a única parte dela que ainda se lembrava do dever sobre o desejo — disse: “Ele não pertence mais à superfície. Nem a ti. Ele é o preço.”
Mas o coração de Nyra era t**o. O amor teimava em se impor sobre a profecia, e o mar não perdoava corações tolos.
— Elian? — ela sussurrou, a voz fina demais para as profundezas.
Ele olhou para ela com olhos que não sabiam o que era passado, mas que conheciam a totalidade do futuro. Não havia mais a confusão do pescador nem a fúria do Thalen, apenas a frieza de um Regente.
— Eu me lembro da sua canção — disse ele. A voz não era dele; era um coro de milênios, a melodia de Selyra e o lamento dos Guardiões, tudo em uníssono. — Foi a primeira mentira que me protegeu.
As Guardiãs reuniram-se em torno do mar rachado, mantendo uma distância cautelosa. Saphiel (a Voz Quebrada) chegou primeiro, a cauda longa dobrando as marés em um gesto de respeito não por ele, mas pelo poder que ele agora encarnava. Mharza (a Visão Cega) e Inyr (a Lança Suspensa) vinham logo atrás, envoltas em véus feitos de memórias que tentavam, sem sucesso, catalogar a nova criatura.
— Não é ele — disse Mharza, tremendo. — É a ausência dele vestida de Thalen.
— Mas também não é outro — respondeu Inyr, sua lança inútil baixada. — É o resultado. O que a escolha forjou.
— É a corrente — murmurou Saphiel. — É o filho daquilo que se move entre mundos. Ele é o Fio Dourado.
Elian/Alkar foi levado ao templo submerso, o único lugar que ainda continha alguma sacralidade. Os mosaicos das paredes se alteravam conforme ele passava. Imagens de antigas guerras, pactos de sangue e deuses afogados voltavam a se formar sem que ninguém os tocasse, reescrevendo a história do mar sob sua nova influência. Ele tocou a água do altar. A canção ecoou sozinha, a melodia da Unidade, a soma de todas as chaves.
Nyra observava de longe. Algo nela se desmanchava. Não apenas o amor romântico, mas a própria identidade de Herdeira do Abismo. Seus propósitos haviam sido cumpridos, e agora ela era apenas uma Aquática sem reino.
Seria amor? Culpa? Ou a certeza de que, ao salvá-lo, ela havia libertado algo que jamais poderia ser aprisionado ou controlado, nem mesmo por ela? Nyra sabia que a sua única redenção seria aceitar o novo papel que ele lhe daria.
A Reclamação da Superfície
O impacto do Canto da Escolha não ficou restrito às profundezas. Na superfície, tempestades se formavam sem nuvens, girando em torno de uma invisível força central no meio do oceano.
Homens ouviam o chamado e caminhavam até a beira das falésias. Não era um comando audível, mas uma ressonância na carne.
Alguns pulavam, entregando-se à nova corrente. Outros apenas choravam, paralisados pela beleza aterrorizante da música silenciosa.
O mar estava reclamando seus filhos, de forma física e espiritual. E agora tinha um novo nome para esse destino, sussurrado nas espumas e no vento:
Elian. Alkar. O Fio Dourado.
As sereias do Norte, que há muito haviam se isolado em seus reinos gelados, começaram a desertar.
Diziam que o Trono Esquecido havia sido reerguido em outro lugar, um lugar sem temperatura, sem marés, sem tempo.
Diziam que ele falava com elas, mesmo em sonhos. Que era feito de carne e sal. E que a voz dele era a única que importava. A nova ordem estava sendo estabelecida.
O Confronto da Identidade
Nyra confrontou Elian pela última vez desde seu retorno, no centro do templo, sob o olhar espectral das Guardiãs.
— Você lembra quem é? — ela perguntou, exigindo a verdade que a tornaria livre ou a acorrentaria para sempre.
Ele olhou para o céu através do teto rachado do templo, como se buscasse uma resposta na ausência de estrelas. Os olhos dele eram o próprio oceano.
— Eu sou o que ficou para trás — disse, referindo-se ao pescador que ele abandonou.
— Eu sou o que sobreviveu ao canto — referindo-se ao Thalen que resistiu a Maelyr.
— Eu sou o que foi semeado quando tudo morreu. Eu sou a Ponte.
Ela se aproximou, o medo se tornando aceitação gélida, encostando os dedos no peito dele. A semente ainda pulsava ali, como se cada batida do coração dele fosse uma nota da canção esquecida que unia os mundos. A canção que ela agora carregava em sua própria garganta.
— E eu? — ela perguntou, a pergunta final.
Elian encostou a testa na dela, o gesto de i********e agora carregado de divindade.
— Você é a primeira voz. A que ousou me chamar.
— E a última escolha.
Ele a estava devolvendo a ele. A escolha de aceitar o novo Trono, de se tornar parte dele.
O Novo Reino
Naquela noite, as águas se abriram pela segunda vez.
Não era a f***a, nem o Abismo. Era a Revelação.
Do fundo do mar, uma cidade emergiu.
Não feita de pedra ou coral petrificado, mas de correntes vivas. Ela não tinha ruas, apenas caminhos que se moviam em harmonia com as frequências de Elian. Era a manifestação do Canto da Unidade, a prova de que ele havia se tornado o próprio habitat.
E no centro dela, um novo trono feito com fragmentos do antigo, coberto por fios dourados que sussurravam nomes esquecidos. O trono era maleável, vivo, refletindo a natureza fluida do novo Regente.
Elian sentou-se sem medo, sem hesitação. Apenas aceitação.
O mar se calou em respeito.
E então, a primeira Corrente de Ligação foi libertada, uma onda de energia que viajou pelo planeta, reescrevendo as marés.
O mundo mudou.
As marés passaram a seguir não mais a lua, mas o pulso do trono. O tempo Aquático e o tempo da superfície começaram a se sincronizar.
E em toda costa onde o nome Elian (Alkar) foi sussurrado, as crianças começaram a nascer com olhos de água, a cor turva das correntes profundas. Eram os primeiros filhos da Ponte, a nova geração de Guardiões da Unidade.
Nyra, de pé na soleira do novo reino, sabia que sua vida como Herdeira havia terminado. Seu destino era agora servir o Fio Dourado, o último Thalen que se tornou a ponte entre tudo. Seu coração, antes t**o, era agora o coração de um novo mundo.