O Estagiário

2004 Words
            Quando ela chegou naquele dia, Marcelo não conseguia dizer se estava feliz ou triste por vê-la: ela calçava all stars surrados, shorts jeans e uma camisa xadrez que parecia ser de Pedro, sobre algo que certamente era apenas uma lingerie, os cabelos caiam de um coque m*l feito, a maquiagem borrada e um olhar cansado de quem dirigiu por mais de seis horas sem parar, na noite e na chuva. - Bom dia – ela anunciou desanimada jogando a mochila no chão do apartamento, bem ao lado da porta. - Bom dia – ele a encarou – que tal um banho? Eu faço um café? Trouxe croissant... - Certo – ela suspirou derrotada e foi em direção à suíte.              O apartamento era realmente pequeno: uma suíte, sala, cozinha, lavabo e área de serviço, no quarto andar, sem elevador. Marianna havia comprado o imóvel quando iniciou o curso de MBA em paralelo ao seu projeto de Doutorado, e ali, naquela sala, havia criado um império e adiado o Doutorado: havia criado uma empresa de administração de projetos, voltada para o ramo da construção civil, onde formava equipes de trabalho, aproximava investidores de construtoras, engenheiros de proprietários de áreas, incorporadoras de fornecedores e ainda, prestava consultoria e suporte aos seus parceiros.             Marcelo, seu estagiário, havia sido contratado no ano anterior: quase formado em Administração: uma vaga para estágio, um processo com mais de dezesseis candidatos, onde Marianna não havia sequer pegado os currículos, depois das avaliações do departamento de recursos humanos, cinco finalistas para uma entrevista com a CEO da Future Gestão de Investimentos e Empreendimentos Imobiliários: Marianna Ferrachinni.             O setor da construção era selvagem, e era o sonho de Marcelo que ainda estudava arquitetura, então quando o amigo indicou a vaga de estágio com tantos benefícios, ele não pensou duas vezes, apenas se inscreveu, sem nem pensar no que aconteceria, mas no dia da entrevista, sentiu o estômago embrulhar, a mulher a sua frente era intimidadora. - Bom dia – ela sorriu quando ele entrou na sala: vestia saia reta de cintura bem marcada, sapatos de salto muito alto, camisa vermelho escarlate, combinando com o batom e um terninho preto. Os óculos emolduravam os olhos azuis brilhantes e os cabelos loiros impecavelmente escovados – sente-se, por favor. - Bom dia – foi tudo o que ele conseguiu dizer enquanto a encarava, sentindo as mãos suarem e o rosto ruborizar. - Marcelo – ela suspirou – primeiramente, quero deixar claro que teu currículo te trouxe até aqui, e apenas ele pode te levar além ou encerrar tua caminhada, nada além dele. - Ótimo – ele sorriu, tentou parecer confiante, mas diante dela, estava totalmente desarmado.             A entrevista levou pouco mais de quinze minutos, onde ele contou suas experiências anteriores – e a temporada inútil na praia – e foi informado, ao sair, que seria contatado ainda naquela tarde, como de fato ocorreu e ele fora contratado para a vaga de estágio. Então, era quase um ano trabalhando com Marianna três dias por semana – nos outros, ela estava em home office e ele aprendera muita coisa sobre ela, e infelizmente, uma delas, era que Marianna tinha dupla personalidade: a primeira, era a mulher da entrevista, um iceberg que comandava a Future com punho de ferro, e a outra, era a garota deprimida e frágil do all star surrado que acabara de chegar no apartamento.             Marcelo era, sem a menor dúvida, o mais dedicado profissional da Future: muito eficiente, comprometido com a empresa e com os resultados e nos últimos meses, o muro de salvação de Marianna: ele resolvia tudo na capital, inclusive fora do escritório: contratava a faxineira para o apartamento, mandava a caminhonete para a revisão, e quando ela chegava às pressas para uma reunião, a esperava com café da manhã no apartamento para revisar os tópicos. - Agora sim – ela suspirou quando apareceu novamente na sala: calças de flanela, chinelos e camiseta preta – sou outra pessoa. - Quase uma pessoa – ele riu enquanto a abraçou – café da manhã, você precisa comer. - Ótimo – ela riu e foi para a mesa, acompanhada do rapaz que já vestia terno e gravata. - E então? – ele a encarou – Cinco minutos de trégua do trabalho pra você me contar o que está acontecendo? - Tá tudo bem – ela falou antes de enfiar um croissant na boca. - Marianna – ele a encarou – é sério, eu realmente estou ficando muito preocupado. - Marcelo – ela respondeu – eu vou ficar legal, eu prometo, só preciso de um tempo. - Tempo? – ele riu. - Tempo para assimilar isso tudo, só preciso de tempo – ela suspirou, visivelmente ficando nervosa – não quero falar sobre isso. - Precisa falar sobre isso – ele a pressionou – de verdade, pro teu bem, todo mundo está preocupado, Marianna e sinceramente, não sabem como ajudar. - O Pedro tá me traindo – ela disse de repente – faz uns cinco anos, eu acredito – ela tinha os olhos marejados – não sei, acho que isso... Cinco anos. Desde a minha formatura, provavelmente, ou antes – ela mexia as mãos compulsivamente – e eu acreditei que ele ia parar, que ele me amava – ela parou – mas não. - Tá brincando? – ele conhecia Pedro, parecia um bom homem, na casa dos quarenta e cinco, porte atlético, sorriso fácil, adorava as filhas, e não parecia ser o cara que tivesse aquele tipo de atitude. - Não, não estou – ela suspirou – descobri que ele continuava com ela há dois meses, só no fim da semana passada consegui falar sobre isso, a amante dele está grávida, inclusive – ela suspirou. - Eu sinto muito – ele deu a volta na mesa a abraçou – sinto muito, você não merecia, ele parecia gostar tanto de você... - Acho que nunca vou saber se alguma coisa foi real – ela suspirou – injustiças do mundo à parte, preciso focar no que realmente importa. - Não entendi – Marcelo a encarava. - O mundo não para porque eu tenho uma guampa a mais ou a menos – ela sorriu de repente – preciso me manter focada, Marcelo, ainda tenho uma empresa para tocar... - Compreendo, mas isso te faz m*l – ele a encarou muito sério. - Eu sei, mas infelizmente, minha empresa não para – ela sorriu e deu mais um longo gole em seu café – o que é que o Vicente quer desta vez? - Sabe como ele é – Marcelo sorriu – alguém o contatou para um “grande desafio” – o rapaz a encarou – isso pode ser algo bom ou r**m, sabe como seu sócio é...             E Marianna sabia sim: em meio ao seu Doutorado e seu MBA em gestão estratégica, conhecera o seu sócio: um boêmio, galanteador, mulherengo incorrigível, porém, um engenheiro muitíssimo competente, em busca de novos ares: aos cinquenta, Vicente voltou a estudar, desta vez, arquitetura, e deu aporte de 45% do capital da empresa, além de cuidar da parte mais comercial – devido à anos trabalhando na Capital e todas as suas relações. Era um gentlemen, sempre disposto a ajudar e tornar a vida dela mais fácil, principalmente considerando que a empresa, que tinha quatro anos no mercado, funcionava na capital, paralelamente à vida de Marianna na fronteira, à 500 km e com duas filhas, não tinha o que reclamar dele, acreditava não existir no mundo um sócio melhor que ele. - Enfim – ela sorriu encarando o apartamento pequeno: a empresa nascera ali, naquela mesa de centro em meio à cervejas importadas, cigarros e rock and roll antigo: era assim que ela e Vicente trabalhavam no início e em todas as sextas-feiras possíveis: a sala de reuniões da Future era tomada pelo mesmo clima da sala do apartamento e as reuniões iam longe, e os dois decidiam pontos estratégicos com Marianna sem os sapatos e Vicente com a camisa remangada e sem gravata – ele só me mandou gráficos e relatórios, oportunidades de ganho e reconhecimento. - Sim, ele encaminhou cópia para mim também, mas não faço ideia do que ele está aprontando. - Tudo bem – ela encarou Marcelo – e os relatórios da Master? O Ferreira me ligou ontem no fim do dia, falou que tinham passado, mas não recebi nada. - A Lara da contabilidade fez mais duas horas ontem, ficou de fazer os resumos. - Certo, e sabe do bebê dela? - Ah, sim, está bem, ela passou no escritório para buscar algumas coisas e levou ele, foi uma festa, as meninas estavam empolgadíssimas – ele riu – o guri é o xerox do Antônio! - Eu imagino – ela riu mas logo ficou séria – a Lara é uma das nossas contadoras mais competentes e eu fico muito feliz de contar com ela. - O home office ficou bom para os dois lados, né – Marcelo dizia – ela não queria parar de trabalhar, enfim, provavelmente estará no seu email em breve. - Ótimo – ela sorriu – reunião com o RH? - Vicente pediu para que eu transferisse para amanhã, e até é melhor, a Dani está no meio de um processo seletivo para a Master e a Lorena tem que acabar com os acordos demissionários da Montreal, ontem mesmo chegaram mais sete pastas. - Quando o pessoal vier fechar os acordos, tem que pedir que ela fique com os currículos para a gente avaliar depois, tem um cara da  Montreal, acho que é Pedro Henrique, é um mestre de obras, o Vicente adora ele, quem sabe realocamos ele. - Anotado, assim que eu chegar no escritório eu já envio um email para ela solicitando. - Perfeito – ela suspirou – são sete e meia, acho que eu preciso me vestir como gente – ela levantou-se rapidamente – preciso ainda de outra coisa, Marcelo. - O que você precisa? - Sem comentários sobre o Pedro, com ninguém. - Tudo bem, mas voltamos a conversar sobre isso, certo? - Sim, voltamos – ela suspirou antes de sair caminhando com uma caneca de café na mão.             O guarda roupas era pequeno e muito funcional: roupas básicas mesclavam-se a itens mais extravagantes e acessórios da moda, mas a grande maioria, blazers, calças sociais, saias com cortes bem feitos, camisas sob medida, alguns vestidos de modelos clássicos e pashiminas, um item venerado por ela. O pequeno apartamento da rua Santana tinha uma pequena coleção: cores coringa. Ela escolheu a dedo uma saia lápis na altura dos joelhos, camisa vermelho escarlate e blazer preto, vestiu-se e suspirou: gostava da imagem no espelho. Calçou Louboutin clássicos e prendeu os cabelos em um coque, a maquiagem era simples: olhos esfumaçados e batom escarlate, que combinava com as unhas que ela fazia questão de manter sempre bem pintadas.             Marcelo aprovou o look: sabia que as reuniões de negócios eram extremamente importantes para Marianna, ela gostava de passar uma imagem de segurança e firmeza, e com aquela roupa, era exatamente o que passava. Ele ainda a ajudou com alguns papéis e foram juntos para o escritório: Marianna pediu que ele dirigisse a Dodge Ram preta, enquanto ela se concentrava. A chuva caia fina e fria, tomando Porto Alegre por uma névoa acinzentada e deixando o dia pesado, para quem não está bem, é um daqueles dias difíceis, e para Marianna, ele estava apenas começando. - Bom dia – os saltos altíssimos batendo nos porcelanatos do prédio da future faziam uma melodia interessante e compassada – Marianna caminhava sorridente carregando a bolsa, cumprimentando à todos enquanto um apressado Marcelo vinha em seu encalço com o notebook e as pastas.             Marianna foi diretamente para a sua sala: todas as divisórias eram de vidro, ela tinha ampla visão do que acontecia na empresa, assim como todos sabiam que ela estava bem ali, acessível à qualquer um dos colaboradores da empresa. Ela observou Marcelo indo diretamente à sala de reuniões e conversando com Isabel, a secretária que preparava tudo para a reunião. 
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