2. Julia

1354 Words
Nunca fui de fazer amizades rápidas. Sempre precisei de tempo pra confiar, pra baixar a guarda, pra permitir que alguém realmente entrasse na minha vida. Talvez por isso tenha me espantado tanto a forma como a Vera foi se enfiando no meu cotidiano, sem pedir licença, sem fazer esforço, como quem já sabe onde é o próprio lugar. Ela entrou devagar, com naturalidade, e de repente eu percebi que já não tinha escolha: ela estava ali, presente, necessária. Ela aparecia todo dia no núcleo, às sete e meia da manhã, religiosamente, como se fosse um ritual que sustentava o resto do dia. Chegava com um copo de café de plástico na mão, sempre o mesmo, com os dizeres já gastos de tanto uso: “SUS É RESISTÊNCIA”. Distribuía broncas em três ou quatro voluntários que tinham deixado alguma tarefa pela metade, ajeitava as coisas do jeito dela, e depois sentava na porta do prédio pra observar o movimento como se fosse uma sentinela, alguém que vigia não só o espaço, mas também a vida que passa diante dos olhos. Era uma mulher que carregava o peso dos outros sem deixar os ombros caírem, como quem já aprendeu que ser forte não é escolha, mas sobrevivência. E por mais que me tratasse sempre com aquela firmeza típica de quem já viu o mundo virar do avesso, havia cuidado nos gestos. Um cuidado seco, despretensioso, que não se anunciava em palavras doces nem em demonstrações escancaradas, mas que estava sempre ali, constante, como um gesto que se entrega em silêncio. — Tu ainda dorme m*l? — ela perguntou uma vez, me olhando por cima dos óculos enquanto eu tentava disfarçar a cara amassada. — Como é que cê sabe? — devolvi, tentando esconder o cansaço. — Tua olheira tá gritando daqui da sala. — respondeu, seca, mas com uma ponta de humor. — Toma esse chá aqui. É de boldo com camomila. Parece esgoto, mas ajuda. Aceitei, mesmo com a sensação de que ia vomitar. Ela ficou me observando com um misto de deboche e ternura, como quem já viu muitas Júlias iguais a mim passarem pela vida. E no olhar dela havia uma certeza silenciosa: ela sabia exatamente o que vinha depois da queda. — E o Rodrigo? Sumiu? — soltou num outro dia, sem rodeio, enquanto trabalhávamos lado a lado na triagem dos papéis. Demorei uns segundos pra entender que ela lembrava da minha confissão, semanas antes, quando num dia r**m demais eu tinha despejado minha vida inteira na mesa do projeto. — Sumiu. Tá vivendo a vida com a novinha fitness dele. — Vera soltou um riso baixo, quase um resmungo. — Homem adora fingir que é maduro, mas quando precisa escolher corre pro que brilha mais. Igual moleque em feira. — E a gente sempre acha que é culpa nossa. — Porque ensinaram a gente a aceitar menos. — Ela disse aquilo como quem já aceitou demais. Com o tempo, passamos a dividir não só as tarefas, mas também os silêncios. E era curioso: a Vera não precisava falar muito pra me fazer sentir menos sozinha. Bastava o jeito dela estar ali, firme, presente, até quando não dizia nada. Isso me confortava mais do que qualquer abraço piegas de gente que desaparece no dia seguinte. Comecei a ficar depois do expediente, a ajudar em tarefas que não eram minhas, a me interessar pelas histórias das pessoas. E Vera percebia, mas nunca elogiava. — Tá começando a criar raiz — disse um dia, me entregando um saco de lixo pra jogar na esquina. — Isso é bom. Mas cuidado: quanto mais cria, mais dói arrancar. Não perguntei se ela falava de mim ou dela. Fomos ficando amigas de um jeito estranho, sem confissões profundas, sem apelidos carinhosos, mas com uma confiança silenciosa, da mais rara. A certa altura, ela começou a me convidar pra jantar na casa dela às sextas-feiras, quando o núcleo fechava. Subíamos juntas a viela estreita, ela reclamando das dores nas costas, xingando a prefeitura por mais uma promessa não cumprida. A casa da Vera era pequena, mas organizada até o osso. Cheia de plantas na janela, com fotos antigas espalhadas pelas paredes. Nunca vi nenhuma foto do filho. — Ele não gosta de tirar foto — ela explicou um dia, pegando uma garrafa de água da geladeira. — E também não aparece há umas três semanas. Então, se aparecer, já é lucro. — Vocês brigaram? — A gente vive brigado. É o normal. — Ela riu, seca. — Mas é meu sangue. Se cair morto na minha porta, eu carrego nas costas até o hospital. Fiquei em silêncio, porque conhecia bem esse tipo de amor duro. Minha mãe foi assim: nunca disse “eu te amo”, mas dormia sentada do meu lado quando eu tinha febre. Vera era desse tipo. Numa sexta-feira chuvosa, fiquei presa na casa dela. A enxurrada descia pela ladeira feito rio, e tentar descer seria pedir pra quebrar o pescoço. Vera fez macarrão com sardinha, me emprestou uma calça de moletom larga demais e decretou: — Vai dormir aqui hoje. Não vou te deixar descer com o chão parecendo sabão. Aceitei. Depois do jantar, nos sentamos na sala, com a TV ligada no volume baixo. Vera, com a panturrilha enfaixada por causa de uma torção antiga, abriu uma garrafa de vinho barato e me ofereceu. — Quer um pouco? — Quero. Bebemos devagar, conversamos sobre tudo e nada. Falamos dos absurdos do mundo, de uma menina do projeto que tinha escrito uma carta linda pro pai preso, falamos do que cansa e do que salva. — Você já pensou em ir embora daqui? — perguntei, de repente. Ela me olhou, como se decidisse se respondia com a verdade ou com uma fuga. — Já. Muitas vezes. — E por que ficou? Ela deu de ombros, virou mais um gole. — Porque mesmo quando tudo parece um inferno, ainda tem gente aqui que vale a pena. — Depois, respirou fundo. — E porque alguém precisa ficar. Nem todo mundo pode fugir. Fiquei em silêncio, digerindo cada palavra. — E você? Vai embora quando? — ela devolveu a pergunta. — Não sei. Antes eu queria sumir. Agora… não sei se aguento perder o que construí aqui. Por mais pequeno que seja. Ela me olhou com uma expressão rara: um orgulho discreto, tão sutil que, nela, valia mais que qualquer elogio. No domingo seguinte, estávamos na sede do projeto quando um moleque entrou correndo, esbaforido: — Dona Vera! Teu filho tá lá no bar do Rato! Vera congelou por dois segundos. Depois, levantou-se de uma vez, pegou a bolsa e disse, apressada: — Continua o que cê tá fazendo. Saiu como quem corre pra apagar incêndio. Fiquei ali, tentando parecer ocupada, mas o coração disparava. O filho. Até então, ele não passava de um fantasma nas conversas dela, um vulto ausente. E agora, de repente, estava a poucos metros dali. Minha mente girava: seria um problema? Um caso perdido? Um perigo? Ou só um filho tentando ser homem? Vera voltou uma hora depois, com a cara fechada e o passo pesado, como se cada batida do pé no chão fosse pra esmagar a raiva. — Deu tudo certo? — perguntei, tentando soar casual. — Ele tá vivo, o que já é milagre. — Vocês brigaram? — A gente respira brigando. — respondeu, seca. — Mas é o jeito dele. Do meu jeito também, se for ver. O sangue não n**a. Ela largou a bolsa, suspirou fundo, e completou: — Se um dia você cruzar com ele por aí, nem precisa cumprimentar. Ele é igual a mim: só gosta de gente que encara de frente. Passei o resto do dia com essa frase martelando na cabeça: “Se um dia você cruzar com ele…” Na noite seguinte, antes de dormir, andei até a janela do meu quarto.. A lua cheia iluminava o morro e o barulho habitual parecia distante. Pensei na vida que tinha deixado pra trás: o jornal, o apartamento com Rodrigo, os cafés gelados de escritório. Não sentia saudade. Era só… libertador
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