Eu já tinha decidido que ia passar a sexta-feira à noite trancada no meu quarto, deitada na cama com um livro aberto sobre o peito, fingindo que conseguia prestar atenção nas palavras que não faziam sentido nenhum. Era esse o plano: silêncio, recolhimento, um mundo pequeno e fechado. Mas claro que a vida tem um talento especial pra empurrar a gente justamente pro lugar de onde a gente tenta fugir.
— Júlia! — a voz da Marcele atravessou a porta do núcleo como um raio, alta e vibrante. — Bora pro samba hoje, mulher!
Levantei os olhos devagar, como quem acabou de ouvir uma ofensa pessoal.
— O quê?
— Samba, mulher! Lá no terreiro da tia Nena. Sexta é dia, cê não sabia?
Balancei a cabeça, tentando me livrar com elegância, sem parecer antipática.
— Acho que vou ficar em casa hoje. Tô cansada.
— Cansada de quê? De viver? — ela riu, apoiando a mão suja de tinta na parede. — Para com isso, Júlia. Tu fica se escondendo demais. Vamos se divertir um pouco, só um pouquinho, juro. Eu te deixo em casa depois.
Suspirei.
Marcele era uma das voluntárias mais novas do projeto. Vinte e poucos anos, riso largo, tatuagem m*l feita no ombro, energia infinita. Gostava de me chamar de “tia Júlia” só pra me irritar, e conseguia, com essa alegria insistente, me arrastar pra lugares de onde eu sempre jurava que não ia sair.
— Tô sem roupa de samba. — inventei, na tentativa de escapar.
— Então samba pelada. — ela rebateu sem piscar, debochada, malandra. — Vambora. A Vera vai também, viu?
— A Vera?
— Claro! Toda sexta ela aparece lá pra sambar duas músicas e beber meia latinha. É ritual já.
E foi isso que me desmontou. Se até Vera ia… quem era eu pra recusar?
Duas horas depois, lá estava eu. De calça jeans, blusa preta básica, um batom mais escuro do que costumo usar. Cabelo solto, mas domado. Corpo tenso, passos inseguros. A rua estreita onde o samba acontecia estava tomada por cadeiras plásticas, mesas de madeira, fumaça de churrasco, cheiro de cerveja barata e risos altos que ecoavam sem pudor.
A batucada já comia solta, o pandeiro estalando no compasso do coração do morro.
— Se entrega, Júlia! — Marcele gritou no meu ouvido, tentando me arrastar pro centro. — Se você ficar com essa cara de bibliotecária cansada, ninguém vai te dar nem água!
Ri sem vontade, mas ri.
Acabei me sentando perto da parede, como quem procura um escudo. Tentava encontrar segurança naquela bagunça bonita. Crianças corriam descalças entre as mesas, adolescentes dançavam com desenvoltura, homens equilibravam latas de cerveja no joelho enquanto batiam palma, mulheres exibiam brilhos no corpo inteiro. A energia era vibrante, pulsava como se fosse outra frequência. E eu, ali, me sentia fora do tom.
Foi então que a vi.
Vera.
De calça branca, camisa estampada, um lenço preso no cabelo, sambando como se não houvesse mais ninguém no terreiro. O sorriso dela me pegou desprevenida: largo, leve, quase juvenil. Nunca tinha visto Vera daquele jeito. E foi impossível não ser tocada por aquilo.
Ela me viu também. Acenou, simples, como quem diz: “relaxa, você pertence”.
Levantei a mão, meio sem graça, pedindo licença pra existir naquele espaço.
— Tá linda, hein? — ela disse quando se aproximou, suada, o rosto iluminado por uma felicidade rara. — Nem parece a mulher que chegou aqui de salto e cara de nojo.
— É o samba que muda a gente? — perguntei, meio rindo.
— É a vida. Mas o samba ajuda.
Nos sentamos lado a lado, dividindo uma cerveja quente e algumas histórias jogadas fora. Vera ria alto, fazia piada com os músicos, provocava uma senhora que parecia conhecer há anos, como se aquele fosse o quintal da casa dela.
E foi nesse cenário que meus olhos foram puxados pra outro ponto.
Não sei se foi o movimento, o som que pareceu baixar de repente, ou o silêncio que nasceu em mim quando ele apareceu. Só sei que o vi.
Lá no canto da roda, encostado numa mureta, uma latinha na mão, olhar firme, boné virado pra trás, o corpo relaxado mas a presença dominando o espaço. Tinha um ar de quem sabia que não devia estar ali ou, pior, de quem sabia que todos ali o olhavam com respeito ou com receio.
O mundo parou.
Era ele.
O rapaz da moto.
O olhar cortante. A presença que tinha me arrepiado dias antes, quando passou por mim na ladeira. O vulto que eu não conseguia esquecer.
Só que agora eu via de perto. Mais de perto.
E era pior.
Porque o impacto era físico.
Vera não percebeu meu silêncio súbito, continuava rindo e conversando. Marcele dançava com um rapaz alto de chinelo e dreads, leve como se fosse vento. E eu ali, imóvel, encarando o desconhecido que, sem pressa, virou o rosto… e me viu.
Foi um segundo. Dois.
Não precisou mais.
Os olhos dele pousaram em mim com uma calma ameaçadora. Não era um flerte comum. Não era “te achei bonita”. Era o olhar de quem te mede, te lê, te marca.
Virei o rosto rápido, engolindo seco. O coração batia fora do ritmo. Peguei a cerveja de novo, já morna, e dei um gole só pra fingir que era outra coisa que me deixava assim. Mas não era.
— Quem é aquele? — perguntei, num tom quase inaudível, apontando com o queixo, como se fosse só mais um curioso qualquer.
Vera me olhou de lado, mas não seguiu meu olhar.
— Qual?
— O… o do boné preto. Encostado ali, perto da caixinha de som.
Ela ficou séria por meio segundo.
— Ah. Aquele.
— Conhece?
Houve uma hesitação. Pequena, mas suficiente pra me arrepiar.
— Conheço.
— Quem é?
Ela desviou os olhos, tomou um gole de cerveja e disse com simplicidade estudada:
— Gente da comunidade.
E só. Não aprofundou.
E eu, por alguma razão que não soube explicar, também não insisti. Mas minha cabeça… minha cabeça era um caos.
Fiquei mais uma hora ali, tentando relaxar e falhando. Mesmo quando olhava pro chão, sentia os olhos dele em mim, como se fosse impossível escapar. Me levantei uma vez pra pegar uma água e ele passou por perto. O cheiro de cigarro e perfume barato me atingiu, junto com o peso do corpo dele se movendo atrás de mim.
Não falou comigo. Não tentou nada. Só passou.
Mas foi como se o ar tivesse sido arrancado dos meus pulmões.
Na volta pra casa, Vera se despediu de mim na esquina de sempre, no mesmo tom de sempre, como se nada tivesse acontecido.
— Foi bom você ter ido. Se deixar, esse morro te ensina a viver de novo.
Balancei a cabeça, sem saber se agradecia ou chorava.
Porque eu sabia, dentro de mim, que a vida estava prestes a virar. De novo. Mas de um jeito que eu ainda não conseguia nomear.
E eu, tola, cansada e cheia de cicatrizes, não sabia que já estava dentro de algo perigoso.
Algo que não ia me soltar tão cedo.
Porque aquele olhar… ia me perseguir até o fim.