O morro tem um jeito próprio de ficar em silêncio. Mesmo quando os rádios ainda estão ligados em algum barraco, mesmo quando as vozes ecoam nos becos ou as motos sobem e descem a rua principal, existe um tipo de silêncio que se impõe quando o sol começa a cair. É como se o lugar inteiro respirasse fundo antes de virar noite. Não é ausência de som, é pausa. Um respiro coletivo, denso, que atravessa até quem não nasceu ali.
Eu voltava pra casa sozinha, como fazia quase todo dia. Só que naquela noite, os passos estavam mais curtos, o coração mais apressado. A culpa não era do morro. Era do samba. Ou melhor, do que eu tinha visto no samba. Aquela figura no canto da festa, de boné baixo e olhar duro, não saía da minha cabeça. Era como se tivesse deixado alguma coisa dentro de mim — uma presença que não dava pra ignorar, um aviso que eu não sabia decifrar. Não era só aparência. Era o jeito. O olhar de quem já tinha vivido mil vidas antes da minha.
E o pior era o jeito como a Vera reagiu quando perguntei sobre ele. Gente da comunidade, ela disse. Só isso. Nada mais. Foi a primeira vez que senti Vera escorregar. Vera, que nunca economizava palavras, que sempre tinha resposta pronta, naquela hora escolheu o silêncio. E esse silêncio pesou mais do que qualquer resposta.
Naquela noite, percebi. Alguma coisa estava sendo escondida. E, por instinto, soube também: aquele homem ia cruzar meu caminho de novo. Eu só não imaginava que seria tão rápido.
Virei a esquina como quem só procura a cama. O dia tinha sido cheio. As crianças do projeto estavam agitadas, uma mãe tinha brigado no pátio, o ventilador da sala quebrou de vez. Eu só queria um banho, um travesseiro e o direito de desligar a mente. Mas foi então que ouvi o estalo seco de um isqueiro.
Parei.
Na sombra do poste, encostado no muro, ele estava lá. Como se já me esperasse. Ou como se o acaso tivesse me pregado a peça que eu temia. Mas eu sabia: não era acaso. O cigarro aceso iluminava só metade do rosto. E bastava metade pra me desmontar. O mesmo olhar da festa. Firme. Escuro. Calmo demais pra ser inofensivo.
— Tá me seguindo? — arrisquei, tentando soar mais firme do que me sentia.
Ele riu baixo, um canto de boca preguiçoso.
— Que pretensiosa. — A voz era grave, arrastada, carregada de desdém, mas com uma pontada de curiosidade. Como se eu tivesse virado um enigma que ele estava disposto a decifrar.
— Então tá aqui por quê?
Ele soltou a fumaça devagar, como quem tinha todo o tempo do mundo.
— Moro aqui.
Mentira.
— Engraçado. Nunca te vi.
— E olha bastante? — devolveu, arqueando a sobrancelha.
— Você tem resposta pra tudo?
— Só pra quem me olha desse jeito.
Aquilo me desmontou por dentro. Dei um passo pro lado, tentando disfarçar o impacto.
— Olhar não significa nada.
— Claro que significa.
O silêncio entre nós se fez pesado. Não havia ninguém na rua. Só o som distante de um rádio vindo de dentro de alguma casa e o som do meu próprio coração tentando escapar pela boca.
— Qual seu nome? — perguntei, como se isso fosse resolver alguma coisa.
Ele hesitou. Depois, avançou um passo na minha direção.
— Kay.
Só isso. Kay.
— Só isso?
— Por enquanto, é suficiente.
Quis rir. Quis fugir. Quis gritar. Mas fiquei ali. Presa. Como se meus pés tivessem afundado no chão. Como se alguma parte de mim quisesse ficar perto, mesmo sabendo que era a pior ideia do mundo.
— E você? — ele perguntou. — Vai continuar me olhando de longe ou vai me dizer teu nome?
— Júlia.
Ele repetiu devagar, sílaba por sílaba.
— Jú-lia.
A forma como ele disse meu nome me atravessou. Era quase um sussurro. Quase uma ameaça. Quase um convite.
— Você é mais velha. — ele soltou, como quem constata o óbvio.
— Observador.
— E bonita demais pra tá andando sozinha por aqui.
Senti a provocação camuflada de elogio.
— Isso é uma cantada?
— Isso é só verdade.
Ele avançou mais um passo, perto demais. Agora eu via os detalhes: a pele morena, os olhos escuros, o maxilar marcado. Havia algo selvagem ali. Algo que não se dobrava. E, escondido no fundo, algo que parecia doer.
— Olha… Kay — falei, tentando recuperar o controle — eu não sou daqui. Não tô acostumada com esse tipo de…
— De homem?
— De abordagem.
— Quer que eu seja mais direto?
Fiquei em silêncio. Porque ele já estava sendo. Meu corpo respondeu antes da minha cabeça. E minha cabeça já estava cansada de carregar a razão sozinha.
— Você bebe cerveja quente? — soltei, sem pensar.
Ele arqueou uma sobrancelha, meio riso de canto.
— De vez em quando.
— Tenho uma na geladeira. Subindo essa escadinha à esquerda. Terceira porta.
Por um instante, achei que ele fosse rir de mim. Ou virar as costas. Mas não. Ele assentiu, apagou o cigarro no muro e veio atrás.
Os passos dele ecoavam atrás de mim: lentos, pesados, como se estudasse o lugar com o mesmo cuidado com que me olhava. Não me virei. Fui direto até a geladeira, abri a lata de cerveja, precisei de qualquer coisa que ocupasse as mãos que já tremiam. O ar parecia mais denso dentro daquele apartamento pequeno.
Peguei a segunda lata, estiquei pra ele sem dizer nada. Nossos dedos se tocaram. Um toque rápido, pequeno. Mas suficiente pra arrepiar meu braço inteiro.
— Isso aqui é teu? — ele perguntou, a voz baixa, rouca.
— É o que deu pra pagar. — respondi, abrindo a minha lata. Nem bebi. Só precisava do gesto pra fingir normalidade.
— Combina contigo. Simples. Mas firme.
Virei devagar, e lá estava ele, encostado na parede ao lado da porta. A luz fraca da cozinha iluminava metade do rosto. Mesmo na sombra, parecia inteiro demais. Forte demais. Real demais.
— Tá carente, Júlia?
O mundo parou.
Eu podia mentir. Podia rir. Podia desconversar. Mas não.
— Tô.
A palavra saiu pequena, mas caiu como uma bomba.
Ele largou a lata na pia sem sequer beber. Deu dois passos, firmes, até ficar na minha frente. Um metro. Meio metro. A mão dele subiu, quente, firme, tocando meu rosto com uma delicadeza que eu não esperava.
Meu coração batia nos ouvidos.
Os olhos dele ficaram presos nos meus por um segundo longo. Não havia pergunta. Só certeza.
E então ele me beijou.
Não foi beijo de começo. Foi beijo de quem já esperou demais. A boca dele veio quente, faminta, segura. As mãos escorregaram da minha mandíbula até minha cintura, puxando meu corpo contra o dele. Eu respondi no mesmo ritmo, no mesmo fogo, com a urgência de quem não queria pensar, só sentir.
As mãos dele eram grandes, ásperas, firmes. E sabiam onde segurar. Me empurrou devagar até a bancada da pia. O beijo cresceu, se aprofundou. Língua com língua, respiração pesada, gosto de cerveja morna e saliva misturados, deixando minha cabeça girando.
Minha blusa subiu um pouco sob o toque dele. Os dedos buscaram pele. Primeiro tímidos, depois mais ousados. Meus próprios dedos se enroscaram no tecido da camiseta dele, puxando, rasgando o silêncio da cozinha.
Quando ele separou a boca da minha, o ar voltou de uma vez, rápido, descompassado. Mas os olhos dele não saíram dos meus.
— Tem certeza?
— Tenho.
Talvez eu não tivesse. Mas queria. E isso, naquele momento, bastava.