CAPÍTULO 1

1600 Words
Vinte e oito anos depois... Provavelmente deliro devido à febre, as imagens são borrões que não consigo distinguir. Escuto vozes e abro os meus olhos, m*l consigo enxergar. Sinto uma dor aguda na lateral do corpo no mesmo local que havia cortado quando a embarcação explodiu. O mistério era, como havia sobrevivido ao ataque? Tento levantar-me e uma mão parece prender-me a cama enquanto sussurra com tranquilidade. – Calma, garota, você precisa descansar para se recuperar dos seus ferimentos. – Não reconheço a voz rouca, porém sinto-me segura, seja lá onde estivesse. A inconsciência chega rapidamente e sucumbo a ela que me leva novamente as lembranças daquela noite, os gritos de pavor e os corpos que eram arrasados para a profundeza. As lágrimas apavoradas do homem que arrumou as minhas malas e mandou-me para o mais longe possível da nossa casa, os abraços quentes dos irmãos que prometiam que iriam achar-me. Terror, ódio e medo dominavam o meu corpo e tudo o que queria era gritar, no entanto, a voz não saia do meu interior e continuava oculta como as outras imagens que não entendia exatamente. Quanto tempo se passou? Sinceramente não fazia ideia, contudo, sentia a presença de alguém que entrava e saia daquele cômodo por diversas vezes. Panos úmidos eram colocados sobre a minha testa, e lavados constantemente enquanto o corpo não reagia aos estímulos de voltar a realidade. Vozes abafadas e líquidos eram emburrados por minha boca inerte, ao abrir os olhos só conseguia ver a forma do ser que usava um casaco longo e escuro, um chapéu na sua cabeça e o sorriso vermelho do sangue das vítimas que estavam dilaceradas ao chão. Não sabia quem era a criatura, e apenas o seu vulto conseguia causar os piores medos possíveis. Tento levantar-me e sou barrada por mãos que me seguravam, um grito sai dos meus pulmões e ecoa pelo espaço. Eu precisava correr, era o que meu subconsciente me alertava. – Ela está novamente alucinando – alguém diz e viro o meu rosto encontrando o seu. A mulher de baixa estatura segura a minha boca e joga um líquido viscoso que desce queimando pela garganta. A dor na lateral do corpo era grande, porém o desespero de ser envenenada se tornou maior e tiro forças não sei de onde para me desprender e correr de dentro do lugar m*l iluminado. O vento açoita a face enquanto corro cambaleante sem um destino, precisava apenas me afastar daquele lugar. O corpo se tornando pesado novamente e caindo na areia atordoada, consigo distinguir a imagem da mesma mulher que se agacha ao meu lado e retira uma mexa de cabelo da minha face. Braços firmes tiram-me do chão e levam-me para o lugar de onde sai. O céu claro com os barulhos das gaivotas, o brilho entre as águas do mar e o som das ondas continuavam a tentar levar-me a inconsciência. – Você está segura aqui – ela sussurra quando sou colocada na cama, a suas mãos acariciam os meus cabelos pesando as pálpebras que insistiam em querer se fechar. Sabia que se cedesse, voltaria a rever todos os momentos que me levantaram até ali. Sentiria a dor de deixar aqueles que amava e também de se sentir sozinha em um mundo que não conhecia. – Eu estou com sede – murmuro quase não escutando a minha própria voz. O líquido encosta nos meus lábios que o absorvem em pequeninos goles. – Como você se senti? – Os meus lábios se curvam em um meio sorriso, a garganta doía assim como o corpo e o pior de tudo estava naquele corte profundo que queimava até com a respiração fraca e entrecortada. – Não deveria ter esforçado, o seu ferimento não está curado. Estou a fazer de tudo para te ajudar, mas se continuar assim vai acabar perdendo mais sangue do que já perdeu. Entendeu? Um passado feliz que se transformou em um inferno total no momento que conheci aqueles que fariam de tudo para me terem como a sua propriedade. Talvez, a morte não fosse tão r**m assim. Mas, esse fato também me afastaria dos meus familiares e jamais os encontraria novamente. – Descanse – uma voz jovem e masculina aconselha, as suas feições já pouco distinguível pela exaustão que me tomava. ⚝ ♱ ⚝ Quando retornei a abrir os meus olhos o corpo ainda estava dolorido, porém a visão conseguia forcar no presente, a respiração fraca mantinha o coração calmo e a minha atenção voltada ao movimento que ocorria fora daquele casebre. Ao olhar para o teto feito de sapé, onde vigas seguravam o material tive a certeza de que não estava em uma das cidades ou vilarejos dos grandes reinos, certamente encontrava-me em uma aldeia distante de tudo, pois até as vestimentas deles pelo que me lembrava eram simples e coloridas. – Você acordou, pequena – a mulher de cabelos grisalhos diz com tanta doçura. O seu rosto moreno em comparação aos cabelos brancos a deixavam com o sorriso acolhedor. – As suas alucinações a deixaram bastante agitada. Como se senti? – Eu, eu – a garganta seca parecia me impedir de conseguir falar. Uma mão pequenina estende uma concha para a mulher ao meu lado, e o ornamento marítimo logo chega aos meus lábios junto com o líquido presente lá dentro que desce refrescando e limpando as minhas cordas vocais. – Obrigada! – Tento levantar-me, e sinto uma nova fisgada na lateral que faz a minha respiração se tornar pesada. A mulher me segura novamente a cama e faz uma cara de desagrado. – Se você ficasse quieta, já teria se curado, agora pelo fato de não parar deitada vive abrindo os diversos ferimentos que tem pelo corpo. Não sei ainda como está viva, possivelmente tem alguém lá em cima que a ama muito, pois o seu estado degradante teria levado qualquer um à morte. – (O tempo tinha-me ensinado que era mais fácil um ser lá embaixo me querer viva, do que aquele que se intitulava o divino pela igreja. Monstros existiam). – Eu preciso de mais água. Por favor! – Sim. Regabor, encha a vasilha para a jovem. – Um homem alto de feições duras vestido apenas com uma tanga e diversos colares aparece ao lado da cama segurando uma tigela grande nos seus dedos queimados do sol. Que raios de lugar eu estava? Certamente não era comum andar seminu pelas terras dos reinos! – Vou esperar lá fora – o homem diz quando os nossos olhares se cruzam. Eu juro pelo que é tudo mais sagrado que não estava a encarar seu peito nu, e se estava, negaria até a morte. – Não ligue para a grosseria do meu neto, ele não gosta de estranhos. Ainda mais quando um corpo aparece na praia com vários ferimentos e com a pele clara e cheia de limbo de quem certamente passou muito tempo boiando no mar e mesmo assim sobreviveu. Os deuses e o supremo realmente gostam de você. – Como cheguei aqui e onde estou? – perguntei na intenção de cortar o seu raciocínio, ela parecia ser simpática e também faladeira. – As crianças brincavam perto dos rochedos e te acharam desfalecida entre as pedras. A gritaria chamou a atenção de alguns habitantes e como a matrona dessa aldeia, a trouxeram para. – Você quer dizer, Xamã? – perguntei a fazendo curvar um sorriso genuíno. – Não usamos mais esse nome, não depois das invasões a procura de bruxas e feiticeiras. E mesmo que vivamos isolados, tal denominação seria o suficiente para tacarem fogo nesse lugar e matar a todos. – Entendo – murmuro fechando os olhos para dar uma longa respirada, algo que faz a queimação aumentar, realmente tinha mais de um ferimento pelo corpo. Ao olhar para minhas mãos, elas estavam com vários cortes que desciam pelo antebraço e se perdiam dentro da vestimenta. – Alguns dos seus cortes são superficiais e outros nem tanto. Uma das suas costelas quebrou-se e perfurou o seu órgão interno, como eu disse “alguém ama-te muito”, porque não era para estar viva nessas condições – como não dou atenção a sua fala, ela simplesmente continua a tagarelar. – De tempos em tempos encontramos corpos que boiam até as praias, possivelmente são desertores, lançados ao mar quando estão no navio, mas você – ela diz estreitando os seus olhos na minha direção – além de estar viva, possuía machucados que fariam todo o seu sangue escorrer do corpo e a teria matado rapidamente, em vez disso, conseguiu boiar até aqui e não me lembro de ter avistado embarcações por essas redondezas a um bom tempo. – Sorte? – indago a fazendo enrugar a testa, e para minha surpresa ela não pergunta mais nada. – Achamos isso em sua mão, você segurava-o com firmeza – estende um caderno simples em couro, ao abri-lo as letras e os desenhos tornaram-se borradas e nada compreensivas. Desde pequena eu costumava rabiscar as folhas e desenhar sempre que me sentia entediada ou que precisasse pensar e aquele item foi o único que sobrou da minha antiga vida, o último presente de um pai amoroso em que estava disposto se sacrificar pela felicidade da filha. – Obrigada – digo com sinceridade ao analisar as manchas no papel duro e amassado, tão diferentes do material nobre de antes. – Se é frustrante para você, imagina para mim que estou tentando entender o que aconteceu – a sua fala sai como um murmuro quando ela se levanta para se afastar. – Agora descanse, ou serei obrigada a amarrá-la a essa cama.
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