Maria Esperança
Meu corpo treme, as lágrimas escorrem incessantes pelo meu rosto. Minhas mãos estão geladas, mesmo que o líquido espesso e escarlate que escorre entre meus dedos esteja quente. Não consigo acreditar que cheguei a esse ponto; só queria que ele parasse, pois não aguentava mais. Mas ele não parou, continuou. Ouvi seus gemidos e senti nojo, um desprezo profundo por sentir seu corpo sobre o meu, seu m.embro dentro de mim. O asco que sinto por mim mesma é avassalador.
Olho para o corpo caído, cercado por um mar de sangue.
Nesta casa, não há mais ninguém, só eu.
Engulo em seco, tomada pelo desespero, sem saber o que fazer. Não posso procurar ajuda, não posso contar a ninguém o que fiz, mas também não quero ser presa se por acaso alguém descobrir.
Não quero ser condenada duplamente, pois a vida já me condenou há muito tempo. Não vou sofrer atrás das grades por tentar me proteger das ações cruéis desse monstro.
Caminho até o quarto e vejo meu corpo, ainda marcado pelo suor e pelo sêmen dele, escorrendo pelas minhas coxas, grudando na pele. A mordida em meu ombro ainda sangra, e meu rosto arde devido ao tapa que ele me deu, tentando me silenciar mais uma vez. No entanto eu não desisti; consegui quebrar o espelho enquanto me debatia, alcancei o pedaço estilhaçado e pontiagudo do vidro, fui certeira, cravando-o entre suas costelas.
Entro no meu humilde quarto, onde apenas um velho baú de madeira guarda minhas poucas roupas e os panos que uso para me cobrir à noite. Abro o móvel antigo, pego minha mochila esfarrapada e coloco as poucas peças de roupa que tenho. Junto meus documentos e me preparo para desaparecer do mundo. Ninguém vai me encontrar. Ouço os gemidos de dor dele e olho para trás, temendo que ele apareça e me impeça de sair ou que faça algo ainda pior. Da última vez que esse monstro me surrou, vomitei sangue.
Olho para o porta-retrato da única foto que tenho da minha mãe. Retiro-o e levo comigo. Faz poucos dias que ela morreu, vítima dos maus-tratos desse ser c***l. Ele a espancou, bateu sua cabeça na pedra e a deixou desmaiada. Eu sei que, desesperada, corri à noite pela rua pedindo ajuda, mesmo tendo sido agarrada pelos cabelos por ele.
Aquele maldito me ameaçou, dizendo que se eu contasse algo do que aconteceu a alguém, ele acabaria comigo e com minha mãe. m*l sabia ele que a minha mãe já estava morta.
Quando um vizinho, que morava longe, chegou com seu velho Fusca e viu a cena, o agressor disse que minha mãe escorregou da pequena escada e caiu, batendo a cabeça. O desgraçado teve a audácia de chorar um pranto falso, repleto de um desespero que não existia. O ódio que senti por ele foi imenso. Nunca contei à minha mãe o que passei nas mãos desse abusador, por medo, pela violência de suas ameaças. Ele sempre me dizia, toda vez que entrava no meu quarto e fechava a porta, que se eu contasse a alguém, ele me mataria, além de ameaçar a vida de quem eu mais amava no mundo: minha progenitora.
Eu me limpo da melhor forma que consigo, esfregando um pedaço de um lençol feito de pequenos quadrados de tecido. Coloco uma calça de moletom, uma blusa de frio, calço um tênis sem meia e pego minha mochila. Saio correndo pela porta, fecho-a com um baque e disparo pela beira da estrada. Já passa da meia-noite e aqui estou eu, com lágrimas nos olhos e o coração em pânico, com vestígios de sangue seco em minhas mãos, desejando ardentemente que aquele desgraçado esteja realmente queimando nas profundezas do inferno, que eu tenha conseguido livrar o mundo daquele verme maldito.
Não sei para onde vou nem o que fazer da minha vida, pois estou sozinha. Meus avós maternos não moram aqui e, do lado do meu pai, não conheço ninguém. Só sei que ele é descendente de italianos e que herdei dele meus olhos azuis, que tanto detesto. Eu gostaria que eles fossem como os da minha mãe, negros, assim como o tom da minha pele, para que eu não carregasse a marca de alguém que nunca se importou comigo. Parece que o destino me escolheu desde o ventre para sofrer, para carregar uma coroa de espinhos e sangrar até a morte com ela.
Todos nós temos nossas feridas, e as minhas estão abertas, ardendo em silêncio. Não conto a ninguém tudo o que passei, tudo que tive que engolir e suportar por medo de ser julgada, condenada, mesmo sendo inocente. Neste país, a sociedade se volta contra nós; precisamos calar a boca para não sermos massacrados.
Todos buscam um lugar ao sol, todos desejam viver em paz, todos querem uma vida boa. E quando falo em vida boa, não me refiro a riqueza e luxos, mas a uma vida em que se possa dormir sem medo do monstro que habita dentro de casa e que muitas vezes se esconde debaixo da cama.
Preciso deixar este lugar, abandonar minha querida Minas Gerais. Apesar de minha vida ter sido repleta de espinhos e lágrimas, reconheço que Minas é um lugar maravilhoso, especialmente Carangola, onde nasci e onde minha mãe também veio ao mundo.
Carangola está situada na Zona da Mata de Minas Gerais, perto do Pico da Bandeira, longe da capital. Minha mãe costumava dizer que a região da Mata mineira era como uma Austrália brasileira, um refúgio para escravos e bandidos, e que lá também se encontravam muitos imigrantes.
Minha avó veio ao mundo aqui em Carangola, na década de 1950, quando a cidade contava com apenas cerca de uma dúzia de habitantes. Fundada em 1845, seu nome é uma homenagem ao rio que já aparecia nos mapas de Minas desde 1780.
Sobre meu pai, sei que ele pertence a uma família que imigrou do Norte da Itália, de Modena, e seu sobrenome era Ferrari.
Minha mãe tentou compartilhar algumas histórias sobre ele, mas eu nunca tive interesse; não queria saber de um homem que me rejeitou antes mesmo de eu nascer, enquanto ainda era um embrião no ventre de uma mulher que já enfrentava preconceito por sua cor e raça.
Em Carangola, nos anos 50, minha mãe relatava que, embora os negros não fossem formalmente proibidos de frequentar certos lugares, a segregação era uma realidade. Havia espaços distintos para brancos e negros; se houvesse um cinema, existiria um para a população branca e outro para a população n***a. A discriminação estava tão enraizada que nos separavam como se não compartilhássemos a cor do sangue, como se não sentíssemos as mesmas necessidades. Minha mãe dizia que até nas aulas de catecismo essa divisão era evidente, refletindo a triste realidade de uma cidade pequena e pouco habitada.
Nunca me importei em saber sobre meu pai; a ideia de procurá-lo nunca passou pela minha cabeça. Assim como não me preocupei em brigar para carregar o sobrenome Ferrari. Eu sou apenas Maria Esperança Santos, e esse sobrenome Santos é herança da minha mãe. Na minha certidão, só aparece o nome dela. Embora eu não saiba ler e escrever direito, porque precisei deixar a escola cedo para ajudar a colocar comida na mesa, trabalhando na lavoura de aipim do desgraçado que se tornou meu pior pesadelo.
O pouco que aprendi me fez ter certeza de que nunca quero ter o sobrenome daquele homem que me desprezou.
Está frio e o caminho é longo, rogo por um milagre divino. Que Deus tenha piedade de mim e dessa vida miserável que tenho.
Dizem que no fim do túnel tem uma luz, eu procuro a minha porque esse túnel em que estou é longo, sequer vejo uma sentelha de iluminação.
Quando vejo o farol de um caminhão se aproximando, faço sinal com as mãos pedindo carona. Já enxuguei minhas lágrimas e limpei as minhas mãos sujas de sangue. Parei na primeira poça de água que encontrei pelo caminho e ali mesmo lavei, deixando os vestígios do meu crime para trás. A chuva parou, mas antes caiu uma tempestade que parecia querer desabar o céu. Talvez fossem os anjos chorando ao ver meu sofrimento, porque toda vez que aquele homem me tocava, eu orava, orava e orava, pedindo para que aquilo terminasse logo, essa tortura maldita.
Meu coração acelera e quase salta pela boca quando o caminhão para e o vidro da janela se abaixa. Um senhor de cabelos brancos e que usa óculos olha na minha direção.
_ Moço, o senhor pode me dar uma carona?- pergunto, cheia de esperança de sair logo dali.
_Para onde a moça vai?- ele pergunta, e eu não tenho muita certeza de para onde estou indo; só sei que preciso deixar Carangola para trás.
_Rodoviária, estou com viage marcada. Consigui um trabaio lá no Rio de Janeiro.- Minto, porque a verdade é pesada demais e, mais adiante, alguém pode descobrir o cadáver do infeliz. Sei que começaram a procurar pelo culpado e não tardará para que chegam até mim.
_ A mocinha não acha que vai passar a noite na estrada? Está muito cedo! - ele indaga, curioso. "
_Ah, moço, é que eu moro muito longi e daqui até lá é uma légua.- Invento uma desculpa, e o senhor apenas dá de ombros e diz:
_ Pode entrar, que logo vem mais chuva.- Profere olhando o céu escuro.
Não perco tempo; entro no caminhão, bato a porta, seguro firme minha mochila surrada entre as mãos e parto para onde só Deus sabe.
Dizem que uma desgraça não vem só, acredito que quem deixou essa frase no ar tem razão, porquê no dia que sepultei a minha mãe, também me tornei uma assassina.