Maria
O caminhão sacoleja e eu não presto atenção no que o senhor, dono de muitas rugas na face e cabelos brancos, diz. Minha mente vagueia na dura realidade: não tenho mais ninguém. Enquanto uma canção toca no rádio, falando de coisas bonitas, por dentro de mim só vejo coisas feias e muitas marcas.
_ Estamos quase chegando, menina...
Olho para o homem de idade e sinto uma raiva dele; com o seu sorriso de bonzinho, vai saber se também não é um monstro!
_ Fernanda. - Minto, não quero que saiba quem sou, não precisa.
_ Então, Fernanda, você tem quantos anos? - aperto a mochila em minhas mãos.
_ Vinte. - Minto outra vez; eu só tenho dezessete anos.
_ Nossa, nem parece! Eu lhe daria um dezesseis! No entanto, uma moça de menor não iria estar sozinha pegando carona de madrugada. - comenta, e a conversa me irrita.
As aparências enganam. Falo isso por experiência própria; um dia, chamei o meu abusador de pai porque o maldito não tinha mostrado sua verdadeira face.
_ Verdade quando lhe digo que te dou uns dezesseis anos. - Ele me olha rapidamente- Sabe, eu tenho um neto que tem dezoito anos...
O senhor fala e fala, enquanto eu vasculho em minha cabeça uma maneira de deixar essa cidade sem ter um real no bolso.
Minutos depois, o caminhão para próximo à rodoviária. Desço e agradeço ao senhor, que parte para cumprir o seu caminho.
Jogo a mochila nas costas e caminho pelas redondezas até que uma chuva fina começa a cair. Corro para debaixo de uma marquise; a chuva ganha volume.
Me abraço, querendo esquentar meu corpo.
Fico quase trinta minutos por ali parada, observando o céu chorar.
Quando a chuva cessa, retorno ao meu caminhar, até que chego ao posto de gasolina, que está vazio; há somente uma caminhonete parada em frente à loja de departamentos. Olho de um lado para o outro, entro na caçamba que tem alguns arreios e celas, deito-me e me protejo com uma lona grossa que está ali, cobrindo as peças de couro.
Não sei para onde o motorista desse veículo vai; no entanto, desejo que seja para fora de Carangola; depois, eu dou o meu jeito.
Estou quase cochilando, meus olhos pesam e eu seguro um bocejo. Penso que deveria me atirar da ponte e deixar as águas fazerem o trabalho de me varrer da face deste mundo e... Levo um susto ao ouvir a batida de porta sendo fechada. Meus batimentos aceleram. Fico tensa, com medo de ser descoberta, até que o carro entra em movimento. Fico apreensiva, temo que o motorista seja morador daqui e que eu esteja apenas permanecendo mais tempo no local onde cometi o crime.
Durante o tempo em que a caminhonete circulou, o carro sacodiu e balançou. Levei muito tempo deitada, encolhida em um canto da caçamba do veículo, morrendo de medo de sermos parados pela polícia rodoviária e eu ser descoberta pelo motorista, uma vez que estava sem sua permissão, pegando uma carona.
Sei que, nessa jornada, a chuva chegou, apertou, escorreu por dentro da caçamba, me molhando, e não pude fazer nada. Se eu me mexesse muito e fizesse algum barulho, ele poderia perceber, ou ela, porque não sei se se trata de um homem ou de uma mulher. Assim como também não poderia pular do carro em movimento, o que chamaria atenção; vontade não me faltou.
Sinceramente, tem pessoas que vêm ao mundo só para sofrer, e eu acho, acho não, tenho certeza, que faço parte desse grande grupo, porque, se pararmos para perceber, são muitos os que choram e poucos os que mantêm um sorriso na face.
O carro dá uma freada e, de repente, escuto uma buzina muito forte; por muito pouco, acho que não acontece um acidente. Logo, o veículo começa a ganhar velocidade.
Não consigo dormir, mesmo que eu esteja com sono. O meu maior medo, o de ser descoberta e que a pessoa chame a polícia e eu me encrenque ainda mais, não me permite relaxar por nenhum segundo.
Faz muito tempo que os pássaros cantam. levanto devagarzinho a lona e vejo que o dia está amanhecendo.
Onde estou? Não sei; só espero que esteja bem longe de Carangola. Depois daqui, posso pegar outra carona para fora do estado e desaparecer no oco do mundo, para que ninguém me encontre quando o corpo daquele verme maldito fo descoberto.
A caminhonete continua andando, só que agora numa velocidade mais ou menos reduzida, muito, muito lenta, tanto que consigo sentir o balançar do veículo. Até que, por fim, ela para. Então, ouço vozes; uma voz de mulher conversa com alguém, creio ser o condutor do veículo e, quando ela responde, sei que se trata de um homem.
Espero alguns minutos quietinha, quase sem respirar, e, quando não ouço mais nada, devagarzinho retiro a lona de cima da minha cabeça, dou uma espiadinha por cima e olho ao redor. Não vejo ninguém. Pulo para fora do carro.
Me assusto ao dar-me conta de que estou dentro de uma propriedade. Parece muito com uma fazenda. A casa à minha frente é enorme e muito bonita. Meu coração bate nas costelas; fico com medo de aparecer algum cachorro que possa fazer a guarda ou algum trabalhador e me ver aqui. O que eu iria dizer?
No meu desespero, saio na encolha entre as muitas plantas que vejo. Corro para trás do tronco de uma árvore e, depois de olhar de um lado para o outro e não ver ninguém, me jogo dentro dos matos da vegetação. Estou desesperada; preciso sair daqui, ganhar de novo a estrada e, dessa forma, conseguir outra carona para ir o mais longe que posso. No meio do meu desespero de tentar correr, não vejo a raiz sobressalente de uma árvore que está para fora da terra. Meu pé engancha ali e eu levo um baita tombo; caio com tudo no chão, mas não tenho tempo para me lastimar. Então, tento me pôr de pé e uma dor lancinante percorre a minha perna inteira. Era tudo que eu não precisava nesse momento: ter quebrado alguma coisa.
Levanto-me. Tento andar, mas a dor é tão forte que, só de apoiar o pé no chão, dá vontade de gritar, e só não faço isso por medo de chamar atenção. Da forma que posso, vou me arrastando por dentro do mato, até que avisto, ao longe, um telhadinho. Continuo caminhando naquela direção. Eu deveria realmente desviar, mas acho que pode se tratar de algum casebre abandonado, porque está muito distante da casa principal. E, no meio do mato, lugares assim costumam ser todos bem limpos. Penso que lá eu possa descansar um pouco, dar uma olhada no meu pé e ver realmente o que aconteceu. Não posso ir para o hospital; tenho medo.
Depois de tanto me arrastar, chego no casebre feito de tábua. Ao longe vejo o telhado imponente da casa gigante.
Retorno a minha atenção para o casebre abandonado.Trata-se de uma espécie de palhoça, um local para armazenar capim seco, um feno fedorento.
Estou só o bagaço: cansada, molhada, machucada, com fome, com sede e no meio de um desespero, porque não sei o que fazer da minha vida.
Exausta, jogo minha mochila em cima do feno e procuro por uma madeira, um galho, alguma coisa que sirva para eu bater no capim.
O ensinamento que minha mãe me deixou é que, sempre que tiver um montante de folhas ou capim, nunca se jogue e nunca se deite sem antes averiguar o que há debaixo dele. Serpentes gostam muito de lugares frescos e úmidos para se esconder.
Encontro um pedaço de galho de mangueira jogado próximo à a******a do casebre; acredito que eles nem utilizam mais essa construção.
Precisando muito de descanso, espeto o capim, reviro-o com o auxílio do pedaço de galho e dou graças a Deus quando não me deparo com nenhum bicho. Por fim, jogo a minha mochila para dentro, encosto a porta capenga, deito e apago. Meu corpo sacrificado pede, implora por descanso; não tenho mais energia para nada. E, além disso, dormir mata a fome, dizia minha mãe.
Foram inúmeras às vezes, que quando eu era pequena, a fome nos enquadrou. Eu tinha por volta de três ou quatro anos e, muitas das vezes, minha mãe me deu para comer farinha de mandioca molhada com água e açúcar, porque era só o que tínhamos para nos alimentar. Não sei por quanto tempo durmo; quando acordo, é aos gritos e berros de um homem.
Aconteceu que não poderia acontecer: alguém me encontrou.
Olho para o homem barbudo de cabelo grande, tendo os meus olhos maiores do que a boca de um copo.
Eu sei muito bem do que os homens são capazes; eles são seres cruéis, malignos, perversos. Todos eles são, e eu odeio os homens. De repente, o cara avança sobre mim, me pega pelo braço com sua mão imunda. Olho para ele com medo, pavor, e asco enquanto ele berra:
_ Quem é você? O que faz aqui? Fala logo, menina!
Seus olhos estão nervosos; vejo a ira neles e, conforme grita, gotículas da sua saliva voam sobre mim. Meu nojo aumenta e, diante do nervosismo de tudo, acabo virando o rosto e vomitando o que não tenho no estômago. O rosto amargo domina a minha língua.
_É muda? Já que você não sabe falar, eu já sei nas mãos de quem eu vou te entregar. Quero ver se não vai abrir a boca rapidinho! Sua ladra sem-vergonha!
Fico mais apavorada ainda; o suor frio desce pela minha coluna. Eu acho que não terei escapatória dessa vez.