Capítulo I

2208 Words
Prisão de Kazres, Província de Kazean - Terras celestes     Seis anos haviam se passado, desde que os filhos do general-mor tinham sido deixados naquela prisão, a pedido do próprio general-mor, que sabia dos perigos que seus filhos correriam se caíssem nas mãos de seus inimigos.     Não era necessário muito para enlouquecer em um lugar como aquele. As paredes de pedra eram intransponíveis, visto que, a prisão fora escavada dentro de uma montanha, sobre grandes cisternas que drenavam as escassas águas da província.     Sentado no chão, recostado contra a parede de pedra fria e úmida, Sandro fitava o corredor vazio e m*l iluminado, os pensamentos perdidos no enfado da desilusão. Já fazia um tempo que ele havia desistido da ideia de que alguém viria busca-los. Depois que ele e o irmão mais novo foram aprisionados, o garoto reencontrou o comandante Tassio Benji, que demonstrara ser seu único aliado, por apenas três vezes, quando o mesmo lhe deu a dura noticia de que seu pai não só havia sido preso pelos bruxos, como levado como prisioneiro para as terras altas pelo rei tarrano.      Após relatar a situação de seu pai, o comandante Benji desapareceu, levando com ele a esperança que o garoto tinha de receber noticias, por pior que fossem.  Sandro não tinha a menor ideia do que havia acontecido com o comandante e por mais que houvesse insistido em perguntar aos guardas, o máximo que conseguira como resposta, fora algumas costelas quebradas.      Coçando a barba falha, o jovem elfo se perdeu no obscuro de seus pensamentos lentos. Quem o visse naquelas condições, jamais imaginaria que aquele era o rei regente, ou o filho do general-mor, rei soberano não coroado.      A cabeça, outrora raspada pelos guardas, agora já estava farta de cabelos loiros, desgrenhados e sujos, na altura dos ombros largos e ossudos. Mesmo com toda a escassez de alimentos, ele havia sofrido o estirão esperado para sua faixa etária, estando agora da altura de um elfo adulto, porém com um corpo desnutrido e desprovido de músculos, apesar de constantemente fazer flexões, na tentativa de levar o corpo a completa exaustão.      No começo, Sandro se sentia um estranho naquele lugar horrendo, recusando-se a beber e comer os alimentos entregues pelos guardas, mas a medida que o tempo passava, sua percepção com relação ao lugar foram mudando e agora, ele em nada se diferenciava dos outros presos. Sujo, imundo e maltratado. Os vívidos olhos dourados haviam assumido uma coloração obscura e desiludida. Todos os planos de fuga que havia maquinado, não passaram de planos tolos, sem qualquer perspectiva de sucesso.      As tiras de pano que enfaixavam seu pulso direito, escondendo o bracelete real, haviam se tornado trapos que ele sustentava com a ajuda de novas tiras, que arrancava das batas que recebia. Sandro tinha consciência de que se alguém descobrisse que ele carregava o bracelete real, sua vida seria tomada por qualquer um que desejasse ser rei.      Pelas tradições élficas, como rei, ele era obrigado a aceitar o desafio de qualquer um que se julgasse digno da coroa, tendo que vencer seus adversários para demonstrar que era digno dela, assim como seu pai havia feito na arena. Em um lugar como aquele, com o porte físico que tinha, qualquer soldado facilmente lhe arrancaria a cabeça e o braço em busca daquela joia. - Tirem as roupas – o guarda gritou no começo do corredor, batendo uma barra de ferro contra as grades, a medida que caminhava destemido – rápido seus imundos. O barulho da chave contra a fechadura anunciava que os guardas já estavam abrindo as primeiras celas e espancando os presos que não tinham conseguido se livrar de suas roupas. - Não temos o dia todo {1}bihaki – as palavras do guarda foram cuspidas com escarnio, sobre os gemidos dos elfos que estavam sendo espancados. Sandro rapidamente se livrou das roupas, as mantendo nas mãos, assim como Anafei, seu novo companheiro de cela. - Quando meu irmão... – o garoto teve sua pergunta interrompida por duas pancadas certeiras. Uma na barriga e outra nas costas. Ele gemeu se curvando. As costelas ainda estavam frágeis por causa da ultima luta que tivera no tablado da morte, onde teve que lutar no lugar do irmão mais novo. - pra fila – berrou um dos guardas impacientes. - rápido seus porcos... - uma gracinha e irão direto para a {2}Oubliette por duas longas semanas. As ameaças dos guardas eram seladas com pancadas aleatórias, nos presos rigorosamente enfileirados. - movam suas bundas {3}moxannas... um dos guardas gritou batendo seu bastão de metal contra as grades, fazendo com que o barulho agudo emitido pelos metais, agredissem os tímpanos élficos já sensibilizados.     Enfileirados, os presos foram acorrentados uns aos outros, completamente despidos de suas vestes. Movidos pelos estalos dos chicotes, seguiram em direção as escadas, que teriam que descer por algum tempo, até chegarem no andar térreo, onde ficavam as cisternas e as câmeras de banho.      A medida que desciam, o ar ficava mais úmido e pesado, com um sufocante cheiro de terra molhada. O frio dos andares de cima, agora dava lugar a uma temperatura mais agradável, o que favorecia seus corpos despidos.     Por diversas vezes, Sandro julgou o banho semanal, uma das poucas oportunidades de fugas, planejando uma saída pelas gigantescas tubulações, por onde as aguas desembocavam. Mas depois que descobriu que outros presos já haviam tentado e que a fuga terminara em rios ferventes, seu ânimo esfriou. A verdade era que todos os seus inúmeros planos de fuga, sempre terminavam em nada. Aquele era um inferno rigorosamente projetado para aprisionar elfos por milênios e se não descobrisse uma forma de escapar, certamente seria enterrado ali, junto com o irmão, que já fazia cinco dias que não via.      Sem perder tempo, já habituado aquela tarefa, os presos ofereceram os grilhões aos guardas que rapidamente desprendiam deles as correntes, mantendo apenas as algemas. - Sejam rápidos – gritou um guarda próximo do ouvido de Kaluste, um elfo da província de Atalle, preso em Kazres há mais de um século. O guarda sabia que Kaluste demorava mais que os outros no banho, pois sua obesidade e sedentarismo o atrapalhavam na hora de descer os degraus até as cisternas e encher a tina para o banho.       Os presos praticamente tinham que correr, se quisessem tirar toda a sujeira do corpo. Aquele era um dos poucos momentos em que Sandro se sentia bem. Para ele, era reconfortante se livrar de toda a sujeira acumulada na semana.       Durante o banho, o jovem elfo reparou que mais guardas haviam sido substituídos. Ele havia notado que frequentemente as caras estavam mudando, e que agora, boa parte dos guardas não eram mais elfos, o que não deixava de ser estranho, pois ao que tudo indicava elfos e bruxos estavam trabalhando juntos.  - O que está olhando i*****l? – O guarda bruxo perguntou na língua comum a um dos presos que fora pego o observando. O preso respondeu com um gemido, após o bastão do guarda se quebrar em suas costas.       Sandro também notou que no andar térreo, onde ficavam as cisternas, não havia mais um único guarda elfo e que a medida que o tempo passava, as celas que antes abrigavam apenas um preso, agora abrigavam de dois a até três elfos juntos. Não se tratavam de presos novos, mas sim presos remanejados de outros andares, o que demonstrava fortes mudanças no sistema de funcionamento da prisão, mas por qual motivo? - o garoto se perguntou intrigado.       Sandro pegou a bata limpa e seguiu para ter os grilhões das mãos novamente acorrentados, mas o guarda o bloqueou, separando os elfos que tinham asas, dos que não tinham. Aquilo era algo que nunca ocorrera antes e seus companheiros não esconderam o medo e a desconfiança. - Sigam até o final do corredor – as ordens foram ditadas aos gritos, como era o habito dos guardas – rápido. O corredor comprido dispunha de algumas tochas de fogo nas paredes, fornecendo ao ambiente desagradável, alguma claridade. O fedor de carniça se misturava ao cheiro terroso do lugar. - por que nos separaram dos outros? – Kaluste perguntou ofegando. Todos estavam desconfiados, mas Kaluste era o que mais demonstrava sua inquietude. - Apenas cale a boca e continue andando – o guarda bruxo gruiu as palavras sem muita tolerância. Diferente dos outros guardas, ele não gritou, mas segurava no rosto uma carranca de insatisfação e nojo. - Eles vão nos matar... – choramingou Kaluste. - {4}Akhrus, bihaki! – Um dos presos exigiu no idioma élfico, irritado com Kaluste que não parava de choramingar. Elfos não aceitavam demonstrar medo, principalmente diante de bruxos.  Passando por algumas das portas entreabertas, de onde o fedor de carniça exalava com mais intensidade, os presos puderam ver várias asas decepadas, com sangue élfico derramado sobre apoios esculpidos em pedras. - Quinto corredor, terceiro andar – O guarda avisou aos soldados que os receberam, em um salão amplo, desprovido de mobilhas ou adornos, com uns trinta elfos sentados no piso sujo. Um corpo mirrado, em batas sujas, estava jogado no canto a esquerda de quem entrava. Sandro reconheceu o corpo de Talician.  O medo do irmão estar morto diante dele o estagnou onde estava, roubando dele qualquer reação. Aquele era seu maior medo, perder o irmão ali dentro.  - Traga o moleque, será melhor assim, quando acordar, já estará sem as asas – um dos guardas bruxo falou com um sorriso desdenhoso. - Deveriam arrancar a cabeça desse moleque, em vez das asas! Ninguém mais aguenta essa peste! – o outro guarda de cabelos ruivos deu um chute no garoto, que gemeu em resposta. Sandro sentiu um breve alivio ao perceber que o irmão ainda respirava. - Tragam o moleque – O guarda ordenou da porta do corredor de onde o odor de sangue pisado exalava.       Dois guardas ergueram Talician pelos ombros. O rosto do garoto estava cheio de hematomas. Não importava quantas vezes Sandro houvesse pedido ao irmão que não provocasse os guardas. Talician não raciocinava quando estava com raiva e tão pouco sabia controlar seu temperamento. Agora estava sendo carregado em direção a uma daquelas salas para ter suas asas amputadas. Não. Definitivamente, aquele era o fim de tudo.      Desde que chegara ali, Sandro já não se sentia mais um elfo. Se sentia um animal sujo, sem valor, sem dignidade. Havia se submetido a engolir todos os maus-tratos daquele lugar, na esperança de que alguém viria busca-los, na esperança de que se aguentasse firme, uma hora tudo aquilo chegaria ao fim. Só agora tomava consciência de seu engano. Não haveria socorro.  - O que faz parado i*****l – Perguntou o guarda atrás dele, o trazendo de volta de seus devaneios, enquanto ele via a porta do corredor se abrir para levar seu irmão embora.       Movido pela loucura de uma fera enjaulada e sem esperanças, Sandro decidiu que seria melhor morrer, a ter que presenciar um momento como aquele. Virando-se como um coitado desajeitado, com as mãos ainda algemadas, o garoto puxou a espada da bainha do bruxo e a deferiu contra a cabeça do mesmo, a deixando dependurada sobre o corpo ainda de pé. O sangue do bruxo jorrou contra sua cara, como um chafariz desordenado. Contudo, ele não esperou o corpo tombar, antes disso, perfurou um dos guardas que segurava seu irmão.      Sandro sabia que depois daquela atitude insana, sua vida seria tomada, pois ele jamais teria condições de enfrentar a quantidade de guardas que tinha naquela sala, mas ele já não se importava com mais nada. A desilusão e revolta o cegara. Naquele momento, ele só era um louco enraivecido, sedento por vingança. Vingança contra todas as algemas que a vida lhe pusera.        Movido pelo susto, um dos guardas que havia aberto a grade que dava para o salão onde os presos estavam, tentou proteger a saída. Empurrando as grades com força. - {5}Pomogi mne... – gritou o guarda bruxo ao outro guarda, que acovardado parou no meio do corredor, sem saber se ajudava o amigo ou se corria e pedia por socorro. Ainda inexperiente naquela função, enquanto o guarda se decidia, presenciou o companheiro ser perfurado. Tomado pelo medo, o bruxo se pôs a correr pelo corredor, na tentativa desesperada de fugir, mas antes de alcançar seu objetivo, sua cabeça foi perfurada por um punhal lançado por um dos prisioneiros.       O caos tomou conta da sala. Sandro correu na direção do irmão, enquanto todos os guardas do salão eram esquartejados pelos presos. Não havia uma ordem, apenas violência, gritaria e sangue. As grades foram escancaradas e os presos saíram correndo como bichos movidos pela fome, sem raciocínio, sem controle. Empurrados pelo barulho, vários guardas seguiram em direção ao corredor, tentando entender o que estavam acontecendo, sendo assim surpreendidos por feras ensandecidas, sedentas por sangue. Sandro alcançou as chaves na cintura do guarda e se livrou dos grilhões que ainda carregava nos pulsos. Depois soltou Talician o chamando. Para seu desespero, o irmão não reagiu. {1} – bihaki: Palavra de baixo escalão "p***a". {2} – Oubliette: isolamento onde o preso só possui espaço para ficar de pé, sem ter condições de se sentar por falta de espaço. {3} – Moxanna: menina, garota. {4} – Akhrus: cala a boca. {5} – Me ajude no idioma bruxo. 
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