O Recado do Professor

1683 Words
Em algum momento no trajeto do estágio para casa, adormeci. O cansaço caiu como um véu escuro na frente das minhas pálpebras, cobrindo todo o caminho enquanto Vitor dirigia calmamente pelo trânsito engarrafado da avenida principal. Durante os sonhos e quando não tinha o controle da minha mente, desejos estranhos rodopiaram minhas lembranças. Olhos azuis brilhavam como estrelas cintilantes nos meus pensamentos e eu conseguia ler cada minúscula faísca de desejo naquelas órbitas que pertenciam ao meu professor. Queria acreditar que não o achava atraente, que não tinha sido minimamente interessante conversar com ele e receber toda aquela atenção daquele homem tão cobiçado. No âmago do meu ser, entretanto, eu sabia. Sabia que tinha sentido satisfação ao ser o centro da atenção dele por alguns minutos. “Você é sempre assim?” A voz dele ecoou nos meus pensamentos, um sopro delirante de desejo surgindo bem ali. Abri os olhos, o ar-condicionado do carro arrepiando os pelos dos meus braços. Minha visão saiu da cafeteria ecoando em meus sonhos para o estacionamento do meu prédio. — Ah. Pisquei, pouco a pouco retornando a mim. — Achei que não fosse acordar nunca — disse Vitor, a voz mais rouca do que me lembrava. Olhei para ele. Ele estava olhando para fora, para o estacionamento. Distraído, disse: — Até aumentei o ar-condicionado para a madame parar de abrir os botões da camisa. Desviando meus olhos para baixo, encontrei minha camisa branca do estágio amassada, os dois primeiros botões abertos. Parte do meu sutiã de renda preta cobria minha pele, evitando o constrangimento dos s***s expostos. Senti meu rosto esquentar enquanto fechava os botões. O que diabos tinha acontecido na minha cabeça para ter feito tal coisa? — Desculpa por isso, Vitor — murmurei. Meu rosto deve ter corado mais três tons quando me dei conta de como tudo aquilo foi íntimo. — Eu não tenho dormido direito e sou muito calorenta. Um sorriso pequeno brotou no rosto do rapaz. Ele virou para mim, os olhos castanho-claros acesos com a diversão. — Não costumo me empolgar com um pequeno decote, Diana. Fica tranquila. Um pequeno decote? Franzi a testa, ofendida pela descrição dele. Pareceu muito apelativa para um colega de estágio — ele não devia ter reparado o tamanho do meu b***o. Limpei a garganta embargada pelo sono e soltei o cinto. — Obrigada pela carona — disse, seca. Sem mais querer encará-lo, abri a porta do carro e disparei para fora. Antigamente, minha vergonha deixaria aquilo passar e eu me sentiria culpada toda vez que olhasse para ele. Eu costumava ser inofensiva o suficiente para meu ex-namorado ter se aproveitado da minha introversão e brincado com o meu corpo, fazendo piadas daquele tipo e alegando que mulheres que conhecia tinham um corpo melhor do que o meu. Aquele passado. Foram aquelas feridas moldadas por um relacionamento abusivo que me tornaram terrivelmente áspera com homens como Vitor. Acontece que a Diana do passado tinha me feito uma promessa: Nunca, em hipótese alguma, alguém ousaria me desrespeitar novamente. Vitor estava se inclinando do banco do motorista até o passageiro para fechar a porta e dizer alguma coisa, mas não dei a ele nenhuma oportunidade. Bati com toda força a porta do carro. — Mas, quer saber? Meu corpo não é objeto para você medir — sibilei, encarando-o através do vidro. Vitor abriu a boca, confuso. Não satisfeita, acrescentei: — Aposto que seus três centímetros ficaram muito satisfeitos com a visão. Um vinco se formou na testa dele com o choque. Com um sorriso c***l, dei as costas para o carro e ajeitei a mochila nas minhas costas, subindo apressadamente as escadas do condomínio até meu apartamento. O desgosto capturou mais uma vez meu bom senso ao me deparar com a porta do 402 aberta. Gostava de fingir que o apartamento era só meu, mas era impossível quando dividia ele com uma pessoa tão abusada quanto Caroline. Um metro e setenta de altura, madeixas escuras, pele cor de oliva e penetrantes olhos escuros tornavam aquela mulher intimidadora. Quando o dono do apartamento abriu duas vagas de quartos, felicitei-me com o fato de que as tarefas seriam divididas e meu trabalho diminuiria. Apenas Caroline tinha alugado o apartamento cerca de um ano atrás — a maioria das universitárias saíam da casa dos pais para um espaço maior do que aquele cubículo —, e ela não me decepcionou a respeito da limpeza. Infelizmente, porém, a gigante bonitona odiava gatos. Alimentada por Vitor, minha ira aumentou alguns níveis ao pensar que meu gato poderia ter ido embora graças a ela. Caminhei pela sala pequena que deveria abrigar uma televisão e sofá, mas se contentava com uma mesa de plástico que servia como armário de talheres e copos. A sala era dividida com a cozinha, um espaço miúdo com fogão, armário de panelas e geladeira. Toda a parede era pintada de um laranja horrendo e o piso devia ser mais velho do que minha avó. Barriguinha não estava ali. Caroline também não. Meu quarto ficava no final do corredor lateral à sala. O corredor sequenciava dois outros quartos, um do lado do meu e o outro na parede oposta ao banheiro. Todos os quartos estavam apagados. Somente o banheiro estava aceso, a porta aberta e fortes sons de garganta vindos de dentro. Parei minha caminhada, a ira substituída pela preocupação. Um dilema se estabeleceu, a dúvida entre ajudar ou fingir que não percebi os barulhos de vômito. — Caroline? — Chamei, cautelosa. Era intrometida demais para ignorar uma pessoa doente. O som de vômito ecoou em resposta e eu fechei os olhos, encostei-me na parede ao lado do banheiro e perguntei: — Precisa de ajuda? Posso te comprar um remédio ou sei lá. Caroline não se importou em verbalizar a resposta. O não foi colocado nas entrelinhas através do estrondo da porta ao se chocar contra a fechadura, jogando o corredor na escuridão completa. Respirei fundo, impotente. Queria ajudá-la. — Se precisar de alguma coisa — falei, a voz alta para que ela ouvisse — estarei no meu quarto. Quando mais uma vez minha colega não respondeu, meu único alívio foi o miado do Barriguinha vindo do meu quarto, anunciando que não havia fugido. ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ Os primeiros indícios do dia chegaram e estava exausta, a visão turva e os ombros doloridos. A madrugada se esticou entre bisbilhotadas no quarto da minha colega e considerações finais feitas na pesquisa. Ao finalmente encerrar o trabalho, enviei todo o material para o meu e-mail. Devia encaminhá-lo para o tutor, mas precisava revisar com mais calma quando estivesse descansada. O sono era o inimigo da ortografia e eu não podia correr o risco de errar em coisas tão triviais. O relógio no canto da tela do meu Notebook indiciou minutos antes das cinco da manhã. Eu soube imediatamente que aquele não seria um dia fácil; não havia sobrado tempo para dormir. Tropeçando nos meus próprios pés, fui até a cozinha passar café. Caroline havia limpado toda a sujeira causada pelo vômito. Eu devia estar muito entretida com o trabalho para não ouvir a limpeza — uma rápida olhadela pelo apartamento indicava que ela não havia deixado nenhum rastro de vômito para contar história. Incomodada por não ter sido tão útil, deixei o café da manhã dela por cima da mesa. Ao lado do lanche, anotei o número do meu celular para o caso de precisar de ajuda. ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ A aula de Microbiologia Veterinária passou como um borrão. Esforcei-me para não dormir, vez ou outra beliscando meu pulso com força para manter os olhos abertos. Como sempre fazia em dias como aquele, deixei o celular gravando a voz do professor. Mesmo com Wallace ao lado, ele nunca me ajudaria com anotações — ficava ocupado demais com as notificações dos aplicativos de namoro. Agraciada com o fim do horário, despedi-me do meu melhor amigo. Ele me deu dois beijos na bochecha e disse que tinha um encontro com o crush da nossa sala. — Isso explica o porquê não me perturbou hoje — resmunguei, fingindo chateação. Alheio ao meu teatro, Wallace deu as costas e um tchauzinho apressado. — Não quero me atrasar, amiga. Depois te pago um café. Revirando os olhos, coloquei-me a andar em passos lentos até a cafeteria lateral ao campus. Vitória estava novamente com o delineado perfeito. Ela tinha o cabelo castanho-escuro preso em um r**o de cavalo bem alto. Ao me ver, a menina corou alguns tons rosados. — Bom dia, Vi. — Sorri, cansada. — O mesmo de sempre, certo? Ela assentiu e murmurou um tímido bom dia. Despejando meu material por cima da mesa, completei o ritual diário de me derrubar ali e estremecer com o frio do ar-condicionado. Espero que ele não venha hoje, pensei. Tudo o que não precisava era uma nova interação com o professor Amaldiçoado pela Beleza. Já era sorte demais que ninguém tivesse visto no dia anterior. Antes de começar as correções, encostei-me no acolchoamento e olhei para o teto branco da cafeteria. O cansaço ameaçava minha sanidade, pintando tentáculos de escuridão no canto dos meus olhos. Pisquei uma, duas, três vezes. Na terceira vez, os tentáculos de escuridão me tomaram por inteira, e eu apenas fui com eles para aquele abismo de descanso tão confortável. Quando abri os olhos novamente, os tentáculos haviam ido embora. O ambiente cheirava a café, camomila e perfume amadeirado. O teto era novamente branco e tudo estava calmo. Levantei os braços suavemente, tendo a impressão letárgica de que algo me cobria. Algo cheiroso, macio e grande. Olhei para baixo. Um casaco preto e masculino cobria meus braços, social demais para pertencer a um aluno. O cheiro amadeirado subia dali, alcançando minhas narinas como se tudo fosse parte de um sonho estranho. Franzi a testa. Na frente da minha tela, um dos meus post-its estava colado. Nele, letras maravilhosamente desenhadas deduravam o dono do casaco: Fiz as correções necessárias. Livre-se dessa pesquisa e durma.  Atenciosamente, Seu professor favorito.
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