O Encontro

2139 Words
Apesar da aflição em meu coração, o dia foi calmo. O cochilo na cafeteria garantiu energia o suficiente para lidar com as horas posteriores. Tive tempo para entregar minha pesquisa na breve reunião dos outros integrantes, a imagem perturbadora do post-it rosa pendurado na tela perseguindo meus pensamentos, vez ou outra me tirando do sério. Seu professor favorito, havia escrito Dante. Quem pôs na cabeça daquele homem que eu sequer gostava dele? A didática das aulas, embora impecável, era sempre interrompida por comentários óbvios das alunas apaixonadas. Era uma tortura ver tão claramente como mulheres poderiam ser convencidas por um rostinho bonito. O que era toda aquela recente aproximação da parte dele? Amargurava o ego do lindo professor uma aluna não gostar dele? — Professor favorito uma ova — sussurrei, a raiva tornando meu sussurro um rosnado. Se era atenção o que ele queria, poderia esperar sentado. E ainda assim, ali estava eu, de pé na lavanderia, colocando o casaco dele para lavar junto com minhas calcinhas. Não tinha formulado um plano de como entregaria aquela peça de roupa para ele, mas arrumaria um jeito. Precisava apagar os rastros que ele deixava se não quisesse me tornar vítima de comentários impróprios. Pelo menos de um homem irritante tinha me livrado; Vitor tinha faltado estágio, o que não era incomum vindo dele. Gostaria de acreditar que a consciência pesou depois de ter sido rude, mas não achava que ele tinha a capacidade de sentir peso na consciência. Homens como ele só pensavam em frivolidades. Precisava me livrar daqueles dois. E logo. — Diana? — Caroline interrompeu meus pensamentos. Estremeci o sabão líquido no medidor que eu segurava, assustada com a aproximação da minha colega de apartamento. Ouvir a voz dela era como ouvir o fantasma que vagava pelos cômodos finalmente abrir a boca. Fingi calmaria, colocando o sabão no compartimento enquanto respondia com hum? — Queria te pedir desculpas por ontem — disse ela, a voz baixa. Parecia constrangida e eu achei melhor não olhar na direção dela e deixá-la ainda mais desconfortável. — Só não queria que me visse vomitando. É nojento. Fechei lentamente o compartimento e a tampa da máquina. Sem muito o que fazer para dar espaço a ela, passei a fingir que estava escolhendo a programação correta. — Tá tudo bem — respondi, e fui sincera. — Também não gosto que me vejam vomitando. Caroline soltou um longo suspiro. — Eu sei que não tem muito espaço no apê, mas queria te pedir uma coisa. Você não vai gostar. Olhei para ela, repentinamente entrando na defensiva. Ela estava na divisória da porta, os braços cruzados em um metro e setenta de autoridade. Percebi que a pele ainda estava pálida naquele rosto cor de oliva — ela não tinha se recuperado da desidratação que veio depois dos vômitos. Embora não estivesse com vontade de conversas desconfortáveis, assenti, incentivando-a a prosseguir. Caroline desviou os olhos para não ter que me encarar enquanto falava: — Quero te pedir para tirar a caixa do seu gato do banheiro. Fico enjoada só de sentir o cheiro. Franzi a testa, considerando. Entendia o pedido dela, também não achava a coisa mais higiênica do mundo, porém sentir enjoo com cheiro me remetia apenas uma coisa. — Sabe que não é da minha conta, mas... — Parei de falar, cautelosa. Não tinha um jeito fácil de fazer aquela pergunta, principalmente com tão pouca proximidade. Trocando os pés e me apoiando na máquina, senti-me muito invasiva. — Você fez um teste de gravidez? Um silêncio estarrecedor estabeleceu-se. Caroline não parecia ter planejado aquela conversa. Eu conhecia pouco a respeito dela, o suficiente para saber que também era uma aluna muito dedicada. Sem o apoio da família, Caroline custeava todo o processo acadêmico, assim como eu. Ela estava quase completando o curso de Odontologia e era uma aluna exemplo no departamento dela. Uma gravidez poderia ser uma bênção caso estivesse pronta para tal, o que eu duvidava que estivesse naquele momento. E, pela expressão preocupada no rosto dela, percebi que ela tampouco se sentia confortável com aquilo. — Estou com medo do resultado — admitiu Caroline por fim. Lágrimas inundaram os olhos castanho-escuros dela. A visão daquelas lágrimas pesou em meu coração, e eu teria corrido para abraçá-la se não fôssemos duas estranhas. — Imagino que sim — falei, triste. Ela soluçou e eu desviei os olhos novamente. — Nesse caso, porém, manter a ignorância pode prejudicar sua saúde. Caroline fungou. — Eu sei. É só... Ela parou de falar, o choro impedindo que continuasse. — Difícil — completei. Voltando a encará-la, caminhei a passos largos até ela e a segurei pelos ombros. — Vou te ajudar no que puder. Conte comigo. Em resposta, Caroline me abraçou como se sua vida dependesse disso. ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ Fazia tempo que eu não me via tão bem na frente do espelho. Minhas olheiras estavam mais claras, quase imperceptíveis, e o cabelo castanho-claro escorria em cascata pelas minhas laterais. As pontas estavam avermelhadas, queimadas pelo sol, e o cumprimento passava da cintura. Dois anos se passaram desde a última vez que cortei as madeixas — o dinheiro nunca sobrava para investir na aparência. Estava vestindo uma camisa social rosa clara de mangas curtas, calça jeans azul clara e tênis branco. Não tinha o costume de usar roupas casuais, limitando-me a comprar o que poderia usar para estágio e entrevista de emprego. Aquelas roupas me faziam parecer um pouco mais velha, coisa que eu gostava. Evitava o desconforto de lidar com jovens chatos como Vitor. Com a pesquisa completa, estabeleci a meta de dormir bastante para acordar bem. Precisava estar mentalmente preparada para comprar um teste de gravidez para Caroline e entregar o casaco do meu detestável professor. Livre-se dessa pesquisa e durma, Dante havia pedido. Suspirei em alto e bom som. Só podia torcer para ele não pensar que fiz aquilo a pedido dele. ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ — Amiga, rolou — Wallace contou, empolgado. Sentado ao meu lado e enquanto o professor não chegava, sussurrou em meu ouvido: — Ele fez tudo. Pisquei, surpresa. Era raro um crush dele correspondê-lo. O rapaz do cabelo enrolado que havia saído com ele para o encontro não parecia o tipo que corresponderia tão fortemente aos sentimentos do meu melhor amigo. — Então vocês estão namorando? — Questionei-o, sorrindo de orelha a orelha. — Fico tão feliz por você. Wallace balançou as mãos, dispensando meu comentário. — Você é muito precipitada, Diana. Eu quis dizer que fomos para cama. Ainda mais surpresa, levei a mão até a boca, cobrindo-a. — Mas já? Wallace assentiu, sorridente. — Ele estava apressado. Parecia estar na seca. Balancei a cabeça, assentindo. Não queria fazer comentários negativos quando meu amigo estava tão feliz, mas achei tudo muito apressado. Uma semana antes os dois não tinham sequer conversado e no primeiro encontro fizeram tudo? Aquilo não poderia acabar bem. Como se adivinhasse ser o foco da conversa, o rapaz adentrou a sala. Ele parecia radiante, a pele renovada e o cabelo hidratado. Os olhos vagavam por todo o ambiente, jamais encontrando Wallace — o que quer que passava na cabeça dele, não tinha nada a ver com o homem ao meu lado. — É impressão minha ou ele nem olhou na minha cara? — Wallace sussurrou, a voz apreensiva. — Ele vai fazer a linha difícil? Um dos meus maiores defeitos era não conseguir disfarçar o que estava pensando. Sempre incisiva, raramente conseguia guardar para mim as verdades duras que não deveria dizer em voz alta. Não foi por maldade que me inclinei para Wallace, explicando: — Essa não é a linha difícil. É a linha de quem finge ser hétero. Observei meu melhor amigo prender a respiração. — Fui mais uma vez capturado por um enrustido. Assenti. — Provavelmente. A decepção ficou óbvia nele. Os ombros caídos, os olhos marejados e a boca repuxada para baixo. Decepções amorosas não eram novidade para Wallace, mas ele sempre ficava igualmente destruído. Dei-lhe tapinhas nas costas, consolando-o. A aula foi um martírio. Wallace parecia prestes a chorar e eu não parava de pensar em Caroline. Tinha comprado para ela o teste de gravidez entre as paradas do meu ônibus e guardado junto com o casaco do professor, o único lugar que achei para escondê-lo. Ambos estavam em uma sacola de papel reciclável que eu usava quando fazia compras depois das aulas, eliminando suspeitas de forma tão eficaz que nem mesmo Wallace se incomodou em olhar duas vezes para o que eu tinha nas mãos. Ao terminar a aula, perguntei à professora da disciplina onde poderia encontrar Dante. Usei a desculpa de precisar entregar a ele uma atividade atrasada e ela, jamais duvidando de sua excepcional aluna, indicou-me a biblioteca, onde Dante estaria selecionando o material da próxima aula. Caminhei pelos corredores lotados de alunos indo embora. A nova remessa de estudantes seria uma bagunça, entrando enquanto os outros saiam e andando apressadamente para as salas de aula. Aquele seria o momento perfeito para interceptar o professor na biblioteca e entregar uma peça de roupa sem levantar suspeitas. O ar-condicionado da biblioteca atingiu meu corpo em cheio, arrepiando-me. Prateleiras cor de bege inundaram minha visão, repletas dos diversos títulos das áreas de atuação. O cheiro dos livros me levou ao paraíso dos meus dias de adolescente, quando eu tinha tempo para optar por leituras que fossem do meu gosto e não as obrigatórias. Nostálgica, andei lentamente por entre as prateleiras. Queria poder frequentar aquele ambiente com maior frequência, ter o tempo que os outros alunos tinham para me dedicar ao que eu gostava. Os livros já foram meu abrigo, páginas de fantasia tirando meus pés da realidade quando se tornava dolorosa demais para encará-la. — Diana. Em algum momento, tinha parado na frente da prateleira dos clássicos lidos pelos alunos de Letras e segurado Orgulho e Preconceito. Minhas mãos estavam lá, acariciando as maravilhosas páginas, e eu não teria me dado conta de como imergi e fugi do meu propósito se não tivesse ouvido a voz dele. O corpo dele estava tão próximo que eu podia sentir o calor. — Professor. Virei-me para ele, nossos rostos pouco mais de quinze centímetros de distância. Quando ele tinha chegado tão perto? Os profundos olhos azuis desceram pelo meu rosto, procurando por algo. Ele respirou fundo e eu senti o hálito de hortelã. Havia um nó em minha garganta, a saliva difícil de engolir. O que está acontecendo comigo? Quando ele olhava para baixo, para mim, o cabelo escuro caía sobre os olhos dele, camuflando-o em milhares de sentimentos que eu não saberia desvendar. Ele poderia estar com raiva e eu não saberia dizer, perdida em mil versões daquilo que aquele homem representava. Aquele era meu professor, e ele era absurdamente lindo. — Estava me procurando? — Dante questionou, os olhos voltando aos meus. Assenti, tentando com todas as forças recuperar os sentidos. — Quero te entregar o casaco — anunciei, levantando a bolsa no meu pulso. Respirando fundo, acrescentei: — E quero te agradecer. Ele ergueu uma daquelas sobrancelhas escuras e bem desenhadas. — Você quer encerrar seus assuntos comigo — constatou. Assenti novamente. — Uma aluna e um professor não devem dividir uma mesa e ajuda como se fossem... — Limpei a garganta, procurando uma palavra certa. Soltei um longo suspiro. — Como se fossem amigos. Algo brilhou nos olhos dele, escurecendo-os. — Entendo — disse ele. A proximidade entre nós me incomodava. O ar parecia quente mesmo que estivesse frio e o hálito dele estava tão próximo que tudo o que falávamos parecia confidencial, errado e terrivelmente íntimo. Afastei-me, as costas encostando na prateleira atrás de mim. Os olhos dele me acompanharam, seguindo-me conforme eu me afastava. Pavor tomou conta de mim quando ele se inclinou, aproximando-se mais do que antes, encurralando-me. — Dante — sussurrei, o rosto dele pouco menos que dez centímetros de distância. Ele respirou profundamente. — Você me frustra — desabafou Dante. Finalmente compreendi o que havia na expressão dele. Aquele era o olhar de um homem apreensivo, atordoado. Havia desespero ali no fundo, e meu coração errou uma batida quando percebeu que eu era a origem de tudo aquilo. — Mas por quê? — Questionei-o, minha voz um sopro. Dante abriu a boca para falar, mas as palavras ficaram suspensas nos lábios dele, confundidas com o som de algo se chocando no chão. O ar frio agarrou com força o meu corpo conforme o professor se afastava, abaixando-se para pegar o que eu tinha deixado cair. Toda a minha consciência ameaçou me abandonar, perdida na visão que se prosseguiu: Dante ergueu em seus dedos o teste de gravidez lacrado da Caroline, a expressão novamente ilegível ao se dar conta do que segurava.
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