A Confissão à Mãe

1226 Words
Voltar à casa da minha mãe foi como abrir uma ferida antiga. A porta rangia da mesma forma, o cheiro de bolo recém-assado ainda morava nas paredes, mas eu já não era a mesma menina que saiu dali pra se casar com um estranho. Agora, dentro de mim, batia outro coração. E eu não sabia se tinha forças pra enfrentar o que viria. Minha mãe me recebeu com o mesmo abraço de sempre — aquele que apertava o corpo e parecia tentar colar os pedaços da alma. — Eu sabia que voltaria — disse ela, baixinho. — Sempre volta quando está prestes a cair. — Talvez porque seja o único lugar onde ainda posso respirar. Ela me olhou com ternura e tristeza. — Está pálida, filha. Não está se alimentando direito? Sentei no sofá e passei a mão pelo rosto. — Não é isso. É tudo. — Tudo o quê? Suspirei. A garganta travou. Mas, pela primeira vez, decidi não esconder. — Eu preciso te contar a verdade. Toda ela. Ela se sentou ao meu lado, atenta, as mãos entrelaçadas às minhas. — Pode confiar em mim, Isabella. Sempre pôde. Engoli o nó na garganta e comecei. — O pai… — a voz saiu trêmula. — Ele roubou o homem errado. — Como assim? — O senhor Leonardo Valença. Um CEO poderoso. Descobriu o desvio e ameaçou mandá-lo pra prisão. O espanto nos olhos dela foi imediato. — Meu Deus… — E então o pai fez o impensável. Me ofereceu em troca. Ela levou a mão à boca. — Não… não pode ser. — Foi. Ele me vendeu pra evitar a cadeia. As lágrimas começaram a descer. Eu não tentei contê-las. — No início, achei que Leonardo só queria vingança. — Continuei. — Mas, aos poucos, percebi que ele queria mais. Controle. Orgulho. Talvez até redenção, mas do jeito dele: c***l. Minha mãe me olhava como se tentasse juntar as peças de um pesadelo. — Meu Deus… minha filha… — murmurou. — E você…? — Casei. Contra a minha vontade. Sem amor, sem escolha. Ela chorou, silenciosa, apertando minha mão com força. — Você devia ter me contado antes. — Eu tinha vergonha. E medo. — Medo dele? — De tudo. De que o mundo me julgasse por aceitar. — Aceitar o quê? — A prisão disfarçada de casamento. O silêncio se espalhou entre nós como neblina. Apenas o som distante do relógio preenchia o ar. Por um momento, desejei que ela gritasse, me chamasse de louca, dissesse que eu devia ter fugido. Mas, em vez disso, ela fez o que sempre fez: me acolheu. — Você foi corajosa, filha. — Não fui. — Enxuguei as lágrimas. — Fui covarde. — Não. Covarde é quem destrói os outros pra se salvar. Você só tentou sobreviver. As palavras dela me atingiram como um abraço que cura e dói ao mesmo tempo. — E agora? — perguntou, suave. — O que vai fazer? — Eu estou grávida, mãe esqueceu? Ela respirou fundo, tentando conter o choro. — Eu sei. — Filha! — O olhar de uma mãe reconhece o de outra. Meus olhos marejaram. — Eu não sei o que fazer. Ele não vai querer. — Talvez não agora. — Ele odeia fraquezas. — E desde quando um filho é fraqueza? — Pra ele, tudo que não controla é uma ameaça. Ela segurou meu rosto com as duas mãos. — Então mostre que essa criança não nasceu pra ser controlada. — Não é tão simples. — Nunca é. Mas o amor também não é. O silêncio voltou. A única coisa que se ouvia era o som do vento batendo na janela. — E você, filha… o que sente por ele? Fechei os olhos, tentando encontrar a resposta que me atormentava. Mas as palavras vieram antes da razão. — Eu o odeio. — E? — E… o amo também. Ela não pareceu surpresa. Apenas assentiu, com um leve sorriso triste. — O amor e o ódio moram na mesma casa, Isabella. Às vezes, um dorme no quarto do outro sem perceber. Sorri, amarga. — A casa está pegando fogo, mãe. — Então descubra o que quer salvar das chamas. Essas palavras ficaram presas em mim. Ela se levantou, foi até a cozinha e voltou com um copo de leite. — Beba. É o que posso fazer agora: cuidar de você como antes. — Eu não mereço tanto. — Merece mais. Tomei o leite em silêncio. Por alguns minutos, voltamos a ser apenas mãe e filha. Sem segredos, sem culpas, sem mágoas. E foi nesse breve instante de paz que percebi o quanto precisava dela. — Mãe… — murmurei. — E se ele me rejeitar? Ela suspirou. — Então você o deixará viver com o peso disso. — E se ele quiser tirar o bebê de mim? — Ele pode tirar tudo de você, menos o amor que sente por esse filho. Toquei o ventre de novo, devagar. — Já amo, mãe. Mesmo com medo, já amo. Ela sorriu entre lágrimas. — E é esse amor que vai te guiar. Quando o céu começou a escurecer, me levantei. Precisava ir. Mas, dessa vez, não como quem foge. Como quem decide. Antes de sair, ela segurou minha mão. — Filha, prometa uma coisa. — O quê? — Que, aconteça o que acontecer, vai se proteger. Não deixe esse homem apagar a mulher que você é. Assenti, engolindo o choro. — Prometo. — E, se ele te magoar de novo, não hesite em voltar pra casa. Sempre haverá um quarto esperando por você aqui. Abracei-a com força. — Obrigada por ainda me amar, mesmo depois de tudo. — É fácil te amar, Isabella. Difícil é te ver sofrer. Saí antes que as lágrimas voltassem. O caminho de volta pra mansão pareceu interminável. Cada lembrança da conversa com minha mãe ecoava como uma batida no peito. As palavras dela, tão simples, carregavam o peso de uma decisão que eu não podia mais adiar. Eu precisava contar. Cheguei em casa e encontrei a mansão às escuras. Ele ainda não tinha voltado. Talvez o universo me desse essa última trégua antes da tempestade. Sentei na cama e escrevi no diário: Hoje, pela primeira vez, falei a verdade em voz alta. Não sou mais a menina que meu pai vendeu. Sou uma mulher, e dentro de mim cresce algo que ele não pode controlar. Talvez o medo nunca passe, mas o amor é maior do que o medo. Fechei o caderno e olhei pro espelho. O reflexo mostrava alguém que começava a se reconhecer outra vez. Peguei a chave do colar que Leonardo havia me dado no dia do casamento — a mesma que um dia simbolizou prisão. Apertei entre os dedos e sussurrei: — Amanhã, eu conto. O vento soprou pela janela, como se o mundo lá fora tivesse ouvido a promessa. E, pela primeira vez, não senti medo. Senti coragem. Coragem de encarar o homem que me destruiu, e talvez, de alguma forma, me salvou também. Do lado de fora, a chuva começava a cair de novo. E eu sabia: o destino estava se preparando pra mais uma batalha. Mas, dessa vez, eu não lutaria só por mim. Lutaria por nós dois. Por mim. E pelo pequeno coração que já batia dentro de mim, lembrando que a vida sempre encontra um jeito de recomeçar.
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