Voltar à casa da minha mãe foi como abrir uma ferida antiga.
A porta rangia da mesma forma, o cheiro de bolo recém-assado ainda morava nas paredes, mas eu já não era a mesma menina que saiu dali pra se casar com um estranho.
Agora, dentro de mim, batia outro coração.
E eu não sabia se tinha forças pra enfrentar o que viria.
Minha mãe me recebeu com o mesmo abraço de sempre — aquele que apertava o corpo e parecia tentar colar os pedaços da alma.
— Eu sabia que voltaria — disse ela, baixinho. — Sempre volta quando está prestes a cair.
— Talvez porque seja o único lugar onde ainda posso respirar.
Ela me olhou com ternura e tristeza.
— Está pálida, filha. Não está se alimentando direito?
Sentei no sofá e passei a mão pelo rosto. — Não é isso. É tudo.
— Tudo o quê?
Suspirei. A garganta travou. Mas, pela primeira vez, decidi não esconder.
— Eu preciso te contar a verdade. Toda ela.
Ela se sentou ao meu lado, atenta, as mãos entrelaçadas às minhas.
— Pode confiar em mim, Isabella. Sempre pôde.
Engoli o nó na garganta e comecei.
— O pai… — a voz saiu trêmula. — Ele roubou o homem errado.
— Como assim?
— O senhor Leonardo Valença. Um CEO poderoso. Descobriu o desvio e ameaçou mandá-lo pra prisão.
O espanto nos olhos dela foi imediato. — Meu Deus…
— E então o pai fez o impensável. Me ofereceu em troca.
Ela levou a mão à boca. — Não… não pode ser.
— Foi. Ele me vendeu pra evitar a cadeia.
As lágrimas começaram a descer. Eu não tentei contê-las.
— No início, achei que Leonardo só queria vingança. — Continuei. — Mas, aos poucos, percebi que ele queria mais. Controle. Orgulho. Talvez até redenção, mas do jeito dele: c***l.
Minha mãe me olhava como se tentasse juntar as peças de um pesadelo.
— Meu Deus… minha filha… — murmurou. — E você…?
— Casei. Contra a minha vontade. Sem amor, sem escolha.
Ela chorou, silenciosa, apertando minha mão com força.
— Você devia ter me contado antes.
— Eu tinha vergonha. E medo.
— Medo dele?
— De tudo. De que o mundo me julgasse por aceitar.
— Aceitar o quê?
— A prisão disfarçada de casamento.
O silêncio se espalhou entre nós como neblina.
Apenas o som distante do relógio preenchia o ar.
Por um momento, desejei que ela gritasse, me chamasse de louca, dissesse que eu devia ter fugido.
Mas, em vez disso, ela fez o que sempre fez: me acolheu.
— Você foi corajosa, filha.
— Não fui. — Enxuguei as lágrimas. — Fui covarde.
— Não. Covarde é quem destrói os outros pra se salvar. Você só tentou sobreviver.
As palavras dela me atingiram como um abraço que cura e dói ao mesmo tempo.
— E agora? — perguntou, suave. — O que vai fazer?
— Eu estou grávida, mãe esqueceu?
Ela respirou fundo, tentando conter o choro. — Eu sei.
— Filha!
— O olhar de uma mãe reconhece o de outra.
Meus olhos marejaram.
— Eu não sei o que fazer. Ele não vai querer.
— Talvez não agora.
— Ele odeia fraquezas.
— E desde quando um filho é fraqueza?
— Pra ele, tudo que não controla é uma ameaça.
Ela segurou meu rosto com as duas mãos.
— Então mostre que essa criança não nasceu pra ser controlada.
— Não é tão simples.
— Nunca é. Mas o amor também não é.
O silêncio voltou.
A única coisa que se ouvia era o som do vento batendo na janela.
— E você, filha… o que sente por ele?
Fechei os olhos, tentando encontrar a resposta que me atormentava.
Mas as palavras vieram antes da razão.
— Eu o odeio.
— E?
— E… o amo também.
Ela não pareceu surpresa. Apenas assentiu, com um leve sorriso triste.
— O amor e o ódio moram na mesma casa, Isabella. Às vezes, um dorme no quarto do outro sem perceber.
Sorri, amarga. — A casa está pegando fogo, mãe.
— Então descubra o que quer salvar das chamas.
Essas palavras ficaram presas em mim.
Ela se levantou, foi até a cozinha e voltou com um copo de leite.
— Beba. É o que posso fazer agora: cuidar de você como antes.
— Eu não mereço tanto.
— Merece mais.
Tomei o leite em silêncio.
Por alguns minutos, voltamos a ser apenas mãe e filha.
Sem segredos, sem culpas, sem mágoas.
E foi nesse breve instante de paz que percebi o quanto precisava dela.
— Mãe… — murmurei. — E se ele me rejeitar?
Ela suspirou. — Então você o deixará viver com o peso disso.
— E se ele quiser tirar o bebê de mim?
— Ele pode tirar tudo de você, menos o amor que sente por esse filho.
Toquei o ventre de novo, devagar.
— Já amo, mãe. Mesmo com medo, já amo.
Ela sorriu entre lágrimas.
— E é esse amor que vai te guiar.
Quando o céu começou a escurecer, me levantei.
Precisava ir.
Mas, dessa vez, não como quem foge.
Como quem decide.
Antes de sair, ela segurou minha mão.
— Filha, prometa uma coisa.
— O quê?
— Que, aconteça o que acontecer, vai se proteger. Não deixe esse homem apagar a mulher que você é.
Assenti, engolindo o choro. — Prometo.
— E, se ele te magoar de novo, não hesite em voltar pra casa. Sempre haverá um quarto esperando por você aqui.
Abracei-a com força.
— Obrigada por ainda me amar, mesmo depois de tudo.
— É fácil te amar, Isabella. Difícil é te ver sofrer.
Saí antes que as lágrimas voltassem.
O caminho de volta pra mansão pareceu interminável.
Cada lembrança da conversa com minha mãe ecoava como uma batida no peito.
As palavras dela, tão simples, carregavam o peso de uma decisão que eu não podia mais adiar.
Eu precisava contar.
Cheguei em casa e encontrei a mansão às escuras.
Ele ainda não tinha voltado.
Talvez o universo me desse essa última trégua antes da tempestade.
Sentei na cama e escrevi no diário:
Hoje, pela primeira vez, falei a verdade em voz alta.
Não sou mais a menina que meu pai vendeu.
Sou uma mulher, e dentro de mim cresce algo que ele não pode controlar.
Talvez o medo nunca passe, mas o amor é maior do que o medo.
Fechei o caderno e olhei pro espelho.
O reflexo mostrava alguém que começava a se reconhecer outra vez.
Peguei a chave do colar que Leonardo havia me dado no dia do casamento — a mesma que um dia simbolizou prisão.
Apertei entre os dedos e sussurrei:
— Amanhã, eu conto.
O vento soprou pela janela, como se o mundo lá fora tivesse ouvido a promessa.
E, pela primeira vez, não senti medo.
Senti coragem.
Coragem de encarar o homem que me destruiu, e talvez, de alguma forma, me salvou também.
Do lado de fora, a chuva começava a cair de novo.
E eu sabia: o destino estava se preparando pra mais uma batalha.
Mas, dessa vez, eu não lutaria só por mim.
Lutaria por nós dois.
Por mim.
E pelo pequeno coração que já batia dentro de mim, lembrando que a vida sempre encontra um jeito de recomeçar.