O Choque de Dois Mundos

1332 Words
A chuva da madrugada ainda caía quando abri os olhos. O quarto estava frio, o ar parado, e o silêncio só me lembrava de uma coisa: o inferno tinha endereço, e eu morava nele. A lembrança do jantar voltou como uma ferida aberta — o olhar dele, o tom de voz, a humilhação disfarçada de elegância. Mas o que mais doía não era o que ele dissera. Era o que eu deixara escapar: que, por um momento, eu ainda sentia algo quando ele me olhava. Levantei devagar, o corpo cansado e a cabeça cheia. Vesti um casaco e fui até a janela. Lá embaixo, vi o carro dele estacionado. Estava em casa. A raiva voltou como um soco no estômago. — Perfeito — murmurei. — O rei voltou pro seu castelo. Desci as escadas e encontrei Leonardo na sala, de costas, olhando pela janela. A camisa branca dobrada nos antebraços, o cabelo molhado da chuva. Parecia uma pintura feita pra provocar contradições. — Vejo que sobreviveu ao jantar — falei, cruzando os braços. — E vejo que ainda acha que venceu alguma coisa — respondeu sem se virar. — Eu não preciso vencer. Só preciso continuar de pé. — Orgulho — ele disse, finalmente virando-se pra mim. — O seu maior talento. — E o seu maior medo, talvez. — Medo? — Ele riu baixo. — Eu não tenho medo de nada. — Não? — Dei um passo à frente. — Então por que vive trancado dentro de uma casa onde tudo é perfeito, menos as pessoas? O olhar dele mudou. Por um instante, o controle escorregou. Mas logo voltou. — Cuidado, Isabella. Está começando a confundir coragem com imprudência. — E o senhor confunde poder com amor. Ele estreitou os olhos. — Amor é uma palavra que não existe aqui. — Não ainda — corrigi. Por um segundo, nossos olhares se prenderam. O som da chuva lá fora misturado ao silêncio entre nós fez o tempo parar. Ele respirou fundo, desviou o olhar e caminhou até o bar. — Quer café? — perguntou, como se nada tivesse acontecido. — O senhor faz café pra todas as mulheres que tenta controlar? — Só pras que me irritam. — Então deve viver na cozinha. Ele se virou, com o copo de café nas mãos e um meio sorriso. — Você tem respostas pra tudo, não é? — Só pra quem merece ouvir. — E eu mereço? — Ainda estou decidindo. O dia seguiu arrastado, tenso. Ele passou a manhã no escritório, e eu aproveitei pra andar pela casa. Cada sala era uma mistura de luxo e solidão. Era como se a mansão inteira respirasse o mesmo ar gelado que ele. No fim da tarde, decidi sair pro jardim. O cheiro de terra molhada me fez lembrar de casa, dos dias em que as coisas eram simples. Por um segundo, senti vontade de chorar. Mas não dei esse prazer ao destino. Estava distraída quando ouvi passos. Virei e o vi parado ali, com um guarda-chuva em uma das mãos. — Vai ficar doente — disse ele, calmo. — Prefiro ficar doente do que continuar sufocando aqui dentro. Ele caminhou até mim. — Achei que já tivesse se acostumado. — Com o cárcere? Difícil. — Eu te dei conforto, segurança... — E tirou a liberdade. Isso não é troca, é sequestro. Ele suspirou, a voz mais baixa. — Já pensou que talvez eu só esteja tentando consertar o que foi destruído? — O senhor não conserta nada, Leonardo. O senhor controla. Por um momento, o olhar dele vacilou. Havia algo ali — não era raiva, nem frieza. Era algo que eu não reconhecia nele: culpa. — Você acha que me conhece — murmurou. — Eu vejo o suficiente pra saber que o homem que grita poder é o mesmo que morre de medo de ser humano. Ele se aproximou um passo, e o ar pareceu mais pesado. — Cuidado com o que diz. — Cuidado o senhor, Leonardo. Uma hora, o controle escapa. Voltamos pra dentro. A tensão nos seguia como uma sombra. Durante o jantar, ele estava diferente. Menos arrogante, mais contido. Mas o silêncio entre nós falava alto. Em certo momento, ele largou o garfo e disse: — Eu não pedi desculpas. — Percebi. — Mas também não quero brigar. — Isso é raro. — Não se acostume. O jeito como ele falava — calmo, porém carregado de algo não dito — me deixava em alerta. Como se cada palavra fosse um campo minado. — O que o senhor quer de mim, afinal? — perguntei. Ele me olhou de frente. — Quero que cumpra seu papel. — Qual deles? Esposa de fachada ou prisioneira com maquiagem? — Quero que pare de lutar contra o inevitável. — E o inevitável é o quê? — Que um dia você vai entender por que eu fiz isso. — Não há justificativa pro que o senhor fez. Ele se inclinou levemente, os olhos fixos em mim. — Todos têm um motivo, Isabella. Até você. — O meu é sobreviver. O seu é dominar. — Talvez os dois sejam mais parecidos do que imagina. A raiva subiu. — O senhor é incapaz de sentir empatia. — E você é incapaz de ver além da própria dor. As palavras dele me atingiram mais do que eu queria admitir. Mas, em vez de responder, levantei-me. — Terminei. — Pousei o guardanapo na mesa. — Onde vai? — Pra longe do seu ego. Dei as costas e subi as escadas, sentindo o olhar dele me acompanhar até o último degrau. No quarto, tirei o vestido e fiquei parada diante do espelho. Minha imagem refletia uma mistura estranha: força e exaustão. Tudo nele parecia calculado, e eu… era o erro que ele não sabia administrar. Mas algo dentro de mim sussurrava que eu também não era a mesma. O medo tinha virado fúria, e a fúria estava virando coragem. Apaguei as luzes e deitei, mas o sono não veio. Ouvi passos no corredor — o som firme, cadenciado, que eu já reconhecia. Ele parou diante da minha porta. O coração disparou. Por um instante, achei que ele entraria. Mas não. Apenas disse, do outro lado: — Eu não sou o vilão que você quer que eu seja. Fiquei imóvel, tentando entender se era mais uma provocação ou uma confissão. — Então prove — respondi, baixo. Silêncio. Depois, o som dos passos se afastando. Na manhã seguinte, acordei com o cheiro de café vindo do andar de baixo. Desci. Ele estava na cozinha, sozinho, sem paletó, apenas com a camisa dobrada. — Bom dia — disse ele. — Isso é uma trégua ou ironia? — Um café. — Ele serviu uma xícara e empurrou pra mim. — Só isso. Olhei desconfiada. — E por que está sendo gentil de repente? — Porque ontem você me fez lembrar de algo que esqueci. — O quê? Ele me encarou. — Que ainda existem pessoas que não têm medo de mim. As palavras ficaram presas na garganta. Eu não esperava isso. Nem sabia se era verdade. — Não se engane — disse, por fim. — Eu ainda tenho medo. Só não de você. — De quê, então? — De me perder nesse jogo. Ele desviou o olhar, terminou o café e saiu, deixando-me ali, confusa, irritada… e estranhamente tocada. Passei o resto do dia pensando naquilo. O homem que eu acreditava ser feito de aço começava a mostrar rachaduras. E, de alguma forma, isso me deixava ainda mais vulnerável. O choque entre nossos mundos não era só de valores. Era de feridas. Ele escondia as dele atrás do poder; eu, atrás da raiva. E, talvez, fosse isso que nos tornava perigosamente parecidos. Olhei o reflexo na janela e disse pra mim mesma: — Que comece o próximo round. Porque, no fundo, eu sabia: a partir daquele dia, não era mais apenas sobre resistência. Era sobre descobrir o quanto de mim eu perderia tentando vencer Leonardo Valença.
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