A Noite de Chuva

1188 Words
O céu começou a fechar pouco depois que deixei a cidade. O vento mudava de direção, e as nuvens carregadas anunciavam a tempestade que viria. O rádio chiava baixinho, o limpador de para-brisa lutava contra as primeiras gotas, e eu tentava manter o foco na estrada. Mas o corpo… o corpo já não obedecia. A viagem, a emoção, o susto com minha mãe — tudo cobrava seu preço. Uma tontura leve começou a se espalhar, como se o chão dentro do carro se movesse. Toquei a barriga. — Tá tudo bem, meu amor. — murmurei, respirando fundo. — A gente já tá quase chegando. Mas o ar parecia mais pesado. O volante escorregava nas mãos suadas, e um enjoo forte me fez reduzir a velocidade. Foi então que veio a dor. Um aperto no baixo-ventre, forte, inesperado. Depois outro. E outro. O coração disparou. — Não… — sussurrei, encostando o carro no acostamento. — Não agora. A chuva engrossou. As gotas batiam no vidro com fúria, borrando tudo à frente. A respiração ficou curta. O corpo inteiro tremia. Abaixei o olhar e vi. Uma mancha escura no vestido. Sangue. O desespero me tomou inteira. — Não, por favor… não… — as lágrimas vinham junto com a dor. Peguei o celular, tentei discar o número da emergência. As mãos tremiam tanto que m*l consegui digitar. Sem sinal. Claro. A tempestade engolia tudo. Encostei a testa no volante, o corpo curvado pela cólica que cortava por dentro. O bebê se mexia, e o medo me paralisava. — Fica comigo, meu amor… por favor… fica comigo… As luzes apareceram atrás de mim — faróis se aproximando, rápidos, ofuscantes. Pisquei os olhos, tentando enxergar. O mesmo carro escuro que eu vira horas antes. O motor desligou, a porta se abriu, e uma silhueta correu na minha direção sob a chuva. Por um instante, achei que estivesse sonhando. Mas a voz… a voz era inconfundível. — Isabella! Leonardo. As mãos dele bateram no vidro, desesperadas. — Abre a porta! Tentei, mas os dedos não respondiam. Ele puxou a maçaneta com força, e o ar frio invadiu o carro. O rosto dele estava encharcado, os olhos arregalados de pavor. — Meu Deus… você tá sangrando. — Eu… — tentei falar, mas o choro sufocou. — Dói… Ele ajoelhou ao meu lado, as mãos tremendo ao tocar meu rosto. — Fica calma, Isabella. Eu tô aqui. — A voz dele quebrou. — Eu tô aqui agora. Pegou-me no colo sem pensar, me carregando até o banco do passageiro. A chuva caía pesada, e eu sentia o calor do corpo dele contra o meu. O carro arrancou em alta velocidade, os pneus cortando a água acumulada no asfalto. O som da tempestade se misturava ao dos soluços e à respiração ofegante dele. — Aguenta, por favor… — repetia, apertando minha mão. — Não desmaia. Tentei abrir os olhos, mas tudo girava. As luzes da cidade vinham e iam, borradas pela chuva e pelas lágrimas. O corpo inteiro ardia, o medo me consumia. — Eu tô com medo, Leo… — sussurrei. Ele virou o rosto rápido, os olhos marejados. — Eu sei. Mas eu não vou deixar nada acontecer. As palavras dele soaram diferentes dessa vez. Não como promessa vazia. Mas como súplica. O hospital apareceu à frente, um borrão de luzes no meio do caos. Leonardo freou bruscamente, saiu do carro antes que ele parasse completamente e gritou por ajuda. — Ela tá grávida! Tá perdendo muito sangue! Enfermeiros correram. A chuva ainda caía quando me colocaram na maca, e a última coisa que vi antes de tudo escurecer foi o rosto dele — desesperado, molhado, ajoelhado na entrada do hospital. O som do monitor cardíaco foi o primeiro que ouvi ao acordar. O quarto era branco demais. O corpo, pesado. A dor, amortecida por remédios. Tentei me mexer, mas uma enfermeira apareceu ao meu lado. — Calma, querida. — disse, com um sorriso gentil. — Tá tudo bem agora. — O bebê? — perguntei, com a voz rouca. Ela sorriu. — Tá bem. Fortinho. Vocês dois foram salvos a tempo. Fechei os olhos, e as lágrimas caíram silenciosas. Um alívio tão grande que doía. — E ele? — perguntei, hesitante. — O meu marido… Antes que ela respondesse, ouvi a voz. Baixa. Trêmula. Tão diferente de tudo que eu lembrava. — Eu tô aqui. Virei o rosto devagar. Leonardo estava encostado na parede, as roupas secas agora, mas o olhar destruído. Parecia… humano. Frágil. Dei um meio sorriso. — Achei que você tivesse desistido de me seguir. Ele respirou fundo, aproximando-se. — Eu te segui… porque não consegui mais ficar longe. Senti o coração acelerar, mesmo fraco. — E agora? Vai me culpar por quase perder o bebê também? Ele fechou os olhos, como se as palavras fossem facadas. — Não. — murmurou. — Eu só quero agradecer por não ter te perdido. Fiquei em silêncio. Havia sinceridade no olhar dele. Uma dor real, que não era fingimento. — O médico disse que foi por estresse. — continuou, com a voz embargada. — Que podia ter sido pior. — Eu sei. — E foi culpa minha. — Ele se ajoelhou ao lado da cama. — Eu causei isso. Tentei falar, mas ele continuou: — Eu te empurrei pra solidão, pra dor. E ainda assim, você lutou sozinha. Eu não mereço perdão, Isabella, mas… me deixa ficar. Só pra garantir que você e ele fiquem bem. A voz falhou no fim. Leonardo Valença — o homem que nunca tremia — estava chorando. Toquei o rosto dele com cuidado. — Você demorou pra entender o que é medo, né? Ele segurou minha mão com força. — Eu nunca senti tanto medo na vida. As lágrimas dele caíram sobre meus dedos. E pela primeira vez, não havia raiva em mim. Só cansaço. E um começo de paz. Horas depois, ele ainda estava lá. Não saiu nem quando as enfermeiras pediram. Sentou na poltrona ao lado da cama, de cabeça baixa, os olhos fixos no monitor. O som do batimento fetal enchia o quarto. O som mais bonito que eu já tinha ouvido. Ele olhou pra mim, e a voz saiu quase num sussurro: — Você e o bebê estão bem… graças a Deus. Fechei os olhos, e as lágrimas escorreram silenciosas. Aquelas palavras ecoaram por dentro, curando uma parte que eu achava perdida. O homem que um dia me destruiu agora pedia perdão sem dizer nada. E talvez… fosse só o começo. A madrugada chegou de novo. O quarto estava quieto, iluminado apenas pelo abajur. Leonardo dormia, a cabeça apoiada no braço da poltrona. Fiquei observando. O rosto cansado, o cabelo bagunçado, a barba por fazer. Pela primeira vez, vi o homem — não o CEO, não o monstro — apenas ele. Toquei o ventre, sentindo o leve movimento do bebê. — A gente assustou o papai hoje, né? — sussurrei, sorrindo fraco. — Mas acho que ele tá aprendendo o que é amor. Fechei os olhos, o som do monitor embalando meu sono. E pela primeira vez em muito tempo, não tive pesadelos. Apenas sonhos. De recomeço.
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