Orgulho e Desprezo

1370 Words
Na manhã seguinte, acordei com o som de vozes na sala de jantar. Homens. Risadas abafadas. Por um segundo, esqueci onde estava — e depois lembrei: na casa dele. Na casa do homem que chamava minha vida de contrato. Vesti o primeiro vestido que encontrei, prendi o cabelo e desci as escadas sem pressa. A cada degrau, minha vontade era de voltar pro quarto e fingir que o mundo não existia. Mas fugir não era uma opção. Não mais. Quando cheguei ao fim da escada, encontrei Leonardo sentado à cabeceira da mesa, ao lado de um homem de terno azul. Ambos riam de algo que eu, obviamente, não entenderia. — Ah, aí está ela. — Leonardo ergueu o olhar e forçou um sorriso. — Isabella, este é Renato Carvalho, meu diretor de marketing. O tal Renato levantou-se, simpático. — É um prazer conhecê-la, senhora Valença. Senhora Valença. Aquela palavra ainda soava como uma ironia. — O prazer é todo meu — respondi, o tom firme, mas frio. Sentei-me em silêncio, ciente de que os olhos de Leonardo me seguiam. A mesa estava posta com frutas, café, pães e a elegância típica de quem tem tudo e sente nada. — Isabella ainda está se adaptando à rotina da casa — disse Leonardo, sem desviar o olhar de mim. — Tem sido um processo... interessante. Eu sabia o que ele estava fazendo. Queria me provocar. Testar meus limites na frente de alguém. — Adaptar é uma palavra gentil — retruquei. — Alguns chamariam de sobrevivência. Renato riu, meio sem graça. — Casamento é sempre um desafio no começo. — Alguns casamentos — corrigi. — Outros são apenas contratos de silêncio. O olhar de Leonardo endureceu. Eu podia sentir a tensão atravessar a mesa como um raio. — Isabella — disse ele, a voz baixa, controlada. — Talvez queira se lembrar de onde está. — Estou exatamente onde o senhor me colocou. — Cruzei as pernas, fingindo calma. — Mas ainda sei quem sou. O silêncio se fez. Renato tentou mudar de assunto, comentando sobre uma reunião, mas ninguém o ouvia. Leonardo me observava, o maxilar travado, o olhar cortante. — Está de mau humor hoje, querida? — perguntou, com ironia. — Só estou cansada de ser tratada como se não tivesse voz. — Sua voz pode ser ouvida. — Ele sorriu de canto. — Só precisa aprender a usá-la no tom certo. — O tom certo, pra você, é o da obediência. — O tom certo é o da prudência. Renato pigarreou, desconfortável. — Acho que vou deixar vocês à vontade... Leonardo fez um gesto com a mão. — Fique, Renato. Não temos nada a esconder. — Pelo contrário — retruquei. — Aqui tudo é fachada. Leonardo apoiou os cotovelos na mesa, o olhar preso em mim. — Cuidado com o que diz. — Vai me punir por falar? — Eu poderia. — E o que ganharia com isso? — perguntei, firme. — Mais uma mulher calada à mesa? Renato olhou de um pro outro, perdido. — Acho que... realmente vou indo. Quando ele saiu, o silêncio foi absoluto. Leonardo pousou o guardanapo sobre a mesa e se recostou na cadeira. — Parabéns. Conseguiu constranger um dos meus diretores mais antigos. — E o senhor conseguiu provar que não sabe conviver com ninguém que não o tema. Ele se levantou devagar, veio até mim e apoiou as mãos na mesa, inclinando-se. — Está tentando me envergonhar dentro da minha própria casa? — Estou apenas devolvendo o favor. — Quer me provocar? — Quero viver. O senhor devia tentar um dia. Por um instante, pensei que ele fosse perder o controle. O olhar dele era fogo e gelo ao mesmo tempo. Mas, em vez disso, ele apenas sorriu — aquele sorriso perigoso, frio. — Está começando a aprender o jogo, Isabella. — O problema é que eu não jogo pra perder. Ele se endireitou, ajeitou a gravata e murmurou: — Vai acabar se machucando. — Ou te ferindo primeiro. Ele saiu sem olhar pra trás. Mas o ar da casa ficou pesado, carregado. Caminhei até a janela e respirei fundo, tentando conter o turbilhão dentro de mim. Orgulho. Desprezo. Essas duas palavras pareciam definir tudo entre nós. Eu o odiava. Odiava o jeito que ele controlava as pessoas, o modo como transformava cada frase em ameaça. Mas odiava ainda mais o fato de que, de algum modo, ele me fazia reagir. E isso o alimentava. Subi pro quarto e fechei a porta. Peguei o papel das “regras” que ainda guardava amassado no fundo da gaveta. Li cada linha e ri, amarga. — Regra número um: não sair da propriedade sem autorização. — Rasguei. — Regra número dois: não interferir nos negócios da empresa. — Rasguei também. Uma a uma, até sobrar apenas pedaços. Joguei tudo no lixo e respirei fundo. Se aquele casamento era um campo de batalha, eu não ia recuar. À tarde, ouvi o som do motor do carro dele. A curiosidade venceu. Espiei pela janela. Leonardo descia do veículo, falando ao telefone, o rosto tenso. Por um instante, ele parecia… humano. O vento bagunçava o cabelo dele, e o sol da tarde desenhava contornos que me irritavam. Ninguém tão frio devia ser tão bonito. Desviei o olhar, mas era tarde demais. Ele levantou os olhos e me viu na janela. Por um momento, ficamos assim — ele lá embaixo, eu aqui em cima, dois prisioneiros de um contrato que nem sabíamos mais se odiávamos ou temíamos. Ele ergueu o queixo num gesto discreto, como quem diz: te vi. E entrou. O jantar foi silencioso. Duas taças, duas presenças, zero palavras. Eu o observava de relance. O modo como ele cortava a carne com precisão, como se até o jantar fosse uma transação. — Está satisfeito? — perguntei, por fim. — Com o jantar? Sim. — Com o espetáculo de hoje de manhã? — Foi instrutivo. — Pra quem? — Pra mim. — Ele limpou a boca com o guardanapo. — Agora sei que preciso tomar mais cuidado com o que deixo escapar. — E o que o senhor deixou escapar? — Que você consegue me irritar mais do que qualquer pessoa. — Considere isso uma conquista. — Considere isso um risco. Ficamos nos encarando por longos segundos. O som dos talheres e do relógio na parede era o único ruído entre nós. — Acha mesmo que vai conseguir me dobrar com medo? — perguntei. — Não. — Ele pousou o copo. — Vou conseguir com paciência. — Paciência não combina com alguém que controla tudo. — Você ficaria surpresa com o quanto posso esperar. — E se eu nunca ceder? — Então viverá pra sempre com o peso da minha sombra. As palavras dele me atravessaram como lâmina. Mas não baixei o olhar. — Eu prefiro viver com a sombra do que com a vergonha de me ajoelhar. Ele se levantou. — Ajoelhar não é sempre sinal de fraqueza. Às vezes, é sobrevivência. — E às vezes, é covardia. A tensão era tão densa que eu m*l conseguia respirar. Ele deu um passo à frente, e eu permaneci imóvel. Por um segundo, pensei que ele fosse me tocar. Mas ele parou a poucos centímetros, o olhar queimando no meu. — Boa noite, Isabella. — Boa noite, senhor Valença. Ele se afastou. Subi pro quarto e fechei a porta com força. Meu corpo inteiro tremia — não de medo, mas de raiva, de adrenalina, de algo que eu não queria nomear. Fui até o espelho. O reflexo me devolveu uma mulher que já não reconhecia. Não era mais a estudante inocente que sonhava em trabalhar com arquitetura. Era alguém que aprendeu a lutar em silêncio. Olhei pro anel no dedo e pensei em tirá-lo. Mas não tirei. Não ainda. Porque parte de mim sabia que aquele símbolo era mais do que prisão. Era lembrança da promessa que fiz a mim mesma: que ele podia me humilhar, mas nunca me quebrar. E enquanto Leonardo Valença tentasse me dominar, eu o enfrentaria com o que ele mais desprezava — coragem. Naquela casa, orgulho e desprezo caminhavam lado a lado. E o nosso casamento, eu já sabia, seria uma guerra sem trégua.
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