Na manhã seguinte, acordei com o som de vozes na sala de jantar.
Homens. Risadas abafadas.
Por um segundo, esqueci onde estava — e depois lembrei: na casa dele. Na casa do homem que chamava minha vida de contrato.
Vesti o primeiro vestido que encontrei, prendi o cabelo e desci as escadas sem pressa.
A cada degrau, minha vontade era de voltar pro quarto e fingir que o mundo não existia.
Mas fugir não era uma opção.
Não mais.
Quando cheguei ao fim da escada, encontrei Leonardo sentado à cabeceira da mesa, ao lado de um homem de terno azul.
Ambos riam de algo que eu, obviamente, não entenderia.
— Ah, aí está ela. — Leonardo ergueu o olhar e forçou um sorriso. — Isabella, este é Renato Carvalho, meu diretor de marketing.
O tal Renato levantou-se, simpático. — É um prazer conhecê-la, senhora Valença.
Senhora Valença.
Aquela palavra ainda soava como uma ironia.
— O prazer é todo meu — respondi, o tom firme, mas frio.
Sentei-me em silêncio, ciente de que os olhos de Leonardo me seguiam.
A mesa estava posta com frutas, café, pães e a elegância típica de quem tem tudo e sente nada.
— Isabella ainda está se adaptando à rotina da casa — disse Leonardo, sem desviar o olhar de mim. — Tem sido um processo... interessante.
Eu sabia o que ele estava fazendo.
Queria me provocar. Testar meus limites na frente de alguém.
— Adaptar é uma palavra gentil — retruquei. — Alguns chamariam de sobrevivência.
Renato riu, meio sem graça. — Casamento é sempre um desafio no começo.
— Alguns casamentos — corrigi. — Outros são apenas contratos de silêncio.
O olhar de Leonardo endureceu.
Eu podia sentir a tensão atravessar a mesa como um raio.
— Isabella — disse ele, a voz baixa, controlada. — Talvez queira se lembrar de onde está.
— Estou exatamente onde o senhor me colocou. — Cruzei as pernas, fingindo calma. — Mas ainda sei quem sou.
O silêncio se fez.
Renato tentou mudar de assunto, comentando sobre uma reunião, mas ninguém o ouvia.
Leonardo me observava, o maxilar travado, o olhar cortante.
— Está de mau humor hoje, querida? — perguntou, com ironia.
— Só estou cansada de ser tratada como se não tivesse voz.
— Sua voz pode ser ouvida. — Ele sorriu de canto. — Só precisa aprender a usá-la no tom certo.
— O tom certo, pra você, é o da obediência.
— O tom certo é o da prudência.
Renato pigarreou, desconfortável. — Acho que vou deixar vocês à vontade...
Leonardo fez um gesto com a mão. — Fique, Renato. Não temos nada a esconder.
— Pelo contrário — retruquei. — Aqui tudo é fachada.
Leonardo apoiou os cotovelos na mesa, o olhar preso em mim.
— Cuidado com o que diz.
— Vai me punir por falar?
— Eu poderia.
— E o que ganharia com isso? — perguntei, firme. — Mais uma mulher calada à mesa?
Renato olhou de um pro outro, perdido. — Acho que... realmente vou indo.
Quando ele saiu, o silêncio foi absoluto.
Leonardo pousou o guardanapo sobre a mesa e se recostou na cadeira.
— Parabéns. Conseguiu constranger um dos meus diretores mais antigos.
— E o senhor conseguiu provar que não sabe conviver com ninguém que não o tema.
Ele se levantou devagar, veio até mim e apoiou as mãos na mesa, inclinando-se.
— Está tentando me envergonhar dentro da minha própria casa?
— Estou apenas devolvendo o favor.
— Quer me provocar?
— Quero viver. O senhor devia tentar um dia.
Por um instante, pensei que ele fosse perder o controle.
O olhar dele era fogo e gelo ao mesmo tempo.
Mas, em vez disso, ele apenas sorriu — aquele sorriso perigoso, frio.
— Está começando a aprender o jogo, Isabella.
— O problema é que eu não jogo pra perder.
Ele se endireitou, ajeitou a gravata e murmurou:
— Vai acabar se machucando.
— Ou te ferindo primeiro.
Ele saiu sem olhar pra trás.
Mas o ar da casa ficou pesado, carregado.
Caminhei até a janela e respirei fundo, tentando conter o turbilhão dentro de mim.
Orgulho. Desprezo.
Essas duas palavras pareciam definir tudo entre nós.
Eu o odiava. Odiava o jeito que ele controlava as pessoas, o modo como transformava cada frase em ameaça.
Mas odiava ainda mais o fato de que, de algum modo, ele me fazia reagir.
E isso o alimentava.
Subi pro quarto e fechei a porta.
Peguei o papel das “regras” que ainda guardava amassado no fundo da gaveta.
Li cada linha e ri, amarga.
— Regra número um: não sair da propriedade sem autorização. — Rasguei.
— Regra número dois: não interferir nos negócios da empresa. — Rasguei também.
Uma a uma, até sobrar apenas pedaços.
Joguei tudo no lixo e respirei fundo.
Se aquele casamento era um campo de batalha, eu não ia recuar.
À tarde, ouvi o som do motor do carro dele.
A curiosidade venceu. Espiei pela janela.
Leonardo descia do veículo, falando ao telefone, o rosto tenso.
Por um instante, ele parecia… humano.
O vento bagunçava o cabelo dele, e o sol da tarde desenhava contornos que me irritavam.
Ninguém tão frio devia ser tão bonito.
Desviei o olhar, mas era tarde demais.
Ele levantou os olhos e me viu na janela.
Por um momento, ficamos assim — ele lá embaixo, eu aqui em cima, dois prisioneiros de um contrato que nem sabíamos mais se odiávamos ou temíamos.
Ele ergueu o queixo num gesto discreto, como quem diz: te vi.
E entrou.
O jantar foi silencioso.
Duas taças, duas presenças, zero palavras.
Eu o observava de relance. O modo como ele cortava a carne com precisão, como se até o jantar fosse uma transação.
— Está satisfeito? — perguntei, por fim.
— Com o jantar? Sim.
— Com o espetáculo de hoje de manhã?
— Foi instrutivo.
— Pra quem?
— Pra mim. — Ele limpou a boca com o guardanapo. — Agora sei que preciso tomar mais cuidado com o que deixo escapar.
— E o que o senhor deixou escapar?
— Que você consegue me irritar mais do que qualquer pessoa.
— Considere isso uma conquista.
— Considere isso um risco.
Ficamos nos encarando por longos segundos.
O som dos talheres e do relógio na parede era o único ruído entre nós.
— Acha mesmo que vai conseguir me dobrar com medo? — perguntei.
— Não. — Ele pousou o copo. — Vou conseguir com paciência.
— Paciência não combina com alguém que controla tudo.
— Você ficaria surpresa com o quanto posso esperar.
— E se eu nunca ceder?
— Então viverá pra sempre com o peso da minha sombra.
As palavras dele me atravessaram como lâmina.
Mas não baixei o olhar.
— Eu prefiro viver com a sombra do que com a vergonha de me ajoelhar.
Ele se levantou.
— Ajoelhar não é sempre sinal de fraqueza. Às vezes, é sobrevivência.
— E às vezes, é covardia.
A tensão era tão densa que eu m*l conseguia respirar.
Ele deu um passo à frente, e eu permaneci imóvel.
Por um segundo, pensei que ele fosse me tocar.
Mas ele parou a poucos centímetros, o olhar queimando no meu.
— Boa noite, Isabella.
— Boa noite, senhor Valença.
Ele se afastou.
Subi pro quarto e fechei a porta com força.
Meu corpo inteiro tremia — não de medo, mas de raiva, de adrenalina, de algo que eu não queria nomear.
Fui até o espelho. O reflexo me devolveu uma mulher que já não reconhecia.
Não era mais a estudante inocente que sonhava em trabalhar com arquitetura.
Era alguém que aprendeu a lutar em silêncio.
Olhei pro anel no dedo e pensei em tirá-lo.
Mas não tirei.
Não ainda.
Porque parte de mim sabia que aquele símbolo era mais do que prisão.
Era lembrança da promessa que fiz a mim mesma:
que ele podia me humilhar, mas nunca me quebrar.
E enquanto Leonardo Valença tentasse me dominar, eu o enfrentaria com o que ele mais desprezava — coragem.
Naquela casa, orgulho e desprezo caminhavam lado a lado.
E o nosso casamento, eu já sabia, seria uma guerra sem trégua.