A madrugada tinha sido longa.
O corpo cansado, a alma exausta.
Mas o coração… o coração ainda batia forte, sustentado pela teimosia de quem aprendeu a sobreviver.
O som das máquinas ao meu redor era constante.
Cada bip era um lembrete de que eu ainda estava ali.
De que ele ainda estava ali.
O bebê dormia tranquilo dentro de mim — ou pelo menos era o que diziam.
Mas algo no meu corpo parecia inquieto, como se a calma fosse apenas o intervalo antes da tempestade.
Quando o relógio marcou seis da manhã, senti a primeira pontada.
Fina. Profunda.
Diferente da noite anterior.
Apertei os lençóis.
Respirei fundo, tentando ignorar.
Mas segundos depois, outra veio.
Mais forte.
O coração disparou.
— Não… por favor, não agora. — murmurei.
As lágrimas vieram sem permissão.
Eu sabia o que estava acontecendo.
O corpo tinha decidido — e não havia volta.
A enfermeira entrou, sorrindo.
— Bom dia, senhora Valença. Como está se sentindo?
— Está voltando… a dor. — respondi, entre respirações curtas.
Ela me observou por um instante, depois chamou o médico.
Em segundos, a tranquilidade do quarto virou um campo de guerra.
— Dilatação avançando. — ouvi alguém dizer.
— Parto prematuro em curso.
As palavras rodaram dentro da cabeça, mas não se fixaram em lugar nenhum.
O medo tomou tudo.
— Leonardo… — chamei, ofegante.
Ele apareceu na porta, o rosto pálido, o olhar em pânico.
— Eu tô aqui.
Veio até mim e segurou minha mão.
— Olha pra mim, Isabella. Respira, tá? Respira comigo.
As contrações voltaram, uma atrás da outra, e o corpo começou a trair a razão.
Eu queria ser forte, mas a dor era como fogo.
— Ele tá vindo… — sussurrei.
— Vai dar tudo certo. — respondeu, mas a voz tremia. — Eu prometo.
O médico falava rápido, as enfermeiras se moviam em torno de mim.
O som dos instrumentos, o ar gelado, o grito preso na garganta — tudo misturado.
— Precisamos levar pra sala de parto. — disse o médico.
— Não! — gritei. — Eu quero que ele fique comigo!
Leonardo segurou minha mão mais forte. — Eu não saio daqui.
O médico hesitou, depois assentiu. — Tudo bem. Mas mantenha a calma.
As luzes do corredor me cegaram por um instante.
O frio da maca, o som das rodas correndo — parecia um pesadelo em câmera lenta.
Leonardo andava ao lado, sem soltar minha mão.
O terno amassado, o olhar fixo em mim, como se cada respiração minha fosse a linha que o mantinha em pé.
— Eu devia ter acreditado em você desde o início. — murmurou. — Devia ter te protegido de tudo.
As lágrimas escorreram, e eu m*l consegui responder.
— Agora é tarde pra culpa. Só reza comigo, Leonardo.
E ele rezou.
Pela primeira vez.
Baixo, sincero, desesperado.
Na sala de parto, o mundo encolheu.
Havia só o som do meu coração e o dele.
O tempo parecia se esticar, como se a dor me testasse até o limite.
— Força, Isabella. — o médico dizia. — Você consegue.
Mas eu não conseguia pensar.
Cada contração era uma onda gigante, e eu só tentava não me afogar.
Leonardo se inclinou, o rosto molhado de lágrimas.
— Respira comigo, amor. Respira.
— Eu não aguento… — chorei. — Eu tô com medo.
— Eu também. — ele respondeu. — Mas se você cair, eu caio junto.
A dor explodiu.
Um grito saiu da minha garganta sem que eu quisesse.
E então, por um segundo, silêncio.
Silêncio absoluto.
O ar pareceu desaparecer.
O mundo parou.
Até que o som mais lindo que já ouvi cortou o espaço:
um choro.
Pequeno. Frágil.
Mas cheio de vida.
As lágrimas vieram com força.
O corpo tremia, o coração desabava.
Eu ri e chorei ao mesmo tempo.
— Ele… ele tá chorando…
Leonardo também chorava.
— Ele tá vivo…
O médico sorriu sob a máscara.
— É um menino.
O tempo se confundiu.
O som dos passos, dos aparelhos, da voz das enfermeiras — tudo virou um borrão.
Quando colocaram o bebê no meu peito, o mundo parou outra vez.
Ele era tão pequeno que cabia inteiro nas minhas mãos.
O rosto enrugado, os olhos fechados, a pele quente.
Toquei o rostinho com o dedo e sussurrei:
— Oi, meu amor…
Leonardo se ajoelhou ao meu lado.
O olhar dele misturava amor e arrependimento, força e fragilidade.
— Ele é perfeito. — disse, com a voz embargada.
Sorri entre lágrimas. — E é seu, Leonardo. Sempre foi.
Ele levou a mão até a minha e, com cuidado, acariciou o bebê.
As lágrimas caíam em silêncio, mas o sorriso era sincero.
As enfermeiras levaram o bebê pra incubadora.
Era necessário — ele era pequeno demais, frágil demais.
O vazio que ficou no peito foi imediato.
Mas, ao mesmo tempo, senti uma paz que há meses não sentia.
Leonardo ficou em pé, olhando o pequeno pela janela de vidro.
Os ombros dele tremiam.
Eu o observei, sem dizer nada.
E foi ali, naquele momento, que entendi:
ele também estava nascendo.
Não como pai.
Mas como homem.
Mais tarde, quando a dor cedeu e o quarto ficou em silêncio, Leonardo voltou.
Se aproximou da cama devagar, como se tivesse medo de quebrar o ar.
— Ele tá bem. — disse. — Os médicos disseram que é forte.
Assenti, cansada. — Eu sabia.
Ele puxou uma cadeira e sentou ao meu lado.
Por alguns segundos, não disse nada.
Só me olhou — como se tentasse memorizar cada pedaço do que restava de nós.
— Isabella… — começou. — Eu nunca senti tanto medo na vida.
— Agora sabe o que é amar de verdade. — respondi.
Ele sorriu com os olhos marejados. — Se amar é sentir isso, então eu nunca mais quero deixar de sentir.
O silêncio voltou, mas era leve dessa vez.
Um silêncio de paz.
Leonardo pegou minha mão e a levou aos lábios.
— Obrigado por não desistir de mim, mesmo quando eu não merecia.
— Eu não fiz por você. — sussurrei. — Fiz por ele.
Ele assentiu. — Eu sei. Mas talvez seja por ele que eu consiga ser alguém melhor.
As lágrimas caíram outra vez.
Não de dor, mas de esperança.
Quando fechei os olhos, o corpo finalmente relaxou.
Leonardo continuava segurando minha mão, os olhos fixos no pequeno reflexo do berçário ao lado.
E antes que o sono me levasse, ouvi ele sussurrar:
— Você é o maior milagre da minha vida, Isabella.
O som do monitor seguia constante.
Lá fora, o sol começava a nascer.
E eu entendi que o amor, quando renasce, vem em silêncio — do tamanho de um choro frágil, de um corpo pequeno e de um perdão que ainda não sabe o próprio nome.
Fechei os olhos e sorri.
O pior já tinha passado.
O resto… seria reconstrução.