O Parto Prematuro

1147 Words
A madrugada tinha sido longa. O corpo cansado, a alma exausta. Mas o coração… o coração ainda batia forte, sustentado pela teimosia de quem aprendeu a sobreviver. O som das máquinas ao meu redor era constante. Cada bip era um lembrete de que eu ainda estava ali. De que ele ainda estava ali. O bebê dormia tranquilo dentro de mim — ou pelo menos era o que diziam. Mas algo no meu corpo parecia inquieto, como se a calma fosse apenas o intervalo antes da tempestade. Quando o relógio marcou seis da manhã, senti a primeira pontada. Fina. Profunda. Diferente da noite anterior. Apertei os lençóis. Respirei fundo, tentando ignorar. Mas segundos depois, outra veio. Mais forte. O coração disparou. — Não… por favor, não agora. — murmurei. As lágrimas vieram sem permissão. Eu sabia o que estava acontecendo. O corpo tinha decidido — e não havia volta. A enfermeira entrou, sorrindo. — Bom dia, senhora Valença. Como está se sentindo? — Está voltando… a dor. — respondi, entre respirações curtas. Ela me observou por um instante, depois chamou o médico. Em segundos, a tranquilidade do quarto virou um campo de guerra. — Dilatação avançando. — ouvi alguém dizer. — Parto prematuro em curso. As palavras rodaram dentro da cabeça, mas não se fixaram em lugar nenhum. O medo tomou tudo. — Leonardo… — chamei, ofegante. Ele apareceu na porta, o rosto pálido, o olhar em pânico. — Eu tô aqui. Veio até mim e segurou minha mão. — Olha pra mim, Isabella. Respira, tá? Respira comigo. As contrações voltaram, uma atrás da outra, e o corpo começou a trair a razão. Eu queria ser forte, mas a dor era como fogo. — Ele tá vindo… — sussurrei. — Vai dar tudo certo. — respondeu, mas a voz tremia. — Eu prometo. O médico falava rápido, as enfermeiras se moviam em torno de mim. O som dos instrumentos, o ar gelado, o grito preso na garganta — tudo misturado. — Precisamos levar pra sala de parto. — disse o médico. — Não! — gritei. — Eu quero que ele fique comigo! Leonardo segurou minha mão mais forte. — Eu não saio daqui. O médico hesitou, depois assentiu. — Tudo bem. Mas mantenha a calma. As luzes do corredor me cegaram por um instante. O frio da maca, o som das rodas correndo — parecia um pesadelo em câmera lenta. Leonardo andava ao lado, sem soltar minha mão. O terno amassado, o olhar fixo em mim, como se cada respiração minha fosse a linha que o mantinha em pé. — Eu devia ter acreditado em você desde o início. — murmurou. — Devia ter te protegido de tudo. As lágrimas escorreram, e eu m*l consegui responder. — Agora é tarde pra culpa. Só reza comigo, Leonardo. E ele rezou. Pela primeira vez. Baixo, sincero, desesperado. Na sala de parto, o mundo encolheu. Havia só o som do meu coração e o dele. O tempo parecia se esticar, como se a dor me testasse até o limite. — Força, Isabella. — o médico dizia. — Você consegue. Mas eu não conseguia pensar. Cada contração era uma onda gigante, e eu só tentava não me afogar. Leonardo se inclinou, o rosto molhado de lágrimas. — Respira comigo, amor. Respira. — Eu não aguento… — chorei. — Eu tô com medo. — Eu também. — ele respondeu. — Mas se você cair, eu caio junto. A dor explodiu. Um grito saiu da minha garganta sem que eu quisesse. E então, por um segundo, silêncio. Silêncio absoluto. O ar pareceu desaparecer. O mundo parou. Até que o som mais lindo que já ouvi cortou o espaço: um choro. Pequeno. Frágil. Mas cheio de vida. As lágrimas vieram com força. O corpo tremia, o coração desabava. Eu ri e chorei ao mesmo tempo. — Ele… ele tá chorando… Leonardo também chorava. — Ele tá vivo… O médico sorriu sob a máscara. — É um menino. O tempo se confundiu. O som dos passos, dos aparelhos, da voz das enfermeiras — tudo virou um borrão. Quando colocaram o bebê no meu peito, o mundo parou outra vez. Ele era tão pequeno que cabia inteiro nas minhas mãos. O rosto enrugado, os olhos fechados, a pele quente. Toquei o rostinho com o dedo e sussurrei: — Oi, meu amor… Leonardo se ajoelhou ao meu lado. O olhar dele misturava amor e arrependimento, força e fragilidade. — Ele é perfeito. — disse, com a voz embargada. Sorri entre lágrimas. — E é seu, Leonardo. Sempre foi. Ele levou a mão até a minha e, com cuidado, acariciou o bebê. As lágrimas caíam em silêncio, mas o sorriso era sincero. As enfermeiras levaram o bebê pra incubadora. Era necessário — ele era pequeno demais, frágil demais. O vazio que ficou no peito foi imediato. Mas, ao mesmo tempo, senti uma paz que há meses não sentia. Leonardo ficou em pé, olhando o pequeno pela janela de vidro. Os ombros dele tremiam. Eu o observei, sem dizer nada. E foi ali, naquele momento, que entendi: ele também estava nascendo. Não como pai. Mas como homem. Mais tarde, quando a dor cedeu e o quarto ficou em silêncio, Leonardo voltou. Se aproximou da cama devagar, como se tivesse medo de quebrar o ar. — Ele tá bem. — disse. — Os médicos disseram que é forte. Assenti, cansada. — Eu sabia. Ele puxou uma cadeira e sentou ao meu lado. Por alguns segundos, não disse nada. Só me olhou — como se tentasse memorizar cada pedaço do que restava de nós. — Isabella… — começou. — Eu nunca senti tanto medo na vida. — Agora sabe o que é amar de verdade. — respondi. Ele sorriu com os olhos marejados. — Se amar é sentir isso, então eu nunca mais quero deixar de sentir. O silêncio voltou, mas era leve dessa vez. Um silêncio de paz. Leonardo pegou minha mão e a levou aos lábios. — Obrigado por não desistir de mim, mesmo quando eu não merecia. — Eu não fiz por você. — sussurrei. — Fiz por ele. Ele assentiu. — Eu sei. Mas talvez seja por ele que eu consiga ser alguém melhor. As lágrimas caíram outra vez. Não de dor, mas de esperança. Quando fechei os olhos, o corpo finalmente relaxou. Leonardo continuava segurando minha mão, os olhos fixos no pequeno reflexo do berçário ao lado. E antes que o sono me levasse, ouvi ele sussurrar: — Você é o maior milagre da minha vida, Isabella. O som do monitor seguia constante. Lá fora, o sol começava a nascer. E eu entendi que o amor, quando renasce, vem em silêncio — do tamanho de um choro frágil, de um corpo pequeno e de um perdão que ainda não sabe o próprio nome. Fechei os olhos e sorri. O pior já tinha passado. O resto… seria reconstrução.
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