O café esfriava sobre a mesa, intacto.
As cortinas estavam abertas, mas eu não via a luz.
Fazia horas que eu encarava a tela do notebook sem conseguir digitar uma única palavra.
Os números dançavam, as reuniões se acumulavam, os e-mails explodiam — e nada importava.
Nem o lucro recorde, nem as ações em alta, nem os contratos milionários.
A empresa estava crescendo.
Mas eu estava encolhendo.
Carlos entrou sem bater, como sempre.
Camisa dobrada nos braços, olhar cansado e o mesmo tom direto que eu fingia odiar.
— Você parece um homem em luto.
— E o que exatamente eu perdi, Carlos? — perguntei, sem erguer os olhos.
— A humanidade, talvez.
Soltei uma risada seca. — Drama logo cedo?
Ele se aproximou, jogou um jornal sobre a mesa.
“Valença Group: Sucesso nos negócios, ruína em casa.”
— Estão transformando sua vida pessoal em espetáculo — disse. — E, sinceramente, você tá deixando.
Peguei o jornal, dobrei e deixei de lado. — Eu não tenho tempo pra me importar com fofocas.
— Deveria. — Ele cruzou os braços. — Porque dessa vez, o estrago é pessoal.
Fiquei em silêncio.
— Vi o vídeo da sua esposa — continuou. — A coletiva. A coragem dela.
— Coragem ou manipulação?
— Coragem. — A resposta veio firme. — Porque diferente de você, ela enfrentou o mundo de cabeça erguida.
Olhei pra ele, irritado. — Você não entende, Carlos.
— Entendo mais do que pensa.
— Eu fiz o que precisava.
— Não, Leonardo. — Ele se inclinou sobre a mesa. — Você fez o que o seu pai faria.
As palavras me acertaram como um soco.
Tentei disfarçar. — Não traga ele pra isso.
— É impossível não trazer. — Ele deu um passo à frente. — Você passa a vida inteira tentando não ser o homem que ele foi… e, no final, age exatamente igual.
Levantei. — Cuidado, Carlos.
— Por quê? Vai me demitir? Vai me calar como fez com ela?
A raiva queimava no estômago.
Mas no fundo, ele tinha razão.
E talvez fosse isso que doía.
— Você acha que eu não vejo? — ele continuou. — A maneira como você se destrói tentando controlar tudo. O medo de perder o domínio, de sentir demais.
— Eu só quero paz.
— Paz não nasce do orgulho, Leo.
— Eu não sou meu pai! — gritei, e a voz ecoou pelas paredes.
Carlos me olhou com calma, o tipo de calma que irrita quem está quebrado.
— Eu sei. Mas tá fazendo de tudo pra ser.
Fiquei mudo.
A respiração pesada, o coração disparado.
— O seu pai gritou até o último dia de vida dizendo que era vítima de tudo. — Carlos se aproximou mais. — Mas você sabe o que ele realmente era? Um homem covarde demais pra amar.
— Chega.
— Não. — A voz dele cortou o ar. — Porque alguém precisa te acordar. Você tem uma mulher que está sozinha, carregando o seu filho, e o que faz? Se esconde atrás de uma marca, de um sobrenome, de um copo de whisky.
Fechei os olhos.
Mas as imagens vieram mesmo assim: Isabella, o olhar dela antes de me deixar; a barriga crescendo, o rosto cansado, a solidão estampada.
— Eu… não sei como consertar isso. — admiti, num sussurro.
Carlos suspirou, exausto. — Então começa parando de mentir pra si mesmo.
— Eu não minto.
— Mente o tempo todo. — Ele se afastou um pouco, me observando. — Diz que não se importa, mas fica obcecado com cada notícia sobre ela. Diz que não a ama, mas não consegue passar uma noite sem pensar no nome dela.
— Você não sabe de nada.
— Sei. — Ele olhou pra mim como quem olha um irmão. — Sei porque já te vi assim antes… quando seu pai trancava a porta e deixava sua mãe chorando. Você odiava aquilo. Jurava que nunca seria igual.
O ar ficou pesado.
As palavras dele me abriram como lâmina.
— E agora, Leonardo, me diz — continuou, firme. — Em que ponto do caminho você decidiu se tornar aquilo que mais desprezava?
Andei até a janela.
A cidade lá fora era um borrão de prédios e luzes.
O reflexo do vidro me devolveu um rosto cansado, um olhar perdido.
Eu me vi — e vi ele.
Meu pai.
A lembrança veio como um tapa.
Eu, aos dez anos, escondido atrás da porta, ouvindo os gritos.
Minha mãe chorando, e ele dizendo:
“Eu te dou tudo, mulher. Dinheiro, conforto. Do que mais precisa?”
Ela respondeu, com a voz trêmula:
“De você.”
Fechei os olhos e voltei ao presente.
E entendi.
Isabella tinha me pedido a mesma coisa.
Carlos quebrou o silêncio.
— Ela ainda tá lá, Leonardo.
— Eu sei.
— Então por que ainda está aqui?
Virei pra ele. — Porque não sei o que dizer.
— Começa dizendo “desculpa”. — Ele sorriu de leve. — E depois, “eu quero tentar de novo”.
Ri, sem humor. — E se for tarde?
— A culpa é um inferno, Leo. Mas o arrependimento é uma estrada. E ainda dá pra pegar o caminho de volta.
Fiquei parado.
As palavras dele giravam na cabeça, atravessando camadas de resistência que eu nem sabia que ainda existiam.
— Você acha que ela me ouviria? — perguntei, por fim.
— Acho que ela te ouviria calada. — respondeu. — E, pra alguém que já te amou, isso é mais do que suficiente.
Depois que ele saiu, o escritório ficou em silêncio.
Mas não era o silêncio vazio de antes.
Era um silêncio cheio de verdades ecoando.
Caminhei até o bar e encarei a garrafa de whisky.
A mesma que me acompanhava todas as noites.
Peguei o copo… e o deixei sobre a bancada, intacto.
Não precisava mais dele.
Fui até o espelho.
O rosto refletido parecia o de um homem mais velho.
Mas, pela primeira vez, eu não desviei o olhar.
— Você está repetindo o que mais odiava — murmurei, lembrando das palavras de Carlos.
E pela primeira vez, a frase não soou como acusação.
Soou como libertação.
Peguei o celular.
Abri o contato dela.
Meu dedo pairou sobre o botão de chamada.
Mas algo me deteve.
Não era medo.
Era respeito.
Depois de tudo, ela merecia algo melhor do que uma ligação vazia.
Fechei o celular, peguei a chave do carro e saí.
O vento noturno cortava o rosto enquanto eu dirigia.
A estrada parecia mais longa do que nunca.
Mas eu sabia o destino.
A mansão.
A mesma que por tanto tempo foi símbolo de poder.
Agora, era apenas o lugar onde eu deixei o amor morrer.
As luzes da cidade ficavam pra trás, e o som dos pneus na pista era o único que me acompanhava.
O coração batia rápido, pesado, nervoso.
Mas pela primeira vez, eu não queria controlar nada.
Só queria chegar.
Quando estacionei diante dos portões, fiquei imóvel por alguns segundos.
As mãos suavam, o peito apertava.
A lua iluminava a fachada da casa, e tudo parecia diferente.
Menor.
Mais humano.
Apertei o botão do interfone.
A voz do segurança respondeu:
— Boa noite, senhor Valença. Deseja entrar?
Olhei o portão fechado, o escuro lá dentro, e respondi com um nó na garganta:
— Sim.
A cancela se abriu.
O som do motor se misturou ao da respiração acelerada.
E, pela primeira vez em meses, eu atravessei aquele portão não como dono, mas como homem.
Um homem tentando, enfim, fazer o que deveria ter feito desde o começo:
voltar pra casa.