O Conselho de Carlos

1276 Words
O café esfriava sobre a mesa, intacto. As cortinas estavam abertas, mas eu não via a luz. Fazia horas que eu encarava a tela do notebook sem conseguir digitar uma única palavra. Os números dançavam, as reuniões se acumulavam, os e-mails explodiam — e nada importava. Nem o lucro recorde, nem as ações em alta, nem os contratos milionários. A empresa estava crescendo. Mas eu estava encolhendo. Carlos entrou sem bater, como sempre. Camisa dobrada nos braços, olhar cansado e o mesmo tom direto que eu fingia odiar. — Você parece um homem em luto. — E o que exatamente eu perdi, Carlos? — perguntei, sem erguer os olhos. — A humanidade, talvez. Soltei uma risada seca. — Drama logo cedo? Ele se aproximou, jogou um jornal sobre a mesa. “Valença Group: Sucesso nos negócios, ruína em casa.” — Estão transformando sua vida pessoal em espetáculo — disse. — E, sinceramente, você tá deixando. Peguei o jornal, dobrei e deixei de lado. — Eu não tenho tempo pra me importar com fofocas. — Deveria. — Ele cruzou os braços. — Porque dessa vez, o estrago é pessoal. Fiquei em silêncio. — Vi o vídeo da sua esposa — continuou. — A coletiva. A coragem dela. — Coragem ou manipulação? — Coragem. — A resposta veio firme. — Porque diferente de você, ela enfrentou o mundo de cabeça erguida. Olhei pra ele, irritado. — Você não entende, Carlos. — Entendo mais do que pensa. — Eu fiz o que precisava. — Não, Leonardo. — Ele se inclinou sobre a mesa. — Você fez o que o seu pai faria. As palavras me acertaram como um soco. Tentei disfarçar. — Não traga ele pra isso. — É impossível não trazer. — Ele deu um passo à frente. — Você passa a vida inteira tentando não ser o homem que ele foi… e, no final, age exatamente igual. Levantei. — Cuidado, Carlos. — Por quê? Vai me demitir? Vai me calar como fez com ela? A raiva queimava no estômago. Mas no fundo, ele tinha razão. E talvez fosse isso que doía. — Você acha que eu não vejo? — ele continuou. — A maneira como você se destrói tentando controlar tudo. O medo de perder o domínio, de sentir demais. — Eu só quero paz. — Paz não nasce do orgulho, Leo. — Eu não sou meu pai! — gritei, e a voz ecoou pelas paredes. Carlos me olhou com calma, o tipo de calma que irrita quem está quebrado. — Eu sei. Mas tá fazendo de tudo pra ser. Fiquei mudo. A respiração pesada, o coração disparado. — O seu pai gritou até o último dia de vida dizendo que era vítima de tudo. — Carlos se aproximou mais. — Mas você sabe o que ele realmente era? Um homem covarde demais pra amar. — Chega. — Não. — A voz dele cortou o ar. — Porque alguém precisa te acordar. Você tem uma mulher que está sozinha, carregando o seu filho, e o que faz? Se esconde atrás de uma marca, de um sobrenome, de um copo de whisky. Fechei os olhos. Mas as imagens vieram mesmo assim: Isabella, o olhar dela antes de me deixar; a barriga crescendo, o rosto cansado, a solidão estampada. — Eu… não sei como consertar isso. — admiti, num sussurro. Carlos suspirou, exausto. — Então começa parando de mentir pra si mesmo. — Eu não minto. — Mente o tempo todo. — Ele se afastou um pouco, me observando. — Diz que não se importa, mas fica obcecado com cada notícia sobre ela. Diz que não a ama, mas não consegue passar uma noite sem pensar no nome dela. — Você não sabe de nada. — Sei. — Ele olhou pra mim como quem olha um irmão. — Sei porque já te vi assim antes… quando seu pai trancava a porta e deixava sua mãe chorando. Você odiava aquilo. Jurava que nunca seria igual. O ar ficou pesado. As palavras dele me abriram como lâmina. — E agora, Leonardo, me diz — continuou, firme. — Em que ponto do caminho você decidiu se tornar aquilo que mais desprezava? Andei até a janela. A cidade lá fora era um borrão de prédios e luzes. O reflexo do vidro me devolveu um rosto cansado, um olhar perdido. Eu me vi — e vi ele. Meu pai. A lembrança veio como um tapa. Eu, aos dez anos, escondido atrás da porta, ouvindo os gritos. Minha mãe chorando, e ele dizendo: “Eu te dou tudo, mulher. Dinheiro, conforto. Do que mais precisa?” Ela respondeu, com a voz trêmula: “De você.” Fechei os olhos e voltei ao presente. E entendi. Isabella tinha me pedido a mesma coisa. Carlos quebrou o silêncio. — Ela ainda tá lá, Leonardo. — Eu sei. — Então por que ainda está aqui? Virei pra ele. — Porque não sei o que dizer. — Começa dizendo “desculpa”. — Ele sorriu de leve. — E depois, “eu quero tentar de novo”. Ri, sem humor. — E se for tarde? — A culpa é um inferno, Leo. Mas o arrependimento é uma estrada. E ainda dá pra pegar o caminho de volta. Fiquei parado. As palavras dele giravam na cabeça, atravessando camadas de resistência que eu nem sabia que ainda existiam. — Você acha que ela me ouviria? — perguntei, por fim. — Acho que ela te ouviria calada. — respondeu. — E, pra alguém que já te amou, isso é mais do que suficiente. Depois que ele saiu, o escritório ficou em silêncio. Mas não era o silêncio vazio de antes. Era um silêncio cheio de verdades ecoando. Caminhei até o bar e encarei a garrafa de whisky. A mesma que me acompanhava todas as noites. Peguei o copo… e o deixei sobre a bancada, intacto. Não precisava mais dele. Fui até o espelho. O rosto refletido parecia o de um homem mais velho. Mas, pela primeira vez, eu não desviei o olhar. — Você está repetindo o que mais odiava — murmurei, lembrando das palavras de Carlos. E pela primeira vez, a frase não soou como acusação. Soou como libertação. Peguei o celular. Abri o contato dela. Meu dedo pairou sobre o botão de chamada. Mas algo me deteve. Não era medo. Era respeito. Depois de tudo, ela merecia algo melhor do que uma ligação vazia. Fechei o celular, peguei a chave do carro e saí. O vento noturno cortava o rosto enquanto eu dirigia. A estrada parecia mais longa do que nunca. Mas eu sabia o destino. A mansão. A mesma que por tanto tempo foi símbolo de poder. Agora, era apenas o lugar onde eu deixei o amor morrer. As luzes da cidade ficavam pra trás, e o som dos pneus na pista era o único que me acompanhava. O coração batia rápido, pesado, nervoso. Mas pela primeira vez, eu não queria controlar nada. Só queria chegar. Quando estacionei diante dos portões, fiquei imóvel por alguns segundos. As mãos suavam, o peito apertava. A lua iluminava a fachada da casa, e tudo parecia diferente. Menor. Mais humano. Apertei o botão do interfone. A voz do segurança respondeu: — Boa noite, senhor Valença. Deseja entrar? Olhei o portão fechado, o escuro lá dentro, e respondi com um nó na garganta: — Sim. A cancela se abriu. O som do motor se misturou ao da respiração acelerada. E, pela primeira vez em meses, eu atravessei aquele portão não como dono, mas como homem. Um homem tentando, enfim, fazer o que deveria ter feito desde o começo: voltar pra casa.
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