A Crise de Leonardo

1227 Words
O whisky já não fazia efeito. Nenhum fazia. Nos últimos dias, eu havia dormido pouco, comido menos e trabalhado como um homem em fuga — e talvez fosse exatamente isso que eu era. Fugido de mim. O espelho do escritório refletia um estranho. Olheiras profundas, barba por fazer, camisa amassada. O homem que todo mundo admirava nas manchetes não passava de um castelo de gelo derretendo por dentro. Peguei o copo sobre a mesa. O líquido âmbar me encarava, tentador. Engoli num gole só. Ardeu. Mas não o suficiente. Nada era suficiente. As vozes ainda ecoavam na minha cabeça. As manchetes, os sussurros, os olhares. Mas nenhuma delas doía tanto quanto a voz dela. “Você conseguiu matar o que ainda restava de mim.” Essa frase me perseguia até nos sonhos. Ou pesadelos. Não fazia mais diferença. Isabella. O nome que eu tentava evitar pensar era o único que nunca me deixava em paz. Aquela noite foi pior. Tentei dormir no sofá, mas o corpo recusava o descanso. Fechei os olhos e vi o rosto dela. Chorando. O ventre crescendo. A dor que eu causei. De repente, a imagem mudou. O rosto dela se dissolveu, e no lugar, o do meu pai. O mesmo olhar severo, a mesma voz fria. “Você é igual a mim, Leonardo. No fim, todos são.” — Não — murmurei no sonho. — Eu não sou como você. “É sim. Destrói o que ama e culpa o mundo por isso.” Acordei suando frio, o coração acelerado, o corpo em alerta. As mãos tremiam. A garganta seca. Fui até o banheiro, lavei o rosto e me encarei no espelho. A água escorria, mas não levava o que doía. Meu reflexo me devolveu o olhar vazio. O mesmo olhar que vi tantas vezes no rosto dele — do homem que me criou à base de gritos, ameaças e culpa. Quando eu era menino, costumava ouvir meu pai gritar com minha mãe atrás das portas fechadas. Prometia a mim mesmo que seria diferente. Que nunca repetiria aquele ciclo de frieza e desdém. E no entanto, aqui estava eu. Cometendo os mesmos erros. Machucando do mesmo jeito. Passei o dia inteiro trancado no escritório da empresa. Carlos, meu sócio e único amigo que ainda se atrevia a me enfrentar, entrou sem bater. — Você parece um fantasma. — disse. — Tá se matando devagar, Valença. — Tô trabalhando. — Trabalhar não cura culpa. Olhei pra ele, irritado. — Não sei do que está falando. — Sabe sim. — sentou-se diante de mim. — Eu vi o que saiu na imprensa. Vi as fotos. E vi o seu silêncio. Desviei o olhar. — Não tenho que dar explicações. — Pra mim, não. Mas pra ela, talvez. A frase dele me atingiu. Tentei disfarçar. — Isabella fez a escolha dela. — Não. — Carlos respondeu, firme. — Quem fez foi você. E pelo que parece, fez m*l. — Ela me expôs diante do país inteiro. — E você a destruiu antes disso. Silêncio. O tipo de silêncio que queima. Carlos se levantou, ajustou o paletó e disse antes de sair: — A diferença entre você e o seu pai, Leonardo, é que ainda há tempo pra não virar ele. A porta se fechou. Mas as palavras ficaram. Horas depois, sentei na cadeira, exausto. As luzes da cidade piscavam lá fora, distantes. Peguei o celular e abri as redes. Ela estava lá. Isabella. Uma foto tirada por paparazzi. Sozinha, caminhando na rua com as mãos sobre a barriga, o cabelo preso, o rosto sereno. Parecia em paz. Parecia… feliz. Senti algo apertar o peito. Inveja, talvez. Ou arrependimento. Ampliei a foto e toquei a tela. Por um instante, tive vontade de ligar. De ouvir a voz dela. De pedir desculpas. Mas o orgulho é um vício difícil de largar. Bloqueei a tela e joguei o celular sobre a mesa. A noite caiu pesada. Peguei o carro e dirigi sem destino. As ruas de São Paulo pareciam ainda mais cinzas do que de costume. Parecia que a cidade inteira refletia o que eu sentia: pressa, cansaço e vazio. Estacionei na frente do prédio onde Camila morava. Por algum motivo, meus pés me levaram até ali. Mas ao olhar pra portaria, senti uma repulsa. A lembrança do rosto dela, das mentiras, do veneno disfarçado de carinho. Nada ali me atraía mais. Voltei pro carro e acelerei. Dirigi sem rumo até parar diante da mansão. A mesma casa que eu transformei em prisão pra Isabella. Agora, vazia, silenciosa, fria. Entrei devagar. O eco dos meus próprios passos me fez lembrar das vezes em que ela descia as escadas apressada, nervosa, linda mesmo furiosa. E o quanto eu fingia não ver. O quanto eu fingia não sentir. Subi pro quarto. A cama vazia. O cheiro dela ainda no travesseiro. Fechei os olhos e, por um segundo, desejei voltar no tempo. Mas o tempo não volta. E o arrependimento chega sempre depois da destruição. Deitei sem tirar a roupa. O cansaço me venceu. E os sonhos voltaram. Dessa vez, Isabella estava chorando. O ventre dela era grande. Ela me olhava com raiva e tristeza. “Você matou o amor, Leonardo.” — Eu não quis… — tentei dizer. “Quis sim. Porque o amor te assusta.” A voz dela ecoava até se misturar à do meu pai. “Você é igual a mim.” Acordei gritando. O suor escorrendo, o peito ardendo, o coração disparado. Sentei na cama, o ar faltando. Passei as mãos no rosto e percebi que estava chorando. Eu, Leonardo Valença, o homem que não chora. O homem que aprendeu a engolir dor e cuspir controle. Chorando como uma criança. Olhei pro espelho. E pela primeira vez, vi meu pai me olhando de volta. — Eu odeio você. — murmurei. — Odeio o que me fez ser. Mas, no fundo, eu sabia: o que eu realmente odiava era o que tinha me tornado. Peguei o celular. O dedo pairou sobre o nome dela na tela. Isabella. A vontade de ouvir sua voz era quase física. Mas o medo de ouvir o silêncio dela era ainda maior. Deixei o aparelho sobre o peito e fechei os olhos. E então, como se o coração tivesse vida própria, as palavras escaparam: — Isabella… O som do nome dela no escuro me partiu em dois. Era como uma prece, um pedido de socorro que ninguém ouviria. A voz embargou. — Eu… sinto sua falta. Silêncio. O tipo de silêncio que dói e cura ao mesmo tempo. Fechei os olhos e deixei as lágrimas caírem. Sem resistência. Sem disfarce. Porque, pela primeira vez, eu entendi. Eu não odiava Isabella. Eu odiava o homem que eu era quando ela me amava. O amanhecer chegou devagar. A luz entrou pela janela, suave, tímida, quase misericordiosa. Apoiei os cotovelos nos joelhos e respirei fundo. Havia algo diferente no ar. Uma sensação nova. Não era paz, ainda. Mas era o começo. Levantei e fui até o espelho mais uma vez. Olhei meu reflexo e murmurei: — Eu não quero ser como ele. E, pela primeira vez, a frase não soou como promessa vazia. Soou como decisão. Peguei o celular e salvei o número dela nos favoritos. Não pra ligar. Mas pra lembrar que ainda havia tempo. E talvez, só talvez, uma chance de fazer diferente.
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