O whisky já não fazia efeito.
Nenhum fazia.
Nos últimos dias, eu havia dormido pouco, comido menos e trabalhado como um homem em fuga — e talvez fosse exatamente isso que eu era.
Fugido de mim.
O espelho do escritório refletia um estranho.
Olheiras profundas, barba por fazer, camisa amassada.
O homem que todo mundo admirava nas manchetes não passava de um castelo de gelo derretendo por dentro.
Peguei o copo sobre a mesa.
O líquido âmbar me encarava, tentador.
Engoli num gole só.
Ardeu.
Mas não o suficiente.
Nada era suficiente.
As vozes ainda ecoavam na minha cabeça.
As manchetes, os sussurros, os olhares.
Mas nenhuma delas doía tanto quanto a voz dela.
“Você conseguiu matar o que ainda restava de mim.”
Essa frase me perseguia até nos sonhos.
Ou pesadelos.
Não fazia mais diferença.
Isabella.
O nome que eu tentava evitar pensar era o único que nunca me deixava em paz.
Aquela noite foi pior.
Tentei dormir no sofá, mas o corpo recusava o descanso.
Fechei os olhos e vi o rosto dela.
Chorando.
O ventre crescendo.
A dor que eu causei.
De repente, a imagem mudou.
O rosto dela se dissolveu, e no lugar, o do meu pai.
O mesmo olhar severo, a mesma voz fria.
“Você é igual a mim, Leonardo. No fim, todos são.”
— Não — murmurei no sonho. — Eu não sou como você.
“É sim. Destrói o que ama e culpa o mundo por isso.”
Acordei suando frio, o coração acelerado, o corpo em alerta.
As mãos tremiam.
A garganta seca.
Fui até o banheiro, lavei o rosto e me encarei no espelho.
A água escorria, mas não levava o que doía.
Meu reflexo me devolveu o olhar vazio.
O mesmo olhar que vi tantas vezes no rosto dele — do homem que me criou à base de gritos, ameaças e culpa.
Quando eu era menino, costumava ouvir meu pai gritar com minha mãe atrás das portas fechadas.
Prometia a mim mesmo que seria diferente.
Que nunca repetiria aquele ciclo de frieza e desdém.
E no entanto, aqui estava eu.
Cometendo os mesmos erros.
Machucando do mesmo jeito.
Passei o dia inteiro trancado no escritório da empresa.
Carlos, meu sócio e único amigo que ainda se atrevia a me enfrentar, entrou sem bater.
— Você parece um fantasma. — disse. — Tá se matando devagar, Valença.
— Tô trabalhando.
— Trabalhar não cura culpa.
Olhei pra ele, irritado. — Não sei do que está falando.
— Sabe sim. — sentou-se diante de mim. — Eu vi o que saiu na imprensa. Vi as fotos. E vi o seu silêncio.
Desviei o olhar.
— Não tenho que dar explicações.
— Pra mim, não. Mas pra ela, talvez.
A frase dele me atingiu.
Tentei disfarçar. — Isabella fez a escolha dela.
— Não. — Carlos respondeu, firme. — Quem fez foi você. E pelo que parece, fez m*l.
— Ela me expôs diante do país inteiro.
— E você a destruiu antes disso.
Silêncio.
O tipo de silêncio que queima.
Carlos se levantou, ajustou o paletó e disse antes de sair:
— A diferença entre você e o seu pai, Leonardo, é que ainda há tempo pra não virar ele.
A porta se fechou.
Mas as palavras ficaram.
Horas depois, sentei na cadeira, exausto.
As luzes da cidade piscavam lá fora, distantes.
Peguei o celular e abri as redes.
Ela estava lá.
Isabella.
Uma foto tirada por paparazzi.
Sozinha, caminhando na rua com as mãos sobre a barriga, o cabelo preso, o rosto sereno.
Parecia em paz.
Parecia… feliz.
Senti algo apertar o peito.
Inveja, talvez.
Ou arrependimento.
Ampliei a foto e toquei a tela.
Por um instante, tive vontade de ligar.
De ouvir a voz dela.
De pedir desculpas.
Mas o orgulho é um vício difícil de largar.
Bloqueei a tela e joguei o celular sobre a mesa.
A noite caiu pesada.
Peguei o carro e dirigi sem destino.
As ruas de São Paulo pareciam ainda mais cinzas do que de costume.
Parecia que a cidade inteira refletia o que eu sentia: pressa, cansaço e vazio.
Estacionei na frente do prédio onde Camila morava.
Por algum motivo, meus pés me levaram até ali.
Mas ao olhar pra portaria, senti uma repulsa.
A lembrança do rosto dela, das mentiras, do veneno disfarçado de carinho.
Nada ali me atraía mais.
Voltei pro carro e acelerei.
Dirigi sem rumo até parar diante da mansão.
A mesma casa que eu transformei em prisão pra Isabella.
Agora, vazia, silenciosa, fria.
Entrei devagar.
O eco dos meus próprios passos me fez lembrar das vezes em que ela descia as escadas apressada, nervosa, linda mesmo furiosa.
E o quanto eu fingia não ver.
O quanto eu fingia não sentir.
Subi pro quarto.
A cama vazia.
O cheiro dela ainda no travesseiro.
Fechei os olhos e, por um segundo, desejei voltar no tempo.
Mas o tempo não volta.
E o arrependimento chega sempre depois da destruição.
Deitei sem tirar a roupa.
O cansaço me venceu.
E os sonhos voltaram.
Dessa vez, Isabella estava chorando.
O ventre dela era grande.
Ela me olhava com raiva e tristeza.
“Você matou o amor, Leonardo.”
— Eu não quis… — tentei dizer.
“Quis sim. Porque o amor te assusta.”
A voz dela ecoava até se misturar à do meu pai.
“Você é igual a mim.”
Acordei gritando.
O suor escorrendo, o peito ardendo, o coração disparado.
Sentei na cama, o ar faltando.
Passei as mãos no rosto e percebi que estava chorando.
Eu, Leonardo Valença, o homem que não chora.
O homem que aprendeu a engolir dor e cuspir controle.
Chorando como uma criança.
Olhei pro espelho.
E pela primeira vez, vi meu pai me olhando de volta.
— Eu odeio você. — murmurei. — Odeio o que me fez ser.
Mas, no fundo, eu sabia: o que eu realmente odiava era o que tinha me tornado.
Peguei o celular.
O dedo pairou sobre o nome dela na tela.
Isabella.
A vontade de ouvir sua voz era quase física.
Mas o medo de ouvir o silêncio dela era ainda maior.
Deixei o aparelho sobre o peito e fechei os olhos.
E então, como se o coração tivesse vida própria, as palavras escaparam:
— Isabella…
O som do nome dela no escuro me partiu em dois.
Era como uma prece, um pedido de socorro que ninguém ouviria.
A voz embargou.
— Eu… sinto sua falta.
Silêncio.
O tipo de silêncio que dói e cura ao mesmo tempo.
Fechei os olhos e deixei as lágrimas caírem.
Sem resistência.
Sem disfarce.
Porque, pela primeira vez, eu entendi.
Eu não odiava Isabella.
Eu odiava o homem que eu era quando ela me amava.
O amanhecer chegou devagar.
A luz entrou pela janela, suave, tímida, quase misericordiosa.
Apoiei os cotovelos nos joelhos e respirei fundo.
Havia algo diferente no ar.
Uma sensação nova.
Não era paz, ainda.
Mas era o começo.
Levantei e fui até o espelho mais uma vez.
Olhei meu reflexo e murmurei:
— Eu não quero ser como ele.
E, pela primeira vez, a frase não soou como promessa vazia.
Soou como decisão.
Peguei o celular e salvei o número dela nos favoritos.
Não pra ligar.
Mas pra lembrar que ainda havia tempo.
E talvez, só talvez, uma chance de fazer diferente.