Na primeira noite, sozinha em uma cidade estranha, não havia para onde ir.
Me encolhi num banco da estação de trem, tentando dormir, mas o frio, a solidão e a dor eram maiores que qualquer cansaço.
Estava exausta, o sono me tomou, pouco a pouco até que não conseguir suportar, deitada naquele banco frio e sozinha.
Até que senti uma mão me cutucar. Abri os olhos assustada. Uma mulher me olhava de cima.
— O que você tá fazendo aqui, menina?
— Eu… eu não tenho pra onde ir…
sussurrei, a voz embargada.
Ela suspirou fundo, desconfiada, olhou em volta,
— Se os guardas te pegam, você vai expulsa.
Não sabia o que falar, só peguei minha bolsa, pondo novamente nas costas e levantei.
— Eu.. não sabia, desculpa.
E dei alguns passos me afastando dela.
— Espera.
Virei olhando pra ela, que estava tão bem vestida, vestido elegante, bolsa brilhosa, saltos altos.
— Tem um último trem, você não iria pegar ele?
Neguei soltando um ar pesado.
— Eu.. só estava atrás de um lugar seguro pra dormir.
O olhar dela se penalizou.
— Espera esse trem comigo.
Olhei em volta nervosa e ela completou.
— Eu tenho um lugar seguro, se você quiser... É por sua conta.
Não tinha muitas escolhas ou opções. Eu tinha medo, mas tinha muito mais medo de ficar na rua.
Acenei concordando quase sem movimento e ela sentou no banco, bateu duas vezes ali, me chamando.
Sentei ao seu lado. Ela me avaliou de cima a baixo.
— Tá muito tempo aqui?
Neguei sem forças pra falar.
— Ok.. você não conversa muito.
Ela abriu a bolsa e tirou uma balinha de menta.
— Quer?
Me ofereceu, peguei, mascando o mesmo. Ela não falou mais, e eu agradeci, pois se eu ousasse falar, desmoronaria em sua frente.
Ali... Naquela estação, conheci a única pessoa que sempre me entendeu.
Desde o momento que bateu os olhos em mim. Ela sabia, eu era uma sobrevivente.
.....
Ela me levou até um apartamento. No caminho, caminhamos em silêncio, nenhuma palavra entre nós.
Quando abriu a porta, entrei. O apartamento era pequeno, parecia pouco usado, os móveis simples.
Tinha cheiro de móveis vellhos, madeira antiga e aquele típico perfume de vovó. Tudo muito estampado, luzes amarelas.
— Qual seu nome?
Ela perguntou me tirando das observações.
— Clarisse.
Ela acenou.
— Sou Donna.
Só acenei não sabendo o que falar.
— Pode ficar onde quiser. Só tenho um quarto, aqui é pequeno, mas cabe nós duas.
Olhei em volta, sem saber o que fazer. Ela tirou os sapatos e amarrou o cabelo em um coque.
— Tive uma noite longa… te vejo amanhã.
E entrou em um cômodo que eu imaginei ser o quarto.
Deixei minha bolsa no sofá e me sentei. Não sabia como reagir, mas era infinitamente melhor do que estar na rua.
(...)
No dia seguinte, acordei com o barulho da cafeteira. O cheiro de café se misturava ao som da voz irritada de Donna:
— Droga! Eu sabia que ia derramar essa merda.
Observei ela toda atrapalhada. Levantei e me aproximei:
— Eu… posso fazer...
Ela me lançou um olhar crítico:
— Sabe usar essa geringonça?
— É… só café.
respondi, um pouco nervosa.
Ela bufou e disse:
— Eu não sei usar essa coisa.
Fui até lá, lavei a cafeteira e preparei o café enquanto ela comia uma torrada, me observando.
— Vem cá… o que você fazia ali? Seus pais não sentem sua falta?
— Eu não tenho mais pais.
Ela ficou estranha, colocando o café no fogo sem me olhar.
— Quantos anos você tem?
— 19…
Ela me fitou, curiosa:
— Como foi parar ali…
Suspirei pesado, baixei o olhar, e meus olhos começaram a se encher de lágrimas.
— Espera… você parece com…
E então ela entendeu. O olhar dela dizia tudo. Meu Deus… todos viram? Não importa aonde eu vá, isso vai me perseguir.
— Você quem colocou aquilo?
Ela se corrigiu rapidamente:
— Claro que não! Que cabeça a minha… foi expulsa de casa, é isso?
Neguei, tentando manter a compostura.
— Eu não sabia…
E então comecei a chorar. Donna ficou tensa, travada, sem saber como reagir. Mesmo assim, se aproximou e me abraçou.
— Ei… respira!
Me agarrei a ela, buscando consolo, mesmo sendo de uma estranha.
— Eu… não sabia que ele estava gravando. Foi ele que soltou o vídeo… eu acabei com a minha vida.
— Não fala isso! Se ele fez sem você saber, é um babaca e criminoso! Você precisa denunciar.
Me afastei, olhando para o chão, negando com a cabeça:
— Não… não posso. Se eu fizer isso, todos vão saber.
— Todos já sabem. A internet é terrível. Se você não denunciar, não vai sair do ar. Você precisa fazer isso.
Limpei o rosto, respirando fundo.
— Se você quiser, eu vou com você. Odeio cara escroto, e adoro por eles atrás das grades! Eu vou contigo.
E eu aceitei, tudo que eu queria era apagar aquilo que vivi, sumir com aquele vídeo até que todos esquecessem de que um dia ele foi feito.
...
Saímos do apartamento e o frio da rua me fez arrepiar. Minhas mãos estavam geladas, e cada passo parecia me levar mais perto de algo que eu não queria enfrentar.
Mas Donna segurava firme meu braço, e eu sentia que, enquanto ela estivesse ali, talvez fosse possível encarar tudo.
Chegamos à delegacia. O cheiro forte de limpeza, misturado com papel e café, me fez engolir em seco.
Eu não queria estar ali, não queria olhar para aqueles rostos curiosos e impacientes.
— Fica perto de mim.
Donna murmurou, e sua mão firme sobre meu ombro me deu coragem.
Quando entramos na sala para dar meu depoimento, percebi os olhares. Alguns policiais cochichavam entre si.
Eu podia ouvir, mesmo tentando me concentrar, pequenas piadas e risadinhas: “Faz o vídeo e depois se arrepende…” O outro responde “ Até parece piada”
Meu estômago revirou, e senti vontade de fugir, de me esconder no chão. Mas Donna se posicionou na minha frente, como se fosse um escudo.
— Senhores.
disse ela, com uma voz firme que não aceitava contestação
— O que vocês chamam de piada é a vida de uma pessoa. Uma vida que vocês não têm o direito de expor, nem de julgar. Então podem calar a boca e começar a agir como profissionais.
O silêncio caiu pesado. Eu olhei para ela, surpresa e aliviada. Nunca ninguém havia falado assim por mim antes. Ela não me deixou desmoronar. Ela me protegeu.
Os policiais finalmente pararam de rir, alguns desviaram o olhar. Donna me fez sinal para sentar e me acompanhou, se inclinando para sussurrar:
— Não liga pra eles. Não é sobre você ser fraca, é sobre eles serem idiotas. Respira.
Quando comecei a relatar tudo, minha voz tremia, mas cada palavra foi menos aterrorizante porque eu sabia que ela estava ali.
Cada vez que olhava para Donna, via um ponto de segurança no meio de todo aquele caos. Ela não deixou que nenhum comentário m*****o me atingisse.
— Clarisse, você está fazendo certo.
ela sussurrou, quando eu engasguei ao falar do vídeo.
— Ele fez algo errado, e agora você está lutando. Isso não é vergonha, é coragem.
Senti lágrimas caírem, mas dessa vez não de medo, e sim de alívio. Por mais humilhante que fosse contar tudo, eu não estava sozinha.
Quando finalmente saímos da sala, ainda com o frio me penetrando, Donna olhou para mim e disse:
— Está vendo? Sobrevivente. É assim que a gente chama quem enfrenta isso sem se entregar.
Respirei fundo, enxugando o rosto.
Pela primeira vez em muito tempo, senti que podia existir de novo, que talvez ainda houvesse justiça, mesmo em um mundo que parecia querer me destruir.
E tudo isso graças a ela. Donna. A única pessoa que me entendeu e me protegeu quando todos me julgavam.