Capítulo 02 : O Preço do Tempo

1339 Words
Viktor Eu não compro pessoas. Repito isso como quem repete um juramento antigo, porque o mundo gosta de transformar poder em caricatura: o Alfa rico, o predador, o colecionador de corpos. A verdade é mais útil e mais feia. Eu compro tempo. Tempo para fechar feridas antes que infeccionem. Tempo para descobrir quem, dentro da minha própria casa, achou que podia vender meu nome como se fosse mercadoria barata. Tempo para colocar a mão no pescoço certo sem apertar o errado. A sala de reunião ainda cheirava a café e tinta nova quando Alina Duarte entrou. Ômega. Fala baixa, postura reta demais para alguém que deveria estar intimidada. Não era coragem pura; era teimosia vestida de dignidade. O tipo de coisa que dá trabalho… e, em certas noites, salva vidas. Ela não se sentou até eu indicar, e mesmo assim fez questão de manter as mãos visíveis sobre a mesa, como quem diz sem palavras: não sou sua propriedade. Bom. Eu tinha dois seguranças na porta, Murilo ao meu lado e o advogado com a pasta aberta, pronto para transformar uma escolha em papel timbrado. O contrato estava ali, simples e c***l na sua eficiência. — Leia — eu disse. Ela puxou as folhas sem pressa. Os olhos correram as linhas, e eu acompanhei a microexpressão que tentava escapar do controle: uma contração no canto da boca quando viu a palavra “exclusividade”. Um respiro mais curto quando leu “silêncio”. A mandíbula endureceu em “um ano”. Eu deixei que engolisse tudo, porque pressão demais quebra. E eu não precisava dela quebrada. Eu precisava dela inteira, consciente, irritada e viva. — Então é isso — ela falou, sem levantar os olhos do papel. — Um ano. — Um ano — confirmei. — Exclusividade… — ela murmurou, como se testasse o gosto da palavra. — Com o senhor. — Com o meu nome — corrigi, frio. — Com a proteção que ele oferece. E com a regra que impede que você seja usada como porta de entrada para o que estão tentando fazer comigo. Ela ergueu o olhar, finalmente. Escuro, firme, e com um tipo de fúria silenciosa que não implora. Eu respeitei, apesar de não demonstrar. — O senhor está me colocando no meio de uma guerra que eu não comecei. — Você já está no meio dela — respondi. — A diferença é que, comigo, você tem parede. Sem mim, você é janela. O advogado pigarreou, desconfortável com metáforas. Murilo ficou imóvel; ele já sabia que, quando eu falava assim, era porque tinha decidido. Alina voltou ao contrato. — Silêncio — ela disse, agora mais alta. — Quer que eu não pergunte nada? Que eu finja que não vejo? — Quero que você pare de dar informação para quem não merece. — Minha voz não subiu. Não precisava. — Não poste. Não comente. Não confirme. Não negue. Não alimente curiosidade alheia com detalhes da sua vida. Quem está caçando não usa armas só de metal; usa língua e rumor. Ela apertou a caneta entre os dedos, como se quisesse quebrá-la. — E se eu precisar falar? Com alguém? — Você terá canais. — Inclinei levemente o rosto, o suficiente para deixar claro que eu já tinha pensado nisso. — Uma pessoa de confiança para assuntos práticos. Outra para emergências. E eu. Ela riu, sem humor. — O senhor não é um canal. O senhor é o dono da represa. Por um segundo, algo quente — perigoso — se mexeu no meu peito. Não era afeto. Era reconhecimento. Ela enxergava. E quem enxerga pode ser ameaça… ou ferramenta. — Eu sou o que mantém sua água dentro — devolvi. — E o que impede que ela vire enchente em cima de você. Alina virou mais uma página, como quem não aceita perder o ritmo para não perder a batalha. — “Mudança imediata de residência.” — Ela leu em voz alta. — Isso aqui não é “imediato”. Está escrito “no amanhecer”. — Está correto. — O senhor quer que eu me mude… ao amanhecer. — Ela levantou o rosto de novo. — Por quê? A pergunta era simples, mas o motivo era um labirinto. Porque o traidor dentro do meu território não era impulsivo. Era paciente. Porque ele já testou minhas rotas, meus horários, meus hábitos. Porque um ataque não acontece quando você está preparado; acontece quando você está confortável. E porque eu precisava que todo mundo visse a ômega saindo sob minha escolta, não para humilhá-la e sim para acender uma luz sobre as sombras. Quem se incomodasse com aquilo, quem reagisse rápido demais, quem tentasse interceptar informação… se denunciaria. Eu não expliquei tudo. Controle também é decidir o que se revela. — Porque de manhã as ruas têm menos olhos treinados para caçar — disse. — E porque eu não negocio com a noite quando a noite está tentando me engolir. — Isso é… — ela começou, e parou. Procurou um termo que não fosse insulto. — É segurança — completei por ela. — E é ordem. Eu não aceito ser contrariado quando o risco é real. O silêncio que veio depois era denso. Eu observei como ela respirava, como os ombros dela resistiam à vontade de encolher. Teimosa. Teimosa e inteligente o bastante para entender que a recusa tinha preço. — E se eu disser não? — Alina perguntou, e ali estava a coragem nua, sem maquiagem. Eu poderia ter mentido. Poderia ter adoçado o mundo com palavras gentis. Eu escolhi a verdade, porque a verdade, às vezes, é a única forma de respeito que homens como eu conhecem. — Se disser não, eu continuo minha caça — falei. — E você volta para sua vida com uma marca invisível nas costas: a pessoa que recusou o abrigo do Alfa. E o mundo, Alina, pune ômegas por menos. Ela prendeu o ar, engolindo a raiva como quem engole fogo. Os dedos tremularam, quase imperceptíveis, e depois firmaram. — O senhor disse que não compra pessoas… compra tempo. — Compro. — Então me diga uma coisa, Viktor. — Foi a primeira vez que ela usou meu nome. Não como carinho. Como desafio. — Esse tempo é seu… ou é meu também? A pergunta me atingiu com precisão. E eu não me permiti sorrir, mas por dentro algo assentou: útil. Não por submissão. Por inteligência. — É dos dois — respondi. — Mas eu sou quem decide como ele será gasto. Ela assinou. A caneta deslizou pelo papel como lâmina em seda. Quando terminou, não pareceu derrotada. Parece, sim, alguém que acabou de entrar numa casa em chamas carregando um balde e decidiu que não vai morrer sem tentar. Murilo pegou o contrato. O advogado respirou aliviado, como se o mundo fosse simples. Não era. Eu me levantei. A sala inteira se ajeitou com meu movimento, como ferro respondendo a ímã. — Amanhecer — eu disse, já encerrando. Alina também se levantou, o que me agradou mais do que deveria. Não por obediência por postura. — Onde? — ela perguntou, seca. — Você receberá o endereço em dez minutos. — Inclinei o queixo, uma ordem sem grito. — Leve apenas o necessário. O resto será buscado por uma equipe. Sem discussões. — Eu não sou mala. — Eu sei — respondi, e minha voz saiu baixa, perigosa. — Por isso mesmo, você vai sair daqui andando, e não sendo carregada por consequência alheia. Ela me encarou, por um instante longo demais para ser prudente. — Um ano, então. — Um ano — confirmei. — E, Alina… silêncio. Ela apertou os lábios, como se quisesse dizer mil coisas. No fim, só assentiu, mínima, e saiu. Quando a porta fechou, eu fiquei olhando a madeira como se pudesse enxergar através dela. Lá fora, o mundo continuava fingindo normalidade. Aqui dentro, eu já sentia a engrenagem girando. O contrato não era prisão. Era isca. E quem morde primeiro é sempre o culpado mais impaciente.
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