Capítulo 01 : Divida em Sangue
Alina
O corredor cheirava a cloro e café. O bip dos monitores ecoava. Conferia o soro quando o celular vibrou três vezes — emergência do meu irmão. O coração acelerou.
— Heitor? — sussurrei, focada no paciente. — Fala.
O silêncio, então a voz áspera dele:
— Errei, Mana. Eles descobriram que fui eu. Sem fuga.
O mundo encolheu. Avisei a técnica e me tranquei no depósito de materiais, cheiro de gaze e metal.
— Quanto? — perguntei, num tom que eu mesma não reconheci.
— Não é dinheiro. É quem manda. A alcateia D’Ávila quer… quer um acerto direto.
O nome caiu no meu estômago como chumbo. D’Ávila. O Alfa que não precisava erguer a voz para que a cidade inteira a ouvisse.
— Você tem prova? — forcei, porque o hábito de enfermeira não me deixava aceitar diagnóstico sem exame.
— Têm meus passos, minhas conversas, a rota que eu passei. — Ele fungou. — Eu achei que dava pra driblar a intendência deles, só uma vez…
Fechei os olhos. A dívida de Heitor, fruto de um "só uma vez", nos cobrava.
— Onde você está?
— Virando a esquina do hospital. O recado é claro: "Hoje ainda." E o chefe vem, Mana. Ele.
O ar me faltou. 21h17. Seis horas de plantão. Sem margem.
— Fique longe da entrada principal. Esconda o rosto. Eu dou um jeito. — Destranquei a porta, ajeitei o jaleco. — E não atenda mais.
— Mana... me perdoa.
A ligação caiu. O corredor estava diferente, sombrio. Dei alta a uma febre, ajustei a máscara de um paciente e menti para a médica: "minha mãe passou m*l". No elevador, o espelho refletia uma mulher exausta após trinta e duas horas, mas preparada para o perigo. Na portaria, o segurança me deteve automaticamente.
— Funcionária precisa registrar saída — disse o atendente sem olhar.
— Emergência familiar. Trago o atestado — respondi com firmeza.
Ele ia reclamar, mas a porta abriu. Dois homens entraram, seguidos por Viktor D’Ávila. Alto, de terno escuro, com ombros largos e um olhar cinza que dominou a portaria. Ele emanava poder e treinamento, fazendo o segurança se enrijecer.
— Enfermeira Alina Duarte? — A voz dele não era uma pergunta, mas uma afirmação.
Meu cérebro correu por estratégias, todas inúteis sob seu olhar.
— Sou eu — confirmei, firme.
Ele assentiu. Um de seus homens checou o ambiente.
— Seu irmão aguarda lá fora, como instruído. — Sua voz era baixa, mas prendia a atenção. — Vim para evitar que tentem "dar um jeito" e se machuquem.
O segurança ensaiou uma intervenção:
— Senhores, isso aqui é…
— Um hospital. — Viktor inclinou o queixo, e o homem calou. — Exatamente por isso eu entrei.
Meu corpo quis recuar; minhas pernas avançaram. Havia uma disciplina no meu medo que eu reconhecia de outras noites: quando o caos chegava, eu ficava precisa. Apontei para a ala externa.
— Vamos falar lá fora. Eu não discuto nada perto dos meus pacientes.
Ele considerou por um segundo. Uma ruga de pensamento riscou-lhe o canto do olho. Assentiu. Os homens dele abriram caminho sem esbarrar em ninguém; e, no entanto, eu sentia as paredes nos observando.
A noite me recebeu úmida. Heitor estava a poucos metros, capuz no rosto, o corpo inteiro a pedido de perdão. Eu ergui a mão, pedindo que ficasse. Viktor parou ao meu lado, perto o bastante para que eu percebesse um cheiro de chuva e ferro, longe o suficiente para que nenhum gesto parecesse ameaça.
— O que ele fez? — perguntei, sem floreios. Eu já sabia metade; queria a outra metade pela boca certa.
— Tentou usar uma rota de intendência para passar mercadoria que não era dele. — Viktor não dramatizou a frase. — Foi pego nas câmeras internas. Mais do que isso: alguém estava esperando que ele fizesse, o que é o dado que me interessa.
Meu coração virou um punho fechado. Ele não estava ali para colecionar medo. Estava ali para compor um quadro maior.
— Nós devolvemos o que for preciso — falei, sabendo que não era o ponto.
— Não é sobre o objeto. — O olhar dele pousou em mim rápido e claro, e eu me vi ali, crua. — É sobre o precedente. E sobre quem está soprando dentro da minha casa.
Heitor deu um passo.
— Foi culpa minha. Eu pago. Eu…
— Não. — Eu ergui a mão sem olhar para ele. Eu precisava que Viktor me visse inteira. — Você quer o quê, exatamente?
O Alfa propôs um acordo para estancar a perda de tempo e conflitos: a família da protagonista seria protegida e perdoada das dívidas. Em troca, ela se casaria com ele por um ano e se mudaria imediatamente.
Ela questionou o uso da palavra "união", e ele esclareceu que era um casamento, necessário para estabilizar seu poder, pois uma "rainha" ao lado de um Alfa reduz os conflitos. Além disso, a união seria uma demonstração de força contra seus inimigos.
Irritada, acusou-o de querer usá-la como um símbolo. O Alfa, no entanto, argumentou que ela era eficiente e capaz de tomar decisões sob pressão, e ele estava investindo no que funcionava. Ela conteve o impulso de protestar, sabendo que havia questões maiores em jogo, como o bem-estar de Heitor.
— Quais são as cláusulas? — Perguntei, surpreendendo metade dos presentes.
— Exclusividade. Discrição. Um ano. — Ele não enfeitava. — Em troca, dívidas quitadas, proteção absoluta e seu sobrenome anexado ao meu em todos os registros que importam. E…
— E? — Não gostei do espaço entre nós com a palavra em suspensão.
— A marca antes da próxima lua. — A voz não elevou um milímetro, e ainda assim todos ouviram. — Não me interessa forçar rito; me interessa consolidar território.
Meu corpo respondeu antes de mim. Um arrepio subiu pelos braços, não de nojo, mas de alerta antigo. Marca. A palavra tinha história no meu corpo, e não era bonita. As paredes de memórias ameaçaram se erguer; derrubei cada tijolo com o pouco de ar que me restava.
— Eu não sou coleira — disse, e minha voz saiu como lâmina nova. — Se eu aceitar ouvir, será nos meus termos. E vou negociar cada cláusula até a última vírgula, inclusive essa.
Pela primeira vez, um brilho de algo — respeito, talvez — aflorou nos olhos de Viktor. Ele assentiu, quase imperceptível.
— Então ouça. — Ele estendeu a mão, não para tocar, mas como quem oferece um caminho. — Temos uma sala reservada no prédio da frente. Há testemunhas neutras esperando. Quero tudo escrito, assinado, claro.
Olhei para Heitor. O menino que eu criara nos intervalos dos meus plantões tremia como se a pele fosse uma roupa emprestada. Eu o amava mais do que amava a minha ideia de liberdade. A verdade, crua, ficou de pé diante de mim: eu não tinha luxo de heroísmo solitário. Eu tinha um irmão para manter vivo e uma família inteira para não entregar ao rumor.
— Eu vou ouvir — declarei, cada palavra um prego no chão que me sustentava. — Não assino nada que me desonre. Não abro mão do meu trabalho. Não aceito ser troféu.
— Você não é troféu — ele disse, rápido, como se aquilo lhe fosse importante. — É escudo e é lâmina. Se aceitar.
Uma sirene cortou a rua. Em algum lugar, alguém chorou. O hospital respirou como um organismo único. Eu guardei a mão no bolso, para impedir que tremesse. Dei dois passos, emparelhando com ele.
— Vamos. — Olhei de relance para Heitor. — Você vai para casa da tia Lúcia, agora. Sem desvios. Sem bravuras. Qualquer coisa, liga para a Dona Zuleide. Se sumir, eu sumo com o que restar de você.
Ele engoliu as lágrimas como quem engole uma pedra. Correu.
Atravessei a rua com Viktor em silêncio. No prédio, numa sala de vidro com testemunhas e papéis, ele me empurrou o acordo. — Leia. Risque. Acrescente. Preciso de um acordo, você do seu irmão vivo. — Peguei a caneta. Rabisquei, acrescentei. Vinte minutos depois, olhei para ele. — Eu aceito ouvir a proposta final e seguir adiante, mas não sem que você me garanta que nenhuma marca toca minha pele sem meu consentimento expresso e diante de testemunhas neutras. Ele assentiu. — Tem a minha palavra. E terá o documento. Levantei. — Quando começa o prazo? O cinza dos olhos dele escureceu. — Antes da próxima lua cheia.