Capítulo 2 - Fabiana narrando
Ele ainda estava vivo. Eu conseguia sentir o batimento fraco em seu pulso, ritmado e lento. O desespero me dizia que era só uma questão de tempo até ele acordar. E se ele acordasse e eu ainda estivesse ali… ele iria terminar o que começou. Ele iria me matar.
Meu corpo tremia inteiro. Não havia tempo para pensar, para refletir sobre o que eu tinha feito. Eu precisava sair dali o mais rápido possível. Corri até o quarto, abri o armário e peguei uma mochila pequena. Joguei dentro dela algumas roupas, documentos, remédios, celular e carregador. Em seguida, fui até o cofre embutido atrás da estante. A senha ainda era a data do nosso casamento. Irônico.
Dentro dele, uma quantia considerável de dinheiro. Felipe sempre guardava muito em espécie. Nunca confiei nisso, achava estranho, mas nunca questionei. Talvez porque, no fundo, sempre soube que o dia de fugir chegaria.
Fechei a mochila, respirei fundo, dei uma última olhada na sala destruída e nele, caído no chão. Sangue manchava o tapete. A imagem me embrulhou o estômago, mas fechei a porta e corri.
Sem direção, sem plano. Só o medo me guiava pelas ruas escuras. Virei quarteirões apressadamente, me escondendo das luzes, evitando cruzar com qualquer pessoa. Quando achei que estava longe o suficiente, liguei para a emergência. Dei o endereço da casa, disse que havia um homem ferido lá dentro. Desliguei antes que fizessem perguntas.
Peguei um Uber, usando o aplicativo do novo celular. Digitei o único lugar onde alguém poderia me ajudar. Um lugar onde jurei que nunca mais pisaria. O coração batia descompassado. Era tarde, quase uma da manhã, e o motorista olhava pelo retrovisor com desconfiança. Eu sangrava, estava suja, as roupas amarrotadas.
— Posso deixar a senhora até aqui — disse ele, parando o carro numa rua pouco iluminada.
— São só três quadras daqui... — ele hesitou. — Não seria melhor eu te levar a um hospital? Ou até mesmo à polícia?
— Não, obrigada — respondi com firmeza, entregando o dinheiro da corrida. — Eu preciso ficar aqui.
Ele assentiu, visivelmente desconfortável, e partiu.
Assim que desci do carro, o medo me apertou o peito. Eu não pisava naquele território há doze anos. A maioria ali não fazia ideia de quem eu era. E, para quem fazia... bastava um vacilo para que uma bala atravessasse minha cabeça.
— O toque de recolher foi às 21h — avisou um soldado com um fuzil em mãos, me encarando com desconfiança.
— Preciso falar com o Turco — respondi, tentando manter a voz firme.
— p**a dele? — zombou outro soldado, loiro e mais novo.
— Duvido — disse o ruivo que me abordara. — Se a madame dele descobre, mata ele.
— Quem é ela, Junior? — perguntou um terceiro, surgindo da sombra.
— Junior nem deixou ela falar ainda, não é, Mateus? — disse o loiro, rindo.
— Qual é, Pedro — retrucou Junior. — Ela quer falar com o Artur.
Pedro me olhou com mais atenção. Seus olhos estreitaram.
— Eu sou irmã dele — declarei, sem titubear. — Preciso muito falar com ele. Meu nome é Fabiana.
— Bibi? — uma voz familiar veio da direção da casinha que servia de guarita. Yuri. Ele saiu rapidamente, me encarando com espanto. — O que você tá fazendo aqui, garota? O que aconteceu contigo?
Suspirei aliviada. Yuri era um dos melhores amigos do meu irmão. Crescemos juntos. Eu sabia que ele não me machucaria — e também não deixaria ninguém fazer isso.
— Eu preciso de ajuda — pedi, a voz embargada. — Preciso falar com o meu irmão. Me deixa subir, me leva até ele.
— Ele está em uma reunião — respondeu, hesitante.
— Por favor — insisti, agora chorando. — Me ajuda, Yuri. Eu estou com muito medo. Eu preciso dele.
Ele me olhou por alguns segundos. Havia reprovação ali, talvez pelo meu passado, pelo homem com quem me casei. Ele não sabia dos detalhes, mas sabia o suficiente para desconfiar de mim.
— Eu vou te levar até a casa onde ele tá — disse por fim, cedendo. — Você se envolveu em uma briga?
— Eu preciso falar com ele.
Yuri assentiu. Entendeu que de mim não sairia nada além disso. Pelo menos não ainda. Eu não confiava mais em ninguém, além da minha família. Mesmo ali, rodeada de homens armados, eu não me sentia segura. Sabia que, se descobrissem quem eu era — e com quem eu era casada — não seria bem-vinda. Muito menos bem vista.
Chegamos a um barraco improvisado, uma espécie de quartel. As motos estacionadas na frente, a sujeira acumulada, o cheiro de cigarro forte no ar. Vozes exaltadas vinham de dentro, uma discussão acalorada.
— Por que você não me levou direto para a casa dele? — perguntei a Yuri, enquanto ele me mandava sentar num sofá velho e rasgado.
Ele não respondeu.
Meu corpo doía. Minhas costelas pareciam trincadas, a cabeça latejava. A alma? Essa estava em pedaços. As palavras de Felipe ecoavam como punhais: “Eu vou te matar, Fabiana. Depois vou matar seu irmão.”
Artur sempre disse que esse dia chegaria. Que Felipe não era homem de verdade. Que se escondia atrás de um distintivo, mas que no fundo era um covarde. Eu não quis ouvir.
A porta da sala se abriu bruscamente e um grupo de homens saiu de dentro. Devia haver uns seis. Todos me olharam com curiosidade e espanto. O último a sair foi ele.
Meu irmão.
— Fabiana? — disse, surpreso, os olhos fixos em mim. — O que você está fazendo aqui?
Levantei num impulso. Corri até ele, me joguei em seus braços e chorei. Chorei com força, como uma criança que acaba de escapar de um pesadelo. E era isso mesmo. Eu tinha escapado do pior pesadelo da minha vida.
Ele me abraçou, firme, forte. Como quem tenta manter os pedaços de alguém unidos.
— Me ajuda — sussurrei. — Ele queria me matar...
— Eu estou aqui — ele disse, com a voz mais calma que eu poderia ouvir naquele momento. — Fica calma. Eu estou aqui.