Ponto de vista de Jair "O Leão"
Quando Killey apareceu sozinho, meu coração já se apertou. Ao me aproximar, ele desabafou: dizia que Kira estava bem, mas algo em sua voz e no brilho evasivo dos olhos denunciava que havia mais por trás daquela afirmação. Mesmo assim, eu sabia que Kira era de fibra inquebrável—implacável e determinada, nunca se deixando abalar.
— Killey, por que Kira não voltou com você? — perguntei, intrigado e com uma nota de preocupação que não conseguia disfarçar.
— Ela simplesmente se lançou na floresta, lá perto do esconderijo do Dentuço — respondeu, a voz carregada de desdém, como se o episódio fosse apenas mais um detalhe irrelevante.
Enquanto ouvia, minha mente fervilhava de questionamentos sobre esses dois personagens tão distintos. Killey, embora não compartilhasse da mesma perícia tática de Kira, demonstrava habilidades bélicas impressionantes. Com seu rifle de assalto, operava com uma precisão quase cirúrgica, e suas manobras no boxe tailandês revelavam uma fluidez e letalidade que transformavam cada movimento em uma obra de arte combativa. Era, sem dúvida, uma máquina de guerra em combate individual, cuja determinação contrastava com a aura enigmática e quase invencível de Kira.
Não demorou muito para que Kira surgisse no acampamento, como se o destino a trouxesse de forma inevitável. Corri até ela com a ansiedade de uma criança em busca de doces em dia de Cosme e Damião¹.
— Kira, Kira, preciso te apresentar algumas pessoas — lancei, deixando transbordar o entusiasmo. — Lembra quando te pedi uma chance em Manaus? Pois bem, meu amigo Ghost e Iara, uma talentosa medicânica, querem se juntar a nós. Podemos levá-los?
Ela demorou um instante para responder, e foi então que a vi de uma forma que jamais imaginei: distante, como se estivesse perdida em um universo onde ninguém pudesse alcançá-la. Era um lado seu que nunca tinha presenciado, e essa vulnerabilidade me inquietou. Sempre a admirei por sua força e determinação, mas agora… algo a consumia. O que será que havia acontecido?
Porém, tão rápido quanto a sombra, ela se recompondo. Sua voz firme cortou o silêncio, decidida e segura:
— Sim, estava pensando em montar uma equipe.
Eu não me surpreendi. Kira nunca nasceu para seguir ordens; ela nasceu para comandar, para liderar com o coração em chamas e a mente afiada.
— Me conte mais, Kira — implorei, completamente absorto, perdendo-me no brilho intenso de seus olhos, onde sua mente dançava em mil ideias.
Ela estreitou os olhos, como se uma revelação a tivesse tomado. Um sorriso sutil surgiu em seus lábios antes de ela declarar, com convicção inabalável:
— K'Corp. Será chamada K'Corp, minha empresa de segurança especializada em missões de espionagem.
Senti meu peito aquecer com uma mistura de admiração e uma empolgação quase palpável. Kira era, de fato, extraordinária. Antes que eu percebesse, as palavras escaparam:
— Quero trabalhar para você.
Sem hesitar, ela aceitou, e a felicidade tomou conta de mim. Não era apenas a perspectiva do emprego, mas a chance de estar ao seu lado. Eu ansiava por conhecê-la além da guerreira implacável que o mundo via. Nunca me envolvi de verdade com ninguém; já passei por outras, mas nenhuma havia despertado algo tão intenso em mim. Mas Kira…
O calor se espalhou por meu corpo só de imaginar como seria estar com ela. Não era apenas desejo carnal—era uma fome, um fascínio arrebatador que me consumia.
Respirei fundo, buscando coragem. Precisava de um pretexto, algo sutil que me aproximasse ainda mais dela.
— Kira... quando chegarmos em Manaus, você poderia me apresentar a cidade? — perguntei, tentando disfarçar o convite como um simples passeio turístico.
Meu coração acelerava, cada batida um presságio do que viria a seguir, enquanto eu aguardava sua resposta.
Ela me encara com um olhar sereno, respondendo com uma tranquilidade que sugere desconhecer as verdadeiras intenções por trás do meu convite. Ou, talvez, se soubesse, não faria diferença para ela.
— Claro, mas, na verdade, não conheço muito bem Manaus. Eu raramente saio do prédio da Biocom. Na verdade... — ela hesita, como se uma lembrança distante a atingisse, e então sorri com uma sinceridade melancólica. — Que tal conhecermos a cidade juntos? Nunca tive a chance de realmente explorá-la.
Apesar da naturalidade com que trata o assunto, seu olhar, levemente perdido e introspectivo, me fere por dentro. Havia ali uma mistura sutil de nostalgia e resignação, quase imperceptível, mas que me dizia que por trás daquela proposta existia uma história silenciosa, talvez até uma dor que ela tenta esconder.
— Claro, eu vou adorar explorar a cidade com você, Kira — digo, enquanto toco suavemente seu braço num gesto de apoio discreto.
Ofereço a ela algo para comer e beber. Nesse instante, minha mente trava e, de repente, algo me atinge com genuíno espanto: os olhos de Kira, um de um azul hipnotizante e o outro ainda âmbar, lindos, mas antes dava para ver que era um ciberolho, mas não mais agora era uma pessoa com heterocromia completa². Ela percebe meu olhar surpreso, mas esboça apenas um sorriso cínico, como se já estivesse acostumada a provocar reações.
— Demorou notar, hein? — diz ela, com um tom que mistura desdém e humor. — Estava na sua cara... ou na minha, tanto faz.
O sorriso dela, carregado de um cinismo aterrador, deixa transparecer uma profundidade enigmática, revelando um mundo de emoções que se esconde por trás daquela fachada imperturbável.
— Kira, como? O que houve? Você pode me explicar? Noto um certo desconforto da parte dela então acabo me retendo — Mas senão quiser se abrir tudo bem, não importa, o que importa é que você está bem.
Ela me lança um sorriso condescendente, quase zombeteiro.
— E por mim, está realmente tudo bem — digo para ela, com uma leveza desconcertante. — Fico feliz por vê-la, não importa como esteja, com cyber ou sem. Eu só a quero.
Fico ali, encarando-a como um tölo apaixonado, perdido na presença dela. Ela ergue uma sobrancelha e faz um gesto sutil com a mão, sinalizando para que eu a siga. Meu coração dá um salto, e obedeço sem hesitar.
Ela nos guia para a parte mais afastada do acampamento, onde a luz das fogueiras mäl alcança. O silêncio ao redor é denso, quase opressor. Então, ela para e se vira para mim, seu olhar fixo no meu.
— Não se assuste. E mantenha o autocontrole, ok? — O sorriso que se forma em seus lábios tem algo de crüel, uma superioridade que me faz engolir em seco.
Antes que eu possa perguntar qualquer coisa, ela desembainha uma wakizashi. O brilho da lâmina sob a pouca luz faz meu estômago revirar.
— O que você...
E então ela corta.
O golpe é limpo, preciso. Seu braço cai no chão com um baque sürdo. Meu peito se aperta e o sangue some do meu rosto. Ela nem pisca. Nem um único gemido escapa de seus lábios. A dor deve ser insuportável, mas ela se mantém firme, como se fosse um detalhe insignificante.
Eu, por outro lado, sinto minhas pernas fraquejarem.
Ela ergue o que restou do braço, observando-o por um instante, e depois olha na direção de um monte de entulho metálico misturado a restos de plástico e cabos soltos. E então acontece.
Meu corpo cede. Caio no chão de bünda, atordoado pelo que vejo.
O braço dela começa a se restaurar sozinho, absorvendo os materiais ao redor. Fios serpenteiam por sua pele, placas metálicas se moldam como se fossem carne viva, e aos poucos o mëmbro perdido se reconstrói diante dos meus olhos incrédulos.
Sinto um nó se formar na garganta.
— Mas que porra... — sussurro, ainda tentando processar o que acabei de testemunhar.
Ela apenas sorri.
Ela se aproxima de mim, os olhos fixos nos meus, e sua mão desliza suavemente pelo meu rosto.
— É meio grosseiro, mas estou aprendendo a controlar isso… Eu acho que estou começando a entender. — Sua voz tem um tom curioso, quase fascinado. — Meu corpo sabe do que precisa, e se recupera praticamente sozinho. Mas não é só isso…
Sem mais explicações, ela se vira e começa a adentrar a floresta. Seu olhar atento percorre o ambiente, como se estivesse caçando algo invisível para mim. Então, para abruptamente, aponta para um ponto à frente.
— Olhe.
Meus olhos seguem a direção indicada e, entre os galhos, vejo um macaco-aranha, pendurado e observando-nos com desconfiança. Antes que eu consiga dizer qualquer coisa, ela age.
Com um movimento brusco, arranca o próprio braço de metal recém-formado. O som do metal se separando do corpo me dá um arrepio, mas o que acontece a seguir me paralisa.
Vejo apêndices finos, quase como veias translúcidas, se estendendo do coto onde antes estava o braço. Eles se movem como fios de cabelo ao vento, sinuosos e vivos. Então, num instante terrível, eles disparam em direção ao macaco.
O animal se contorce, solta um guincho agonizante, mas não há como fugir. Os apêndices o envolvem, e o impossível acontece diante dos meus olhos. O macaco começa a se dissolver, sua pele derretendo como cera ao calor, seu corpo sendo sugado para dentro dela, consumido célula por célula.
Engulo em seco, minha mente em um turbilhão.
Então, como se fosse um mecanismo perfeitamente programado, os apêndices se retraem para dentro do corpo dela. E o espetáculo continua.
Primeiro, os ossos começam a crescer novamente, emergindo do nada, brancos e limpos como marfim polido. Depois, os apêndices saem mais uma vez e começam a recobrir os ossos, formando músculos, tendões e, por fim, pele. Em questão de segundos, ali está um braço novo, perfeito, como se nunca tivesse sido arrancado.
Estou em choque. Meu corpo está travado entre a paralisia do espanto e algo que me consome de dentro para fora. Excitação.
Minha mente tenta processar o que acabou de acontecer, mas um pensamento se sobrepõe a todos os outros, pulsando como um tambor: ela confiou em mim para me mostrar isso.
Olho para seu rosto e vejo algo mais do que orgulho. Há excitação em seus olhos, um brilho quase infantil de descoberta. Isso é novo para ela também. Tenho quase certeza disso.
E, de alguma forma, isso só torna tudo ainda mais fascinante.