Ponto de vista de Alessandro
A cena que vi nos monitores ainda pulsa na minha mente como um pesadelo que não consigo acordar.
Kira. Minha agente. Minha subordinada. A mulher em quem eu depositei mais confiança do que em qualquer outro nesse maldito inferno. Ela me enganou. E agora, tudo que sinto é um misto de fúria, incredulidade e nojo de mim mesmo por não ter percebido antes.
Ela não é só rápida. Não é só forte.
Eu vi o que ela fez com aqueles homens caídos. Vi o instante exato em que o toque dela se tornou algo diferente. Os apêndices saiam de seus ferimentos, aderindo aos corpos e iniciando o processo, as células dos corpos deles colapsando, sendo sugadas, como se os estivessem devorando vivos e os absorvendo. Se reconstituindo enquanto eles se desconstruiam.
Isso não é treinamento. Não é biotecnologia de elite. É algo mais. Algo que beira o abismo entre o humano e o monstro.
E ela escondeu isso de mim.
Eu sou o chefe dela. O chefe dela, pörra!
Eu me arrisquei por ela. Apostei tudo na ideia dela, eu ia contar que aceitei a ideia dela, afinal é genial, mas agora temo suas reais intenções. A chamei para essa viagem para poder me aproximar, para conhecê-la. E em troca, recebi segredos, dissimulação, golpes pelas minhas costas.
O pior é que eu não sei mais quem ela é.
Se é mesmo Kira, ou só um invólucro. Um receptáculo de algo maior, mais perigoso, mais incontrolável.
E o fato dela ter mantido isso em segredo não é só uma quebra de protocolo.
É uma traição pessoal.
Eu a amo. A admiro, mas ela parece tão distante. Porque alguém como ela iria olhar para mim.
Mas vou confrontá-la. Ela vai ter que me dar respostas.
Nem que eu tenha que arrancar essas respostas à força.
Eu atravesso o corredor destruído como um furacão. Os escombros rangem sob meus sapatos, corpos jazem largados nas laterais, e o cheiro de pólvora e sangue ainda paira no ar como uma nuvem espessa. Mas nada disso me detém. Meus olhos estão cravados na única coisa que me importa: Kira.
Ela está parada no centro do caos, o sangue ainda escorrendo pela armadura danificada, a monokatana pingando em silêncio ao lado do corpo. Respira com força, mas está inteira. Intacta. Como se tivesse acabado de sair de um treinamento — não de um mässacre.
Eu paro ficando frente com ela, meus punhos cerrados.
— O que diabos é você? — pergunto, a voz baixa, mas carregada de uma raiva sufocada.
Kira se vira, surpresa com o tom. Os olhos dela me encaram, intensos, alertas. Mas não há culpa neles. Isso me irrita ainda mais.
— Você mentiu pra mim. — Eu avanço dois passos, minha expressão enrijece. — Você omitiu. Você absorveu dois homens. Sugou eles vivos. Como se fosse uma arma biológica ambulante. — Meu tom cresce. — E nem teve a decência de me contar quem ou o que você realmente é!
— Alessandro… — ela começa, mas eu ergo a mão.
— Não. Não tenta suavizar. Eu vi. Eu vi tudo. Não dá mais pra fingir que você é só uma agente especial com aprimoramentos. Você é algo muito além disso. E você achou melhor esconder de mim. Do homem que confiou em você mais do que em qualquer outra pessoa nesse sistema de mërda.
O silêncio entre nós pesa. Só o som dos estalos do concreto rachado e o caos urbano interrompem o momento.
— Você quer saber o que mais me revolta? — continuo, dando mais um passo à frente, a voz embargada pela dor disfarçada de fúria. — Eu teria aceitado. Eu teria te protegido. Poderíamos ter trabalhado juntos com isso. Mas você me excluiu. Me manteve à margem como se fosse só mais um chefe quando, pörra, eu achei que a gente fosse mais que isso.
Meus olhos se fixam nos dela, buscando auxílio, compreensão ou uma explicação.
Nada é dito.
— Então fala, Kira. Me diz o que você é. Me diz por que eu continuo aqui, tentando entender, tentando saber se quando eu pedi para me deixar entrar, para me deixar fazer parte dos seus planos e de sua vida, se você tinha alguma intenção de fazê-lo?
Kira permanece imóvel por um instante. A respiração controlada. A pele com ferimentos a bala, vai se recompondo aos poucos. Seus olhos não refletem raiva, nem medo — apenas um vazio incômodo, denso, difícil de decifrar.
Ela ergue o olhar para mim, e sua voz sai baixa, firme, quase cirúrgica.
— Eu não escondi por malícia, escondi porque não sei quem eu sou.
Ela dá um passo à frente. O brilho metálico de sua pele danificada cintila sob a luz quebrada do corredor.
— Eu acordo todos os dias com perguntas que não têm resposta. Minhas memórias são sombras. Fragmentos. E tudo o que me resta é o instinto. — Seus olhos se apertam levemente, como se as palavras pesassem. — E o meu instinto diz que eu preciso me proteger e inexplicavelmente preciso te proteger. Que contar demais nos torna vulneráveis.
Ela pára, me encarando com algo entre ansiedade e dor contida.
— Não é sobre você. Não é sobre confiança. É sobre sobrevivência. Se eu mostrar quem eu realmente sou, as coisas ficariam difíceis para o Sr e para mim.
A mão dela, ainda suja de sangue, aperta a empunhadura da monokatana com força. Mas sua voz permanece fria.
— Então, por enquanto é assim que precisa ser.
Ela se vira, mas antes de dar o primeiro passo para longe, completa com um tom mais sombrio:
— Eu queria poder ser outra coisa, Alessandro. Mas tudo o que eu tenho é o que fui feita pra ser. Ela fala com um leve pesar na voz.
Eu quero segurá-la. Dizer que a amo como ela é — com tudo, o sangue, a frieza, sua disciplina, até o vazio que carrega nos olhos. Mas não posso.
Não sou só um homem agora. Sou o vice-diretor da BioCom. E o que acabei de ver, o que Kira é, ultrapassa qualquer protocolo, qualquer nível de segurança ou controle. Será que existem arquivos sobre ela?
Ela não é apenas uma soldado aprimorada. Nem uma cobaia que sobreviveu. Ela é uma força da natureza vestida de carne e aço. E o pior ela nem sabe quem foi. Ou talvez saiba, e simplesmente opta por esconder isso também, já nem sei mais.
Penso no plano que ela me apresentou dias atrás, com aquela frieza calculada.
Vendo o que ela acabou de fazer — como absorveu o corpo daquele inimigo, como moldou os restos metálicos ao redor de si — uma parte de mim congela.
O que mais ela é capaz de fazer?
Saio do torpor quando um estrondo corta o silêncio. Ouço metal sendo retorcido, destroços sendo empurrados com brutalidade cirúrgica.
Kira se agacha diante de uma porta deformada, um armário de limpeza. Ela afasta um pilar partido com facilidade, e então finalmente consigo ver Aurora, encolhida lá dentro, ofegante.
— Você está bem, Aurora? — a voz dela sai calma. Precisa. Fria como sempre.
Nada ali soa emocional. Nenhum tremor, nenhum traço de alívio ou empatia. Apenas uma linha de ação. Uma prioridade resolvida.
Fico parado. Ainda atordoado. Eu a confrontei, gritei, questionei e ela seguiu. Como se nada daquilo tivesse importância.
Ou será que tem — mas ela simplesmente não pode se importar?
Sinto um peso esmagador no peito. Estou mais desnorteado do que jamais estive em minha vida. Parado diante de uma mulher que amo — sim, amo — e que, ao mesmo tempo, parece completamente desprovida de sentimentos. Como se fosse feita de aço. Fria, inabalável, impenetrável.
E ainda assim é ela que consome meus pensamentos. Ela, que domina o ambiente com a naturalidade de quem já nasceu à frente de todos.
Minha mente tenta buscar lógica, tenta entender como cheguei até aqui. Volto a pensar na trajetória de Kira, no que já sei, no que ainda é sombra. E então surge um novo sentimento: revolta.
Douglas.
O quanto ele sabe sobre ela?
O que ele está escondendo?
Será que me manipulou também?
A raiva sobe como calor pelo peito. Os pensamentos me sufocam, embaralham, quando ouço passos suaves se aproximando. Kira.
Ela caminha com tranquilidade, sem pressa, sem medo. Como se tudo estivesse sob controle — como sempre parece estar. Pára, a poucos metros de mim, e diz com a calma:
— Alessandro, posso pedir para não comunicar nada ao Douglas? Sobre o que viu hoje.
Meu mundo simplesmente desaba.
Como ela sabe o que eu estava pensando?
É absurdo.
E, por mais incrível que pareça, é cientificamente plausível. Eu mesmo conheço a teoria. Mapeamento neural, leitura de microexpressões, empatia treinada a níveis impossíveis para humanos comuns. Ou existe algo além disso?
Vou conversar com aquele amigo neurocientista. Preciso entender o que está acontecendo.
Respiro fundo, tentando não demonstrar o quanto estou abalado. Mas minha voz sai carregada, cheia de súplica, de um desespero contido:
— Não se preocupe, Kira não irei falar nada. Mas eu preciso entender. Eu quero ajudar. Por favor. Eu sei que você foi modificada para o combate, mas eu não sei quem você era. E, pelo que entendi, você também não sabe, certo?
— Mas você sabe algo. Não sabe?
Ela desvia o olhar por um instante.
A primeira rachadura em sua couraça.
Seu tom, ao responder, não é frio. É pesado. Carregado de algo que reconheço como verdade.
— O que eu sei sobre meu projeto, não posso lhe contar ainda. — Seus olhos voltam aos meus, firmes, letais. — Preciso de mais provas. Mais testes. Certezas.
A frustração arde como fogo sob minha pele. Mas não discuto.
Não posso.
Ela está tentando. À maneira dela.
E mesmo sem respostas eu estou ainda mais certo de uma coisa:
Irei aguardar quando ela quiser e puder se abrir comigo.
Por enquanto, vou convidá-la para sair. Sei que ela manda muito bem nas corridas de moto, e quero levá-la para uma aqui em Brasília. Mas, antes disso, tenho um refém sob custódia — e vou interrogá-lo.
Confesso, vou adorar essa parte.