Ponto de vista de Aurora
Um ano e três meses se passaram desde Jason. Já é dezembro novamente. O fim de mais um ciclo. Dois anos desde a morte da minha irmã Amanda. Cinco desde que meus pais e irmãos foram levados naquele maldito acidente. O tempo passa, mas o peso não diminui. Ele só aprende a se esconder em cantos diferentes da alma.
O clima no escritório está estranho hoje. Alessandro está mais sombrio do que o habitual — o que já é muito vindo dele. Douglas, por outro lado, parece... feliz. Curiosamente feliz. Isso me inquieta. Dezembro é o pior mês do ano para qualquer um que conheceu Amanda de verdade. Ainda assim, ele anda saindo mais cedo, sorrindo em momentos inesperados. Ouvi dizer que tem passado horas no laboratório do Dr. Schumaker. E, hoje, saiu acompanhado.
Ela.
Alta. Atlética. Presença marcante. Há algo de hipnotizante e ameaçador nela. Ela é lindíssima, perfeita até demais, tão perfeita que circulam boatos de que foi construída, moldada a partir de um corpo descartado, uma indigente. Há algo nela que me parece familiar.
Quando passam por minha mesa, sinto um arrepio percorrer minha espinha. Ela desacelera o passo, pára por um instante. Seus olhos se fixam no ursinho de pelúcia que mantenho ali, como uma relíquia. Um presente de Alessandro para Amanda no primeiro aniversário de namoro. O olhar dela, não é só de curiosidade. É algo mais profundo. Quase triste. Como se aquele pequeno objeto evocasse uma memória. Ou despertasse uma dúvida.
Naquela noite, sozinha no escritório vazio, faço o que venho aperfeiçoando há mais de um ano: invadir. Fuçar. Espionar.
Sinto culpa?
Não.
Sinto necessidade.
Entro na sala de Douglas. Como secretária, tenho acesso a muita coisa — mas não a tudo. E é justamente o que está protegido que mais me interessa.
Não hesito.
Conecto o cracker.
Estou dentro.
Vasculho relatórios, bancos de dados, arquivos escondidos. Até que algo me fisga: um estudo sobre um parasita genético capaz de modificar completamente o organismo humano, transformando todas as células em células-tronco. Um nome salta diante de mim, como uma faca gelada cravando o peito: Kira. Será aquela mulher com Douglas? Então seu nome é Kira...
Meu coração acelera. Há algo muito errado acontecendo. E não posso mais fingir que não vejo.
Então ouço.
Um som.
Um estalo seco.
Congelo.
Tinha certeza de que os escritórios estavam vazios.
É véspera de Natal. Todos foram para casa. Todos menos eu. E, aparentemente, alguém mais.
Abro a gaveta de Douglas com mãos ágeis. Retiro a pistola que ele sempre guarda ali.
Silenciosa, sigo o som. Cada passo é uma oração muda.
Uma porta entreaberta. Luz fraca. Respiração contida.
Ali está ela.
Encolhida. Uma garota. Seus olhos se arregalam ao me ver, mas ela tenta sorrir — um gesto patético, como se tentasse parecer inofensiva.
Aponto a arma.
— Quem é você? — minha voz sai firme. Cortante.
Ela levanta as mãos, devagar.
— Meu nome é Teresa... eu estou aqui só para... para...
Ela gagueja. Treme. Respira fundo. Engole em seco. E então solta num sussurro:
— Eu estou atrás de informações. Uma pessoa me contratou. Estou investigando sobre o atentado.
Minha mente se acende.
O atentado. Amanda.
Baixo a arma apenas alguns centímetros, confusa.
— Por que você acha que encontraria algo aqui sobre isso?
Ela hesita. Seus olhos buscam os meus. Está decidindo se pode confiar. Então responde:
— Porque a ligação que passou informações ao homem que atirou contra o veículo onde estavam Amanda e Alessandro... saiu deste prédio. Mais especificamente: deste andar.
Meu estômago dá um nó.
— Como você pode afirmar isso?
Ela dá um meio sorriso, ainda tensa, mas agora com mais segurança.
— Porque eu interceptei a ligação. Eu ouvi tudo. E, após apurar alguns dados, vendi a informação. — Ela baixa os olhos. — Sou uma Mídia. Tô começando ainda. Precisava de dinheiro. Contatos. Aliados.
Minha voz mäl sai. Um sussurro, rouco:
— E para quem você vendeu?
Ela ergue os olhos. E sorri. Há dor e ironia naquele sorriso.
— Óbvio, né? Para o noivo da vítima. Alessandro. O melhor amigo do mandante.
Sinto como se tivesse levado um tiro.
O mundo gira ao meu redor. Tudo desaba em um segundo.
Dois anos de dúvidas. Dois anos tentando encontrar um motivo.
Agora tudo faz sentido.
A ligação existia.
O atentado não foi um acaso.
Douglas...
Douglas amava Amanda... não amava? Ele parecia tão feliz por ela, porque?
E mesmo assim... ele mandou?
Respiro fundo, me forço a manter o controle. Ajo como aprendi a agir: racional. Fria. Calculista. Dou um passo em direção a Teresa.
— Se você realmente quiser saber tudo, podemos nos unir — digo, os olhos semicerrados, escolhendo cada palavra. — Eu compartilho o que sei, e você me conta o que descobriu. Não adianta mais esconder. Eu sei que tem algo acontecendo e tem algo haver com essa tal de Kira.
Ela permanece em silêncio por alguns segundos. Seus lábios tremem levemente.
Então eu pressiono:
— Tudo gira em torno de dois projetos ultra-secretos: o N.E.P.H.E.S. e o Projeto Berserk. Hackeei os arquivos há pouco. Também encontrei algo chamado Projeto Anastasys. Parece anterior à criação da Kira. Algo inacabado. Uma base primitiva, talvez.
O olhar de Teresa vacila. Mas então ela se endireita, como se tomasse coragem para encarar um demônio antigo.
— Aurora, tem algo que você precisa saber — diz ela, em voz baixa, carregada de peso. — Existe uma chance, uma possibilidade real de que o corpo da Amanda tenha sido usado para criar Kira.
O ar sumiu da sala.
— O quê...? — minha voz mäl sai.
— Não!! Não pode ser — Falo mais alto do que pretendia, dando um passo para trás, o coração disparado. — Você está dizendo que a minha irmã pode estar viva? Que ela... que ela é a Kira?
— Talvez não viva como você a lembra. Talvez nem tenha consciência disso. Mas sim. Existe essa possibilidade. E se for verdade, precisamos descobrir tudo rapidamente.
— Eu sei como isso soa — continua Teresa, agora com firmeza, os olhos decididos. — Ainda não tenho provas definitivas. Mas com os dados que você encontrou, podemos cruzar informações. Descobrir mais.
Me sento, atônita. As mãos tremem.
— Por que fariam isso? Por que ela?
— Porque Amanda tinha algo especial — diz Teresa, com uma reverência na voz. — A ficha médica dela está aqui, na BioCom. A doença dela não era polimiosite. Descobriram que o corpo dela não estava se destruindo, mas se modificando. Não consegui acesso aos detalhes, mas...
Douglas cuidava de tudo...
E pensar que eu cogitei, por um momento, que Amanda e Douglas...
Dou uma risada seca. Sem humor. Envergonhada por ter cogitado aquilo dela.
— Mas, por que ela confiaria em Douglas, e não em Alessandro?
— Acredito que ela não sabia no que iria se tornar — disse Teresa, num tom mais contido, mas ainda firme. — Tinha medo de ser rejeitada. Ou que ele não aceitasse o que ela viria a ser.
Ela deu de ombros, como quem reconhece os limites da própria compreensão.
E, de algum modo, eu sabia que ela estava certa. Amanda sempre se importou com o que os outros sentiam. Se doava demais. E, infelizmente, se deixava afetar pelas expectativas alheias. Era sua maior força e sua maior vulnerabilidade.
Depois daquela conversa, comecei a reunir tudo o que podia. Vasculhei arquivos, invadi sistemas, cruzei dados. Cada descoberta me arrastava mais fundo. Eu observava Kira de longe, com o coração preso entre a dúvida e a urgência. Era ela. Tinha que ser. Mas podia não ser também. Ela era tão diferente, tão distante da Amanda que eu conheci.
As perguntas se multiplicam, as certezas se fragmentam. A verdade pesa — e não há manual para o que se faz com ela. Por enquanto, só posso carregar. Em silêncio. Observando. Esperando.
Recentemente, conheci Logan. Ela o apresentou a mim. Eles estavam num Shopping. Logan estava cauteloso no início, como era de se esperar — ninguém confia facilmente nesse mundo. Mas o que me abalou não foi a desconfiança dele. Foi o que encontrei ali.
Analisa. Minha irmã. Viva.
Teresa hesitou antes de falar. Tentou dizer que havia esquecido de comentar ou que nao viu como, eu me ligava a Analisa e Kira, mas acho que foi outra coisa e todo o quadro geral era agora nebuloso. Seus olhos desviaram por um instante, como se ponderasse até onde deveria ir.
A conversa que se seguiu foi um turbilhão. Emoções que eu havia trancado, enterrado no abismo mais profundo da minha alma, emergiram com uma força que me assustou. Chorei. Chorei como não chorava há anos. Falei de nossos pais, do meu irmão, da irmã que perdi — ou achava ter perdido. Falei da dor insuportável de perdê-los, da solidão que me consumiu aos poucos, e do peso de ter que continuar respirando quando tudo em mim implorava para parar.
Mas então Analisa, com a serenidade de quem já enfrentou o impossível, me olhou nos olhos e disse algo que simplesmente dilacerou o que restava da minha estrutura:
— Eles estão vivos.
As palavras ecoaram como um tiro no escuro. Meu mundo inteiro desabou de novo, só que dessa vez por outro motivo. Era como se eu tivesse sido arrancada da realidade e jogada em um pesadelo confuso demais para ser real — mas ainda assim era.
Na sequência, ela começou a falar sobre coisas que até então só eu e Teresa sabíamos. Informações que mantínhamos em sigilo, até mesmo de nossos aliados mais próximos. Fragmentos de verdades mäl costuradas, detalhes que ainda não compreendíamos completamente. E agora, repentinamente, elas estavam expostas — e vindas da boca da minha irmã, que até semanas atrás eu acreditava estar morta.
Já se passaram duas semanas desde aquele dia. Desde que minha noção de realidade foi esfacelada e substituída por uma sucessão de verdades impossíveis. E eu ainda não sei exatamente como me sentir. Ainda não sei o que pensar, o que aceitar, o que negar.
Nesse meio-tempo, Alessandro me mandou vir até Brasília. Queria que eu o representasse em um congresso. Após o evento, haverá uma licitação importante para a implantação de um polo de desenvolvimento biotecnológico. Um projeto estratégico — e Alessandro quer garantir que terá espaço nisso.
Aceitei. E, sinceramente, estou aliviada por ter vindo.
Preciso de novos horizontes. Um deslocamento físico que talvez me ajude a reorganizar o que sobrou de mim por dentro. Estou aqui há três dias, e hoje fiquei sabendo que Alessandro virá também e trará Kira com ele.