Ponto de vista de terceira pessoa
Assim que a picape passa rente a um beco escuro, Kira aproveita o momento. Com um movimento preciso, ela se solta das ferragens e se impulsiona para fora, jogando o corpo no ar antes de rolar sobre o chão áspero. O impacto levanta poeira e arranha sua jaqueta, mas ela se recupera rapidamente, deslizando para uma posição segura dentro da sombra dos prédios.
Killey, mesmo sentindo o ombro latejar, sabe que precisa fazer o mesmo. Com menos elegância e muito mais gemidos de dor, ele se solta e cai pesadamente no chão. O choque do impacto arranca um grunhido de sua garganta enquanto ele rola algumas vezes antes de finalmente parar, ofegante.
Kira se aproxima dele com um olhar analítico.
— Se você gemer mais alto, vão achar que estou te matando.
Killey estreita os olhos, respirando fundo para conter a dor.
— Me sinto quase morto… Então, tecnicamente, não estaria errado.
Ela ignora a piada e inspeciona o ferimento. O corte no ombro é profundo, mas nada que vá matá-lo. Ainda assim, se não for tratado, pode ser um problema.
Sem hesitar, Kira saca uma seringa hipodérmica do bolso interno da jaqueta e a pressiona contra a pele de Killey.
— Isso vai arder um pouco.
Antes que ele possa protestar, o líquido entra em sua corrente sanguínea, e quase imediatamente, os nanoides começam a agir. A dor dá lugar a uma sensação de calor estranho enquanto os microrrobôs trabalham para regenerar o tecido danificado.
— Ugh… Você devia avisar antes! — reclama ele, massageando o local.
— Você ainda estaria resmungando. Agora encosta aí e fica quieto — ordena Kira, já se afastando.
Ela percorre o beco com cautela, os olhos vasculhando o ambiente em busca de algo útil. Sua prioridade agora é obter informações. Se a Cidade da Sucata for minimamente organizada, deve haver um terminal de dados por perto.
E, para sua surpresa, há.
Na parede lateral de um edifício coberto de neon e placas holográficas piscantes, um terminal público está embutido em um suporte metálico gasto. A tela, apesar das marcas de uso e poeira acumulada, parece funcional.
Kira se aproxima e conecta um pequeno dispositivo ao painel lateral do terminal. O equipamento pisca em um tom azul suave enquanto começa a extrair informações.
Na tela, um mapa detalhado surge. Para alguém de fora, a Cidade da Sucata poderia parecer um amontoado caótico de construções improvisadas e ruas sem planejamento, mas a realidade é diferente.
Os bairros são separados por cores distintas, como um código territorial. Há uma legenda bem estruturada indicando zonas comerciais, industriais e habitacionais. Estabelecimentos de todos os tipos estão marcados: bares, oficinas mecânicas, mercados clandestinos e até pontos de táxi e transporte público.
Kira arqueia uma sobrancelha.
— Isso aqui é bem mais organizado do que criminoso…
Ela solta um riso seco, reconhecendo a ironia. Mesmo sendo um lugar dominado pelo crime, há um sistema funcional por trás de tudo. Provavelmente um equilíbrio entre caos e controle, onde a ordem existe apenas para manter os negócios fluindo sem interrupções.
Atrás dela, Killey observa com curiosidade.
— Então, já sabe para onde vamos?
Kira não responde imediatamente. Seus olhos analisam as informações na tela, buscando algo específico. Um ponto de interesse, um nome conhecido, qualquer coisa que indique o melhor caminho a seguir.
Kira analisa o mapa na tela do terminal, os olhos percorrendo rapidamente os pontos de interesse. Então, algo chama sua atenção.
— Aqui. — Ela aponta para um nome na tela. Copo Sujo.
Seu olhar se estreita, um pressentimento se formando em sua mente.
— Precisamos ir até esse bar.
Killey, ainda massageando o ombro parcialmente regenerado, franze a testa.
— Ok. Mas o que te faz pensar que tem algo lá? Quero dizer, você sequer conhece esse lugar. — Seu tom carrega um leve desdém, como se questionasse a lógica da decisão dela.
Kira não desvia os olhos da tela enquanto responde, sua voz firme e analítica, carregada de um raciocínio frio e calculista.
— Se você fosse um sicário que acabou de extraditar alguém, recebeu uma bela grana pelo trabalho e entrou em um território onde pode conseguir qualquer tipo de contato e armamento, você simplesmente iria embora imediatamente? Ou iria a um bar movimentado para curtir e comemorar uma missão bem-sucedida?
Ela finalmente se vira para encará-lo, o brilho de desafio em seu olhar.
Killey abre a boca para retrucar, mas então percebe a lógica impecável por trás do que ela disse. Não é apenas um pressentimento, é um raciocínio estratégico baseado em comportamento previsível.
Ele solta um suspiro, surpreso com a velocidade com que ela conectou os pontos.
— Tá bom… — murmura ele, desviando o olhar por um momento antes de assentir. — Faz sentido.
Sem dizer mais nada, Kira fecha o terminal e recolhe seu dispositivo.
— Então vamos. Quanto mais rápido chegarmos lá, melhor.
Killey apenas concorda com um aceno.
Enquanto os dois se preparam para deixar o beco, uma nova questão paira no ar: se a teoria de Kira estiver certa, o Copo Sujo não será apenas um bar qualquer. Ele pode estar repleto de assassinos de aluguel, mercenários e informantes.
E um único passo em falso pode transformar a busca por respostas em uma luta pela sobrevivência.
Como uma ironia do destino — ou talvez apenas a natureza implacável da Cidade da Sucata — Kira e Killey são barrados assim que tentam entrar no Copo Sujo.
Dois brutamontes, altos e robustos como muralhas vivas, bloqueiam a entrada com posturas firmes e expressões impassíveis. Um deles, de cabeça raspada e cicatrizes cruzando a sobrancelha, dá um passo à frente e foca seu olhar especialmente em Kira.
— Cadê o passe? — sua voz soa como um trovão abafado, carregada de autoridade.
Kira não faz a menor ideia do que seja esse passe. Mas, considerando o lugar, supõe que seja algum tipo de autorização para circular livremente pela cidade — algo exigido de forasteiros.
Seu cérebro trabalha rápido. Hesitar ou demonstrar incerteza pode ser fatal. Então, ela blefa.
— Meu passe está com meu chefe, o Sr. Barney. — Sua voz sai firme, sem hesitação.
Os brutamontes se entreolham, trocando um olhar breve, mas significativo. Kira percebe o momento em que a dúvida os atravessa — a menção de um nome específico cria um ar de credibilidade na mentira.
O outro segurança, um homem de pele escura e braços cobertos de tatuagens tribais, cruza os braços e solta uma risada nasal.
— Barney já tá lá dentro faz um tempo. Tá no mezanino.
Sem mais questionamentos, os dois abrem caminho.
Kira passa sem sequer olhar para trás, e Killey a segue de perto. Apenas quando já estão dentro do bar, longe do alcance dos seguranças, Killey solta o ar que nem havia percebido que estava prendendo.
— Mas você nem tinha certeza! — sussurra ele, ainda surpreso com o risco que ela correu.
Kira dá de ombros, completamente indiferente.
— A única certeza era que, mentindo ou não, não tínhamos o passe e nada mudaria isso. Então arrisquei.
Killey pisca algumas vezes, absorvendo a lógica fria e implacável dela.
— Você é maluca.
Kira finalmente esboça um sorriso de canto, carregado de ironia.
— E funcionou, não funcionou?
Sem mais palavras, ela avança pelo bar, deixando Killey com um misto de admiração e inquietação.
Ao subir ao mezanino, Kira avista o Sicário Barney, o homem responsável pela extradição da agora Dra. Kelly Chambers. Ele está cercado por algumas pessoas, provavelmente sua equipe. No entanto, algo chama a atenção de Killey: nenhum deles estava no porto no dia da missão.
Enquanto Kira sobe as escadas, Barney a encara fixamente. Ele conhece, ainda que de forma superficial, a reputação da Onna-bugeisha, e isso o deixa apreensivo. O que ela quer com ele? Por que veio procurá-lo? Essas perguntas passam por sua mente enquanto os dois ficam frente a frente.
— Olá, Barney. Você cumpriu uma missão que muito me interessa. Agora que seu contrato com a Dra. Chambers foi concluído, está livre para aceitar um novo comigo, certo?
Kira sabe bem como funciona o mundo dos mercenários. Um contrato firmado precisa ser cumprido, caso contrário, a reputação do mercenário é destruída. Mas Barney já havia terminado sua obrigação anterior, e informações podem ser vendidas para quem estiver disposto a pagar.
O que ela ainda não sabe é que Barney não está na Cidade da Sucata por acaso. Ele aceitou esse trabalho por um único motivo: sua irmã foi capturada e será vendida no mercado de escravos que começa hoje, às duas da madrugada. O tempo está contra ele. E, de certa forma, a presença de Kira ali parece uma providência do destino.
— Kira, que prazer tê-la aqui. Precisa de algo meu? Informações, talvez? — diz Barney, com um sorriso de quem sabe que está no controle da situação. E, de fato, ele está.
— Qual é o seu preço, Barney? — Kira vai direto ao ponto. Já entendeu que ele ainda está em missão. Afinal, sua equipe está ali: seis sicários de aparência intimidadora e fortemente armados. Homens preparados para uma guerra.
— Preciso que resgate uma pessoa para mim. Faça isso, e lhe darei as informações que procura, talvez até um bônus. Quem sabe? — Barney fala com um tom confiante, seguro de si.
— Certo. Quem precisa ser resgatado? — Kira pergunta sem rodeios.
— Minha irmã. Ela foi raptada e será vendida no mercado de escravos que começa em três horas. — Barney solta a informação sem cerimônia, direto ao ponto.
— Ok. Para que direção fica esse mercado? — Kira questiona, já imaginando que o leilão seja itinerante. E sua suposição está correta.
— O local muda a cada evento, e apenas os compradores têm acesso à informação. Mas, para sua sorte, eu tenho. — Ele sorri de maneira sarcástica.
— Me passe a localização, e você terá sua irmã de volta antes do que imagina.
Barney, sem perder tempo, acena positivamente e entrega um documento a Kira.
— Esse é o passe. Com ele, poderá negociar e circular livremente pelo local. — Ele sorri de forma cínica antes de continuar. — Vamos ver se você é tudo aquilo que dizem.
Ele se levanta e, sem olhar para trás, segue acompanhado de seus sicários. Antes de desaparecer pelo caminho, finaliza com um aviso firme:
— Amanhã, aqui, até às dez da manhã. Sem falta.
Os caminhos se separam. Kira e Killey partem sem hesitação, avançando rumo ao mercado de escravos. Cada passo os aproxima do perigo, mas também de seu objetivo. A missão de resgate começa.