Ponto de vista de Killey
Cheguei a Manaus e fui direto ao prédio da BioCom. Na minha mente, aquele era o único lugar que realmente conhecia — e eu tinha uma missão a cumprir. Assim que cheguei, retirei dos bolsos os datachips com as gravações, organizei o relatório e segui até a sala de Xiaomei.
Anunciei minha presença, ciente de que Kira ainda não havia chegado. Provavelmente, ela estava levando Jair até Logan ou, no mínimo, colocando-o em um táxi para seguir até lá. Assim que recebi autorização, entrei rapidamente.
— Srta. Xiaomei, está tudo aqui.
Xiaomei pegou os chips sem hesitação, inserindo-os um a um. Seus olhos afiados analisavam cada vídeo com precisão cirúrgica. De repente, sua expressão endureceu, e sua voz veio afiada como uma lâmina:
— Há um vídeo em que uma mulher de patins atira no olho cibernético de Kira. No vídeo seguinte, Kira aparece com um olho normal de volta. Como isso aconteceu, Killey? Onde está o vídeo sobre isso?
O tom incisivo dela me pegou desprevenido. Seus punhos cerrados denunciavam a raiva crescente.
— Kira entrou na floresta logo depois que saímos do bunker — expliquei rapidamente. — O lugar implodiu e derreteu por completo. Quando ela voltou… já estava com o olho normal. Como se nunca o tivesse perdido. Como se nunca tivesse se ferido.
O silêncio que se seguiu foi denso. Eu conseguia sentir a tensão no ar.
Xiaomei estreitou os olhos, sua mente certamente fervilhando com possibilidades. Algo sobre aquilo a incomodava — e, para ser sincero, também me incomodava.
Xiaomei continua — Killey em vários momentos Kira é ferida e se recompõe muito rapidamente. E, tem um momento que você é ferido gravemente, ela quem te ajuda, e você fica para trás. Obviamente irritada e contrariada continua — Será que você é tão inútil que sequer acompanha o ritmo de Kira? Eu não acredito, investi uma pequena fortuna em você, para que... ela treme um pouco mas então respira fundo e volta a abrir um sorriso enorme, algo que me dá mais medo e receio do que tranquilidade. — Tudo bem, você precisa se aproximar dela, se tornar parte da equipe dela. Irei cuidar disso... Enquanto isso pode ir descansar.
Xiaomei me dispensa. Logo que eu sai da sala, eu volto ao meu alojamento, retiro um chip do bolso e o quebro.
FLASHBACK
Corro até a área que Kira está e o que vejo me tira o ar. Sinto algo inexplicável, Kira está sem um braço e sem uma perna. Um misto de carne e metal está ao chão. Vejo que um dos soldados que estava no jipe, ainda está vivo. Mas logo noto que seu corpo tá sendo coberto por o que parecem raízes avermelhadas, parecem veias, é algo meio grotesco e estranho de ver. E logo noto que ele está ficando com as próprias veias enegrecidas, ele aos poucos vai ficando ressequido, umas partes em metal também estão sendo absorvidas e se anexando ao corpo de Kira.
O corpo dela agora está coberto de apêndices metálicos, filamentos vivos de polímeros reforçados que se agarram aos destroços ao redor, puxando matéria para reconstruir seu braço arrancado. Sua perna se regenerando em ossos, músculos, tendões, veias tudo biológico, mas o braço dela, está sendo refeito em metal.
Isso é muita informação, dou alguns passos para trás assustado, não sei o que pensar ou o que sentir. Xiaomei me falou que fez o mesmo comigo que Kira, então será que sou assim? Mas não sinto isso, na verdade estou muito ferido para continuar. Caio no chão, sentindo meu corpo esfriando e começando a falhar. Mas então a vejo despertar.
A vejo se arrastar, a pele dela se fechando rapidamente, ela vai com dificuldade ate onde esta o gancho dela, ela o pega com a mão recém-formada. E rapidamente ela o conecta ao braço cibernético.
A estrutura se ajusta, tudo se alinha cirurgicamente e muito rapidamente. Ela está olhando em volta. Será que está me procurando? Mas porque? Ela não precisa de mim. E sim, ela olha para mim, mas meu corpo está tão pesado e cansado que não consigo reagir.
Ela se aproxima e me pega, ergue meu corpo, sem dificuldade alguma, me ajusta em seu ombro, sustentando meu corpo, vamos até uma casa e ela me larga lá, eu a entendo. Essa é uma área que já foi transponida e existe uma chance de não voltarem aqui, fico encostado enquanto ela sai, já correndo, parece que sequer foi ferida. Ejeto o chip do meu gravador de vídeo e insiro outro. Cada chip sustenta vinte minutos de gravação, foi o exato momento que Kira passou por aquela " transformação".
FIM DO FLASHBACK
Após quebrar o chip, descarto os fragmentos no mini incinerador da cozinha do alojamento. Observo as chamas consumirem os restos enquanto minha mente fervilha com pensamentos desconexos. É estranho perceber que certas coisas acontecem e, de repente, você se pega imaginando se sua vida poderia ser diferente.
Nem sei quem eu sou. Será que Kira sente o mesmo?
Nas poucas vezes em que interagi com ela, notei algo inquietante. Ela não reage como nós. Dor... Eu conheço bem essa sensação. Já senti dores insuportáveis, gritei até minha garganta arder, senti meus dentes trincarem sob a pressão do sofrimento. O calor sufocante, o medo rastejando pela pele—eu vivi tudo isso.
Mas Kira? Nada. Nenhum gemido de dor, nenhum tremor de hesitação, nenhum vislumbre de receio. Era como encarar alguém que age com convicção absoluta, que faz o que faz porque sabe que é a única verdade possível. Não há pesar.
Eu queria ser assim.
Mas, no fundo, algo me diz que Kira não é mais humana. Nem máquina. Ela se tornou algo além, algo que não sei se estamos prontos para compreender.
Me jogo na cama. O sono me atinge como um golpe inesperado. Não tivemos descanso desde a Cidade da Sucata. Meus olhos pesam, meu corpo desacelera, e aos poucos o torpor me consome.
SALA DE XIAOMEI
Ponto de vista de Xiaomei
Revejo os vídeos mais uma vez, e a sensação de incredulidade só cresce. A regeneração de Kira é algo além da compreensão, um nível de recuperação que desafia qualquer lógica biológica. Sua pele, quase impenetrável, é uma blindagem viva, adaptável, resistente. Algo fenomenal.
Leio e releio o relatório, absorvendo cada detalhe. A diferença entre Killey e Kira é gritante. Eles estão em patamares completamente distintos, e isso me frustra. Por mais eficiente que Killey seja, ele nunca alcançará o nível dela. Nunca.
Essa constatação me incomoda.
Decido enviá-lo para outra missão—simples, direta. Ele deve eliminar uma deputada estadual e impedir que ela assine uma autorização crucial para um projeto da BioCell. Um teste. Mais um. Espero que, dessa vez, ele não falhe.
Uma notificação interrompe meus pensamentos. Informam-me que Kira chegou ao prédio e está com o vice-diretor.
Meu corpo entra em alerta.
Algo está diferente em Alessandro desde que Kira apareceu. Sua postura, seus olhares, a forma como seus olhos a seguem... não é apenas interesse. É obsessão. Posse.
Ele acredita que Kira pertence a ele.
E o pior? Ele não está errado.
Mas isso me deixa intrigada. Por que Kira? Alessandro sempre foi devoto a Amanda, intocável em sua lealdade a ela. Agora, tudo mudou.
Algo aconteceu. Algo que ainda não entendi.
E eu pretendo descobrir.
Com essa convicção vou até a sala dele, entro sem me anunciar e sem bater na porta, e bingo!!! Lá está ele, com ela nos braços, ele está a devorando com os olhos, e seus braços envolvem sua cintura de forma dominante. E ela lá com aquele olhar de quem apenas aceita, é tão estranho como essa passividade não é tão passiva assim, beirando uma falsa inocência. Tenho certeza que ela sabe o que tá fazendo e fica se fazendo de inocente. Conheço o tipo dela. Estou certa em minhas conjucturas, só posso estar. Alessandro no entanto está com uma expressão de fúria contida. A voz dele soa como um trovão.
— Quem você pensa que é para entrar na minha sala sem sequer se anunciar, Xiaomei? — Sua voz sai cortante, ríspida. A tensão no ar é palpável.
Mas eu não exito. Mantendo minha postura a custa de muito esforço avanço alguns passos, e encaro os dois, entendendo que estou interrompendo algo e fingindo não me importar.
— Oh, sinto muito por interromper sua intïmidade, vice-diretor Alessandro. — Meu tom debochado. — Não sabia que estava utilizando sua Onna-bugeisha para outros propósitos. Fiz de propósito, afinal, ele sabe que ela é uma cobaia e agente de campo não deveria ser usada como amante.
Kira mantém-se impassível ao se curvar para Alessandro em um cumprimento formal. Seu semblante frio e postura impecável a fazem parecer mais uma boneca do que uma assassina. Não vejo nada de extraordinário nela. Quero entender o motivo desse alvoroço todo em torno de Kira.
Preciso me aproximar dela, descobrir quem realmente é. Talvez seja apenas mais uma dessas psicopatas que encontram prazer na morte. Chegou ao prédio pilotando uma moto, com um homem na garupa. Disseram que ele era bonito, apesar da aparência incomum—parecia um leão. Vou verificar as filmagens depois. Não costumo perder tempo com esses detalhes, mas pode ser uma informação útil. Se Alessandro está interessado nela e ela já tem alguém, isso pode torná-lo vulnerável.
Sou arrancada dos meus pensamentos pelo som da porta se fechando. Ela se foi. Agora é a minha chance.