Ponto de vista de Kira
Logan entrou em contato mais cedo, querendo saber quanto tempo vou demorar. Xiaomei prontamente se ofereceu para cuidar da K’Corp durante minha ausência — e, claro, aceitei. Ela é meticulosa, confiável e sabe como lidar com a burocracia fria das corporações. Jair, por sua vez, me perguntou se queria que ele me acompanhasse. Pedi que ficasse e desse suporte à Xiaomei. Ele assentiu em silêncio, mas o olhar denunciava seu desejo de estar ao meu lado.
Teresa está imersa em uma investigação. Disse ter encontrado algo que se conecta ao projeto desenvolvido comigo — mas não da forma como imaginávamos. Segundo ela, eu não fui criada pela BioCom… eu já era uma cobaia muito antes disso. Teresa acredita que eu carrego algo dentro de mim, algo tão incomum e grandioso, que Hugo Hëinz chegou a considerar me dissecar só para descobrir o que sou.
Ofereci a Analisa como apoio. As duas parecem crianças em uma expedição científica — empolgadas, inquietas, tagarelas. Falam sobre uma base militar nas montanhas de Aspen, e planejam uma viagem até lá com Logan e G.E.S.S. Estão radiantes, como se o peso dessas descobertas não pesasse sobre seus ombros.
Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Às vezes, minha mente falha, como se tentasse acompanhar uma avalanche. São rostos demais, decisões demais, responsabilidades demais.
Desde ontem, quando Alessandro me disse que queria fazer parte da minha vida, um impulso estranho — quase instintivo — surgiu em mim. A vontade de contar a ele parte do que estamos descobrindo. Não tudo, ainda não. Há verdades que nem eu compreendo por completo. Mas ele precisava saber de pelo menos uma parte: o parasita… e as habilidades que ele me concede.
Mesmo com tudo acontecendo ao meu redor, sigo ponderando. Cada escolha feita até aqui e esse sentimento novo, crescente, que pulsa dentro de mim.
Estamos a caminho do aeroporto — acessamos a pista exclusiva da BioCom. É de lá que sairá o Veículo de Impulso Vetorial modelo comercial. Um monstro robusto, feito para transporte de passageiros e carga, diferente dos modelos esportivos que Alessandro e Douglas usam. Menos vaidoso, mais eficiente. E hoje, nosso transporte até Brasília.
O embarque foi tranquilo. Silencioso. Protocolar. Mas entre mim e Alessandro, o silêncio dizia muito.
Trinta minutos até Brasília. Trinta minutos em que o tempo pareceu parar. Trinta minutos sentindo os olhos dele cravados em mim. Mesmo sem olhá-lo diretamente, sabia exatamente quando ele me observava. Sentia o calor se espalhar por minha pele como se ele me tocasse com o olhar. E havia algo em mim que queria isso. Que desejava ser olhada assim. Tocada assim.
Cada pequeno gesto meu — uma mexida de cabelo, o cruzar de pernas, o leve erguer do queixo — era acompanhado por aquele olhar denso, silencioso, possessivo.
Como se meu corpo reconhecesse o dele, como se a alma lembrasse algo que a mente ainda não alcançou. Estar sob o olhar dele me dava uma estranha sensação de conforto, como se ali, ao lado dele, eu tivesse um propósito. Como se minha servïdão a ele fosse natural. Instintiva. Quase sagrada.
A viagem passou num piscar de olhos.
O pouso em Brasília foi suave. A cidade nos esperava com um céu limpo e temperatura amena. Mas dentro de mim, algo se agitava. E eu sentia que estar aqui mudaria algo em mim e talvez em Alessandro também.
Logo que chegamos, fomos recebidos por Aurora, a secretária pessoal de Alessandro. Ao subir para o quarto onde eu ficaria hospedada, fui direto ao banheiro. Quando voltei, percebi um certo clima no ar. Algo sutil, mas presente. Fiquei pensando: será que Aurora gosta dele? Mas... ela não seria algo como uma ex-cunhada? Ainda assim, nenhum dos dois tem impedimentos. E, sinceramente, não duvidaria que pudesse haver algo entre eles.
A primeira noite foi curiosa. Jantei com Alessandro — tudo correu com tranquilidade, até com certa leveza. Mais tarde, recebi uma mensagem de Aurora no celular. Ela me convidava para um passeio noturno em um tal parque da cidade. Disse que o lugar era lindo à noite. Aceitei o convite, movida mais pela curiosidade do que pela vontade. Afinal, ela tem se aproximado de mim com certa frequência. Primeiro foi aquele almoço... e agora esse passeio inesperado.
Apesar disso, ela não me incomoda. Na verdade, é o contrário. Sinto-me à vontade ao lado dela, como se houvesse algo familiar, um tipo de conexão estranha, silenciosa... quase instintiva. Como se, de alguma forma, nós já nos conhecêssemos de algum lugar — ou de outra vida.
Logo que saímos para ir ao parque, Aurora já se mostrou toda empolgada:
— Kira, vamos passear, tomar um sorvete, conversar...
— E sobre o que exatamente você quer conversar? — pergunto, intrigada com o interesse dela em mim, que tem crescido a olhos vistos.
— Você está interessada no Alessandro? — ela dispara, direta. Gosto disso… da franqueza.
— Existem vários tipos de interesse. — respondo, mantendo a calma. — Estou tentando entender ainda qual exatamente é o meu por ele. Mas não é supérfluo, isso eu lhe garanto.
Ela esboça um sorriso breve, mas logo fica mais séria.
— Você sabe que ele teve uma noiva. E que ele a amava muito. Alessandro sempre diz que jamais vai amar outra mulher como a amou.
Essas palavras me atingem como uma lâmina fria. Algo dentro de mim se contrai, uma sensação amarga de sufocamento e raiva começa a borbulhar. É como se minha segurança interna desabasse, como se algo me traísse por dentro — e eu nem sei exatamente o quê.
— E você tem certeza que ele a amou? — pergunto, com a voz carregada de algo que nem consigo disfarçar.
— Quando Alessandro descobriu que Amanda e Douglas estavam se encontrando... — ela diz, com aquele tom nostálgico irritante — ao invés de brigar com ela ou terminar tudo, ele simplesmente a pediu em casamento. E marcou a cerimônia para um mês depois. — Aurora sorri, relembrando com ternura algo que me machuca como um soco no estômago. — E minha irmã aceitou, claro.
— Um idïota. — disfarço mäl a raiva que me sobe à garganta. — Provavelmente estava sendo traído. Afinal, Aurora, traição não é só física. Trair a confiança, não confiar, deixar a pessoa à margem... isso também é traição. — minha voz sai mais baixa, controlada, mas há um peso sombrio nela.
Há algo de enrustido em minha raiva — algo que nem eu entendo. Amanda... Alessandro... Por que isso me afeta tanto?
Sentindo o clima ficar pesado demais, tento mudar de assunto, embora o gosto amargo continue.
— E você? Soube que você gosta do Douglas. Por que nunca ficaram juntos?
— Eu acho que, no fundo, gosto desse lance platônico. — ela responde, pensativa, olhando para o nada. — Pelo menos assim eu não me decepciono. Posso viver na minha ilusão de que ele é perfeito… Vai que ele me decepcione? Acho que prefiro assim.
— Entendi. — respondo, com um meio sorriso que não chega aos olhos. — E não se preocupe. Eu e Alessandro não temos nada romântico. Minha fidelidade a ele é serviente. Protetiva. — falo tentando me convencer de que é melhor assim. Mais seguro. Mais simples.
Dou um sorriso tranquilo — ou, pelo menos, tento parecer tranquila — e é exatamente nesse momento que chegamos ao hotel. Assim que subimos e eu a deixo em seu quarto, noto um movimento suspeito do lado de fora. Meu instinto grita. Gesticulo de imediato para que Aurora se afaste da janela.
O vidro explode com violência. Fragmentos voam como estilhaços cortantes. Dois homens invadem o ambiente em queda agressiva, aterrissando com brutalidade. Estão armados até os dentes com rifles pesados — reconheço de imediato: Taurus T4 MLOK calibre .300 Blackout, cano de 16 polegadas, desenvolvidos para abäter até mesmo unidades de assalto cibernético. Isso é sério. Eles sabem exatamente quem eu sou.
Não há pausa. Os disparos começam no exato momento em que tocam o chão. O rugido das balas ecoa pelo quarto, um som ensurdecedor e mortal. Felizmente, ainda estão instáveis pela entrada abrupta, e quase todos os tiros erram seus alvos. Quase. Um deles me atinge na perna — um impacto seco, ardente e profundo. A dor é aguda, mas não me impede. Ela me desperta.
Num único movimento, saco minha monokatana. Num arco preciso, decapito o primeiro invasor, sangue e circuitos espirrando contra a parede. O segundo tenta recuar, mas minha estocada é rápida e certeira — atravessa o visor fechado da armadura, perfurando o olho e o cérebro com precisão cirúrgica. Ele cai sem emitir um som.
Não há tempo para respirar. O som crescente de motores reverberando me arranca da cena. Corro até a janela destruída. Lá fora, três veículos de impulso vetorial sobrevoam o prédio, armados para guerra. São unidades de combate — e estão aqui por mim.
Sem hesitar, me viro e corro. Aurora já saiu do quarto — graças a Deus —, o que me permite agir sem distrações. O estrondo dos canhões montados começa. São projéteis pesados, calibre .50, rasgando o prédio como se fosse papel.
Uma das balas me acerta em cheio. O impacto é brutal, instantâneo.
Minha perna explode.
Meu corpo cai com o baque sürdo de quem perdeu o equilíbrio — e um mëmbro. O sangue jorra, quente e espesso, manchando o chão. Mas não há tempo para dor. Nem para desespero. Apenas para sobreviver.
Giro o corpo, arrastando-me com o braço direito, e alcanço uma granada de pulso no cinto. Ativo-a com o dente e lanço para o corredor. A explosão reverbera com um estalo de luz azulada, desestabilizando momentaneamente os sistemas dos primeiros soldados que cruzam a porta.
O veículo em queda atinge em cheio a parede e janela do quarto adentrando destruindo tudo em seu caminho. O silêncio dura apenas dois segundos...