Ponto de vista de Kira
A explosão das granadas abalou a estrutura da porta, soltando fragmentos de concreto e deixando marcas de queimadura no metal. Mas o que realmente me pegou de surpresa foi o que aconteceu em seguida.
Uma maluca de patins?
Fiquei parada por um instante, absorvendo a cena. A garota era pequena, com cabelos loiros presos em duas xuquinhas e luzes rosa e roxo destacando-se sob a iluminação precária. Pele clara, olhos azuis vibrantes, sardas espalhadas pelo rosto juvenil. Mas o detalhe mais absurdo? No lugar dos pés, ela tinha implantes de patins.
Antes que eu pudesse reagir, ela disparou pelo corredor—rápida, muito rápida—mas o controle não acompanhava a velocidade. O impacto foi grotesco quando ela se chocou contra a parede no final do corredor, o baque ressoando pelo espaço apertado.
Fiquei olhando, incrédula. Então, sem conseguir evitar, soltei uma risada baixa. Era ridículo, estúpïdo e, de alguma forma, hilário.
Mas a diversão não durou.
A garota se levantou de um pulo, olhos ardendo de fúria e humilhação. Apontou um dedo para mim como se tivesse alguma autoridade.
— Você...! Quem diabos acha que é?!
Então puxou uma pistola. Grande demais para suas mãos pequenas, mas perfeitamente firme. Ela sabia usar aquilo.
Minha expressão não mudou.
Ela atirou.
Uma, duas, três vezes… nove tiros no total.
O cheiro de pólvora preencheu o ar. O som dos disparos reverberou, depois… silêncio.
Seus olhos arregalaram-se quando percebeu. Todos os tiros acertaram, mas nenhum atravessou minha pele. Alguns projéteis ficaram cravados, outros caíram no chão com um tilintar metálico.
Avancei.
Ela gritou, erguendo os braços em rendição.
— Eu me rendo! Eu me rendo, pörra!
Ridículo.
E ainda assim, algo me fez hesitar. Eu não matava pessoas desarmadas. Nunca gostei desse tipo de execução.
Cruzei os braços, encarando-a com desdém.
— O que você tá fazendo aqui? No covil do Dentuço?
A loira respirou fundo, tentando recuperar a compostura.
— Dominique. Esse é o meu nome — disse ela, como se sua identidade tivesse alguma importância naquele momento. — Fui comprada pelo Dentuço. Ele queria alguém bom com explosivos e produção de armamentos.
Ergui uma sobrancelha.
Interessante. Talvez fosse útil ter alguém assim por perto.
...Na equipe.
Eu travei por um segundo. Equipe? Desde quando eu pensava em recrutar gente?
— Quem te vendeu? — perguntei, afastando o pensamento.
O brilho nos olhos dela apagou.
— Minha família. — Sua voz soou vazia. — Eu fazia parte da máfia russa. Mas houve uma guerra. Eles foram praticamente exterminados.
Fiquei em silêncio. Perder toda a família e, de quebra, acabar vendida como mercadoria? Eu não sabia como era, ou talvez soubesse o suficiente para imaginar.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Killey se aproximou, apontando para o final do corredor.
— E essa porta? O que tem lá?
A loira ficou visivelmente tensa. O olhar dela vacilou para a porta e, por um momento, percebi que queria fugir.
Isso me deixou alerta.
Avancei e segurei seu braço. Ela se encolheu, mas não tentou lutar. Em vez disso, levou a mão à coxa, um compartimento se abriu —e foi então que vi o brilho do aço.
Outra pistola. Maior que a anterior.
Ela era rápida.
O cano frio quase encostou no meu olho direito.
O estampido veio em seguida. Dor. Calor.
Algo explodiu no meu rosto—metal, carne, fios, faíscas. Minha cabeça inclinou-se para trás, mas não o suficiente para me derrubar.
E então os olhos dela se arregalaram.
Dominique congelou por um segundo, percebendo que eu ainda estava ali.
Eu a agarrei pelo rosto.
E empurrei.
Uma.
Duas.
Três vezes.
O impacto era úmido, pegajoso. O som, um misto de ossos quebrando e carne sendo esmagada.
Quando soltei, não havia mais rosto. Apenas uma pasta vermelha espalhada pela parede.
Me afastei, sentindo o sangue quente escorrendo pelo meu rosto.
Suspirei, passando a mão pelo olho danificado, sentindo os fragmentos retorcidos dos meus próprios implantes.
— Filha da püta.
Então olhei para Killey.
— Vamos ver o que tem atrás daquela porta.
Ao passar pela porta, Killey e eu avançamos pelo local, investigando cada canto. Meu olho danificado reduzia minha percepção, então peço a ele que fique atento a qualquer coisa suspeita.
O silêncio pesado é quebrado por um som quase imperceptível.
Clique.
Um ruído sutil, mas reconhecível. Algo foi ativado.
Killey se detém por um instante e finalmente encontra algo peculiar—uma estátua estranha, deslocada do ambiente. Ele a move levemente e, sob sua base, revela um painel oculto.
Olho ao redor, e é então que noto o problema real. O espaço inteiro está carregado com explosivos. Não parece material radioativo, mas algo químico. Um brilho oleoso nas cargas me faz suspeitar de nitroglicerina. Em meio às bananas de dinamite, há outro tipo de carga associada, algo mais sofisticado.
Mantenho a voz firme, mas direta:
— Killey, isso é um problema. Meu olho tá fodido, e eu não tenho o que preciso pra desarmar essa mërda.
Ele me encara, surpreso. Não é comum me ouvir admitir uma limitação. Mas é a vida.
E como se a situação já não estivesse uma mërda o suficiente, quando ele abre o painel, vejo o pior.
Uma contagem regressiva.
Quatro minutos.
O sangue gela por um instante, mas logo meu corpo responde antes mesmo da mente processar.
Nem perco tempo esperando um plano mirabolante. Se eu tivesse uma ideia, já teria posto em prática. Então, simplesmente… corro.
Um sorriso surge em meu rosto, não de desespero, mas de puro divertimento com a ironia da situação.
Killey, por outro lado, está atônito.
— Não acredito… a Kira tá fugindo?!
Mas o tempo para questionamentos acabou.
A sequência de explosões começa.
O impacto inicial detona com um brilho branco-alaranjado quando a termite entra em combustão. A carga explode em ondas, cada detonação alimentando a próxima em um efeito dominó de destruição.
O calor intenso consome o espaço como um inferno liberado. Os explosivos foram projetados para erradicar qualquer vestígio—micro-organismos, equipamentos, segredos. Nada restaria além de cinzas.
E nós tínhamos poucos segundos para garantir que não faríamos parte delas.
Saímos a tempo.
Foi por pouco.
O calor das explosões ainda irradiava atrás de nós quando emergimos do bunker, e, como se cronometrado, assim que cruzamos a saída, tudo desabou. O som foi ensurdecedor, um rugido de destruição que sacudiu o chão sob nossos pés.
Em segundos, o que antes era um bunker agora não passava de uma massa preta derretida, consumida pelo calor extremo da termite e das explosões. O terreno cedeu, formando um pequeno cânion onde um dia existira a estrutura.
O que quer que estivesse ali, agora era história.
Dizem que ignorância é uma bênção. Talvez seja verdade. Se algo importante estava naquele lugar, se foi antes de ser descoberto. E se ninguém souber da existência, realmente importa?
Dou de ombros.
— Volta na frente — digo para Killey.
Já estamos nos arredores da Cidade da Sucata, uma área isolada. Ele guarda a arma no porta-malas e assente.
— Te espero no acampamento.
Apenas faço um gesto de confirmação e o vejo partir.
Adentro o mato.
Caminho sem pressa, apenas deixando meus sentidos se ajustarem. Então noto algo entre as folhas de uma árvore próxima.
Um macaco-prego.
Ele me encara dos galhos, e, por algum motivo, eu retribuo o olhar.
E então…
Sinto.
Uma vibração.
Não é visão, não é audição, nem mesmo um cheiro ou toque. É algo além, um instinto profundo. Como se, de alguma forma, houvesse um alinhamento invisível entre nós.
O macaco se move. Desce dos galhos. Aproxima-se.
E meu corpo responde.
Fios finíssimos emergem de mim—tão sutis quanto cabelos ao vento. Eles se estendem, tocam o animal, envolvendo-o.
E eu o sinto.
Cada célula, cada pequeno fragmento de sua existência… alinhando-se com a minha.
É uma troca, um processo que não compreendo completamente, mas que meu corpo parece conhecer. Algo parecido com fotossíntese, mas ao invés de luz, é matéria viva que se converte em energia para mim.
E então percebo.
Meu olho está se restaurando.
A visão retorna em ondas, primeiro turva, depois cada vez mais nítida.
Levo a mão ao rosto. Toco a pele ao redor do olho direito. Liso. Vivo... Biológico.
Minha respiração acelera. Procuro algo, qualquer coisa refletiva. Nada.
Então corro.
Minha moto está próxima do que restou do bunker. Chego até ela e me inclino sobre o retrovisor.
Meu reflexo me encara de volta.
Meu olho direito está lá. Como se nunca tivesse sido destruído.
Mas antes que eu possa sequer processar, uma dor lancinante atravessa minha cabeça.
Minha visão embaça.
Flashes.
Imagens que não são minhas.
Galhos. Frutas. O calor do sol filtrado pelas folhas. Uma mãe. Irmãos. Fome.
O choque me paralisa.
Estou vendo as memórias do macaco-prego.
Engoli em seco, tentando entender o que diabos acabara de acontecer.
Isso… isso não era normal.
Eu não apenas o absorvi.
Ele se tornou parte de mim.